Diálogo entre dois poetas automáticos

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Por Berta Lucía Estrada, escritora colombiana.

Furor de Máscaras é uma coleção aparentemente erótica de poemas que se divide em dois capítulos, Beijos de abracadabra e À sombra de um mito fugitivo. O primeiro é assinado por Anna Apolinário e o segundo por Floriano Martins. E antes de apresentar o livro, gostaria de explicar como essa experiência criativa se desenvolveu. No caso dos poemas escritos por Apolinário, o primeiro verso de cada um foi dado por Floriano Martins, e vice-versa. Os poemas foram escritos em diálogo entre os dois criadores e cada um foi escrito no prazo de cinco minutos. E embora de certa forma seja uma escrita em conjunto, também é verdade que cada poema traz a marca de seu autor.

Furor de Máscaras é um diálogo erótico entre dois poetas que, embora procurem se encontrar, a única coisa que deixam claro é que sua história fala das desavenças entre dois amantes e de sua impossibilidade de comunicação física e mental. De certa forma, é uma alegoria da comunicação humana, que nos mostra no espelho nossas próprias frustrações e nossos próprios limites, como O Último Tango em Paris de Bertolucci. Para compreender esta ideia, devemos reler o título da coleção de poemas, Furor de Máscaras; pois é o logos – leia-se discurso – que se desenvolverá nas 111 páginas que o compõem. Lembre-se que o título de uma obra deve ser, na medida do possível, uma bússola que permita ao leitor viajar sem se perder. E, claro, encontramos o pathos visto como o discurso com o qual os autores esperam enredar os leitores; neste caso é a fúria que nos remete aos sentimentos que será o timoneiro desta embarcação das paixões que Apolinário e Martins construíram em seu estaleiro das palavras; com isso nos cativam e já sabemos que o mar para o qual nos convidam a navegar vai ser selvagem e violento. E as máscaras são o ethos; entendidas como comportamento ou costume herdado do grupo social a que pertencemos. Não estamos vivendo em um baile de máscaras permanente? Não temos dezenas – talvez centenas – de máscaras em nossos rostos que mudamos à vontade ou de acordo com normas sociais que exigem comportamentos adequados à cultura e aos costumes do grupo social a que pertencemos? Ou seja, Furor de mascaras é um título que nos seduz e atrai como um ímã, que não nos solta até terminarmos de ler todo o seu discurso; e, claro, não estamos ilesos. E é justamente essa bússola, essa indignação que recebemos, que faz da coleção de poemas de Apolinário e Martins não um livro qualquer, mas aquele que vai sobreviver às vicissitudes do tempo. O que quero dizer é que estamos perante uma boa coleção de poemas, onde cada palavra e cada imagem tem a força necessária para receber os ataques da paixão em todas as suas dimensões; não apenas físico, mas mental. É o caso de Éons, o poema de Anna Apolinário que abre as portas para essa batalha de paixões e fúria:

A chuva atiça as cítaras em nossas línguas
Somos bússolas ruborizadas
O frenesi flutua na sombra

E em A nuvem de Zeus Floriano Martins responde:

Zeus quer para si outra música,
uma oferenda do mistério,
por onde passe o fio da navalha,
por onde a curva se estreite,
no espinhaço da dança, Zeus
quer o sexo entumecido da noite.

A bússola ruborizada, possivelmente assustada porque não sabe para onde se mover, sente o fio da navalha enquanto Zeus / quer o sexo entumecido da noite. Com estes dois poemas, que dão início à criação de Apolinário e Martins, mergulhamos no pathos de que antes se falava: Furor de máscaras. Não nos esqueçamos que Zeus usou diferentes disfarces para seduzir ou estuprar as deusas ou mortais que desejava. Como esquecer ainda que Zeus se transformou em um cisne e o subsequente estupro de Leda? Rubén Darío o descreveu assim:

Tal es, cuando esponja las plumas de seda,
olímpico pájaro herido de amor,
y viola en las linfas sonoras a Leda,
buscando su pico los labios en flor.

Ao que Anna Apolinário responde:

As cadeiras voam por toda a sala
Através de minha plumagem mágica
Sombras atiram destinos pelas janelas
Minhas garras gotejam tempo

E em Alarido, ela grita – uiva–: Agora o silêncio passeia sob os escombros

E Floriano Martins responde:

Uma pluma decifra o universo …
Levita, pousa, insinua a lousa do ser
e escreve muitas vezes que inexiste.

E eis que Silêncio e Tempo são irmãos gêmeos e navegam nas caudas dos cometas para não se esquecerem do que as Máscaras fizeram; é por isso que eles caem no abismo da moralidade:

A aranha da fábula alguma vez
me disse que nunca soube voltar,
ao subir pela parede só a queda
lhe restava, o abismo da moral. (A fábula do riso, FM)

E em Oração Desfeita ele nos lembra que: O homem tem uma pedra debaixo da língua

O que a princípio pensávamos ser um livro erótico aos poucos nos é revelado como uma viagem às entranhas do SER, aos próprios arcanos da existência humana; refiro-me às questões que nos atormentam e nos impedem de penetrar em seus mistérios mais recônditos. Anna Apolinário e Floriano Martins decodificam as questões metafísicas, aquelas que todos nós nos colocamos em algum momento de nossas vidas:

Somos meteoros iluminando apocalipses (AA)
A vida que vivemos é um mito foragido …
Em teu ventre todas as estrelas caem …
Somos os últimos amantes refugiados
no esplendor de uma pintura borrada. (FM)

O que nos lembra que somos apenas deuses caídos em desgraça e que por isso mesmo carregamos a vileza e a vergonha da condição humana. Também nos lembra que se a eternidade nos espera, será apenas em uma pintura manchada; ou seja, em uma pintura apagada e quem diz apagada diz inexistente; em outras palavras, é a lenta queda no abismo, no nada, no esquecimento; onde não há rostos ou máscaras; apenas fúria.


Prólogo do livro Furor de máscaras, de Anna Apolinário e Floriano Martins. Fortaleza/São Paulo: ARC Edições/Editora Cintra, 2021. Berta Lucía Estrada é poeta, dramaturga e ensaísta colombiana, colaboradora de Acrobata.

1 comentário em “Diálogo entre dois poetas automáticos”

  1. Buenos días: Gracias Revista Acróbata por abrirme nuevamente un espacio en esta hermosa e importante revista. Gracias también a Floriano Martins por la traducción del prólogo sobre Furor de Máscaras, poemario escrito entre él y Anna Apollnário; un placer y un honor que hubiesen pensado en mí para la presentación de ese diálogo que hurga en la condición humana.

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