por Sandra Santos Esteves
Maria Dolores Sosín Rodriguez nasceu em Feira de Santana, em 1989, é baiana, escritora, poeta, multiartista, crítica literária e cultura, pesquisadora e professora universitária de Literatura na Universidade Estadual de Santa Cruz, na cidade de Ilhéus, Bahia. Além da obra Procurem Luisa no Mercado de Arte Popular, Rodriguez têm poemas publicados nas seguintes antologias: Poesia Hoje: Negra (Editora Unicamp e Poesia. Org 2021), crônicas na De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro (Editora Elefante, 2020 – finalista Jabuti, 2021), posteriormente escreveu o livro Oblíqua Glosa (Organismo Editora, 2023). Maria Dolores Sosín Rodriguez também organizou os livros: Feira de Santana Negra (Editora Segundo Selo, 2021) e Rasuras Epistêmicas das (Est)Éticas Negras Contemporâneas (Organismo Editora e Grupo Rasuras, 2020).
O livro-objeto Procurem Luisa no Mercado de Arte Popular foi editado pelo Estudio Arumã, e, visto que o cenário mundial ainda estava inserido no período pandêmico da COVID-19, autora lançou a obra, em 05 de abril de 2021, no formato virtual através do canal do Youtube “procuremluisa”. A obra fez parte de um projeto que leva o mesmo nome do livro e recebeu o apoio financeiro da Prefeitura de Feira de Santana através da Secretaria de Cultura Esporte e Lazer por meio da Lei Aldir Blanc do Governo Federal.
O mergulho na obra Procurem Luisa no Mercado de Arte Popular de Maria Dolores Sosín Rodriguez representa fielmente o que afirma Adriana Cavarero de que “o pessoal e subjetivo valem mais como índice de vulnerabilidade – de “uniqueness” (Cavarero, 2000), ou seja, os laços de afeto e a intimidade da autora são expostos de maneira tão artística e verdadeira que redefinem linguagens, categorias e tradições no campo da literatura negro-feminina brasileira, bem como ressignificam outras formas de se ler um livro.
O livro-objeto chama atenção pois reúne uma espécie de dossiê/arquivo composto por reproduções de documentos oficiais, como o “certificado de nacionalidade”, ou seja, o RG de residente estrangeira daquela época, uma cópia da “carta de identidade” de ex-aluna da Escola Profissional de Comercio de Vigo, na Espanha, fotos de Maria Luisa Rodriguez Rodriguez do/no Mercado de Arte Popular, textos escritos em páginas de um diário, um cartão de visitas comercial, um mapa da cidade de Feira de Santana, um poema em papel vegetal e um folheto de poemas, tudo cuidadosamente organizados em uma pasta arquivo.
O sugestivo título da obra confere para o que de fato o livro se propõe – procurar conhecer a senhora Maria Luisa Rodriguez Rodriguez, mãe da autora, entre as diversas memórias fragmentadas presentes no interior da pequena pasta, entretanto, este livro o qual estamos buscando desvendar e criar possíveis invenções não se trata de um livro comum.
A obra é, sem sombra de dúvidas, um passeio pela história de dedicação de Maria Luisa Rodriguez Rodriguez, conhecida como a “Espanhola” no Mercado de Arte Popular (MAP), na cidade de Feira de Santana, logo na apresentação em formato de um cartão sobre o livro-objeto, a filha e autora, Maria Dolores Sosín Rodriguez, declara ser impossível descrever em um único livro 40 anos da história de sua mãe que foram dedicados ao MAP.
A senhora Maria Luisa Rodriguez Rodrigues, possuía nacionalidade espanhola, nascida em Vigo, província de Pontevedra, na Espanha, filha de Francisco e Hermínia. Com base nos documentos presentes na obra, Luisa nasceu na provável data de 27 de julho de 1924, conforme datado na “carta de identidade” ou em 01 de agosto de 1934, datado no “certificado de nacionalidade”. Luisa casou-se com Benigno Sosin Rodriguez, educou e criou quatro filhas: a autora da obra, Maria Dolores Rodriguez e as irmãs, Ana Paula Sosin Rodriguez, Maria Herminia Sosin Rodriguez e Maria Luisa Rodriguez Santana.
Luisa trabalhou como comerciante no MAP, entre os anos de 1980 e 2018, o que a tornou uma mulher de extrema importância para cultura da cidade de Feira de Santana, em especial para o Museu de Arte Popular. Luisa era proprietária do box “La Baronesa Arte” no MAP, vendia cangas, chaveirinho com os dizeres “Lembrança da Bahia”, entre outros itens de artesanato.
No livro, a filha e autora relata que sua mãe, Luisa, criou-a ali dentro daquele box, no verso de uma das fotografias a escritora descreve que ali tinha já havia um berço reservado para ela quando recém-nascida, Luisa também era uma figura muito querida pelos seus vizinhos de box do MAP: Léu, a costureira dona Nenzinha, dona Ana do restaurante, Nilton Rasta, Francolino da barbearia, Norma e Robico.
Construído em 1914 e, inicialmente conhecido como Mercado Municipal, o local era utilizado para o comércio de gêneros alimentícios produzidos na zona rural da cidade até o ano de 1977, após permanecer fechado por alguns anos, o Museu de Arte Popular foi reaberto em 1980, depois de uma reforma, ao passo que se tornou o principal estabelecimento turístico de Feira de Santana, onde passou a ser comercializado também artesanato, chaveirinhos, cangas, produtos de couro, literatura de cordel, comidas típicas como a maniçoba de dona Ana, apresentações de artistas como grupos de capoeira e de cultura popular.
Ademais, por se tratar de uma obra esteticamente artesanal, planejada e bem construída, o livro-objeto proporciona ao leitor uma experiência no mínimo peculiar. Recentemente, ao revisitar a obra para escrever este ensaio, recordei-me de um outro ensaio da escritora Virgínia Woolf sob o seguinte título: Como se deve ler um livro? a resposta é simples e individual, “o único conselho sobre leitura que uma pessoa pode dar a outra é não aceitar conselho algum, seguir os próprios instintos, usar o próprio bom senso e tirar suas próprias conclusões.”
Assim sendo, compreendo, que, será o leitor que deve definir seus próprios objetivos de leitura, para mim, a leitura da obra de Rodriguez pode ser realizada de diversas maneiras, seja por meio das fotos, dos poemas ou dos documentos, o que significa que a obra não segue uma leitura cronológica, tampouco convencional, e todas as vezes que li a história de Maria Luisa Rodriguez Rodriguez e sua relação com o MAP os elementos que integram a obra me contaram de modos diferentes sua narrativa de vida.
Para tanto, sempre procuro ler os livros buscando um mundo onde caiba o meu modo de ser, sentir e vislumbrar outros mundos, como também leio para ler outros livros, e é claro que nem sempre isso acontece. Embora o livro revele ser um atravessamento na história de Maria Luisa Rodriguez Rodriguez e do MAP, ele desvenda ser também um atravessamento na vida da autora e no íntimo de quem o lê. A obra que fora lançada três anos após o falecimento de sua mãe, expõe por meio das fotografias e dos poemas a profundidade dos laços afetivos entre mãe e filha e a busca de Dolores em lidar com a ausência/presença da mãe, o livro demonstra ser um belo exemplo do que afirma a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em sua obra “Notas sobre o luto” em junho de 2020:
O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave e raivoso. Aprende com os pêsames podem soar rasos.
Aprende o quanto do luto tem a ver com as palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. (Adichie, 2021, p.10)
Diversas são as obras que abordam a relação entre a escrita e o luto escritas por homens e mulheres, a pesquisadora argentina Florencia Garramuño (2014) nos aponta dois livros sob essa temática em sua obra Frutos Estranhos[1], a saber: El eco de mi madre de Tamara Kamenszain e Monodrama de Carlito Azevedo, todavia, a obra de Dolores possui algo que a distingue das demais obras mencionadas por Florencia Garramuño e que há muito é utilizada por escritores brasileiros que é a intersecção com o uso de fotografias, o que também como mencionado anteriormente, proporciona uma outra experiência de leitura.
Quanto a literariedade do texto, em uma das poesias da obra, a tensão entre o poema e a prosa garante a estrutura poética a técnica do “passo de prosa” em que os versos se estendem extenso ou sinuosos bem como entrecruzam-se com versos mais regulares e abruptos. (Garramuño, 2014), conforme podemos observar no trecho abaixo:
minha mãe cultivava flores como se colhesse mistérios
e eu poderia talvez plantá-los, passo a vida
[a desvendar
o que coração desta mulher trás
por dentro das veias escancaradas.
Enquanto Florencia Garramuño amplia hoje nossa concepção de literatura em seus materiais e estrutura do texto literário, o filósofo e linguista búlgaro, Tzvetan Todorov, em contrapartida, já havia afirmado acerca da expansão humanística a respeito da literatura:
A literatura abre ao infinito essa interação com os outros e, por isso nos enriquece infinitamente.
Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar pleno de sentido e mais belo. Longe se de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano. (Todorov, 2009, p.23-24)
Deste modo, materializar através da arte literária o ofício de lidar com o luto por meio das palavras humaniza não só o autor como também o leitor. A artista visual Ana Julia Pontual Kehl ao escrever sobre a elaboração do seu livro-caixa Poética do Luto o qual trata-se do seu processo de luto com a morte repentina do seu pai, contribui para pensarmos acerca dos processos de criatividade que envolvem o sentimento de dor, perda, ausência e presença.
Portanto, a obra de Maria Dolores Rodriguez ecoa o que também declarou Ana Julia Pontual Kehl a respeito desta fonte de criatividade como experiência do próprio viver (OSTROWER, p.7), já que representar através das artes visuais e da literatura sentimentos como a dor, o luto, é também revisitar essas experiências que causam desconforto, reunir os pedaços e expor as memórias que podem talvez trazer de certo modo alento e alívio para o autor e o leitor que já vivenciou ou pode vir a vivenciar estes sentimentos.
Referências:
KEHL, Ana Julia. Poética do Luto: do caderno ao livro de artista. 2022. 38 f. TCC (Graduação) – Curso de Artes Visuais, Universidade de Brasília, Brasília, 2022. Disponível em: https://bdm.unb.br/handle/10483/36708?mode=full. Acesso em: 15 jun. 2024.
CHIMAMANDA NGOZI. (2021) Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das Letras.
GARRAMUÑO, Florencia. Frutos Estranhos. Sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2014.
OSTROWER, Fayga, Acasos e Criação Artística, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1990.
RODRIGUEZ, Maria Dolores. Procurem Luiza no Mercado de Arte Popular. Salvador: Estudio Arumã, 2021. 40 p.
SCRAMIM, Susana. A poesia Mulher. Revista Cult, 2016. Disponível em:https://revistacult.uol.com.br/home/a-poesia-mulher/. Acesso em: 15 jun. 2024.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
Sandra Santos Esteves, nasceu em 1991, no sul da Bahia, na cidade de Camacan, é poeta, escritora, professora e mediadora de leitura e escrita na Escola Estadual Quilombola Doutor Milton Santos, é graduanda em Letras/Português Literaturas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié, membra do Grupo de Pesquisa Legados Indígenas e Africanos, Relações Étnico-raciais Contemporâneas e Legislação Educacional – GEPER (UESC – CNPQ) e pesquisadora em literatura feminina negra e indígena.
Crédito da foto: Felipe Coasth
[1] O título do ensaio foi inspirado a partir de uma instalação do artista brasileiro Nuno Ramos, exposta em 2010, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio Janeiro; criação que entrecruzou diferentes meios, disciplinas e métodos.