O Dia de Cinco Orgasmos, a Poesia de Leila Ferraz

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Elys Regina Zils, nossa companheira no Atlas Lírico da América Hispânica, além de parceira de Floriano Martins na direção da Agulha Revista de Cultura, acaba de criar um selo próprio, com o sugestivo nome de Editora Mama Quilla, referência à mãe do firmamento na mitologia inca, muito raramente lembrada entre nós. Como na lenda, nosso desejo é que a nova editora se torne um dia um de nossos satélites mais vibrantes. Melhor começo ela não poderia ter, ao publicar, em sua estreia, a poesia de uma das vozes mais expressivas do Surrealismo no Brasil, Leila Ferraz, uma das mentoras da Exposição Internacional do Surrealismo, na São Paulo dos anos 1960, poeta, fotógrafa, desenhista, ensaísta, cuja biografia se viu de algum modo criminal forçada a ser subterrânea. O que faz agora Elys Regina Zils é resgatar essa autora valiosa das sombras de seu refúgio. E a leitura deste livro, que desde o título já nos promete uma jornada reveladora, O dia dos cinco orgasmos, é uma benção clarificante de uma grande poesia que ficou indevidamente guardada, por décadas, e agora vem a lume.

A própria Elys Regina Zils, sua editora, melhor do que ninguém, observa certos aspectos de sua biografia, no estudo com que abre as páginas de O dia dos cinco orgasmos:

Leila Ferraz (São Paulo, 1944) interessou-se pelo Surrealismo ainda muito jovem, mas foi seu primeiro marido que lhe abriu as portas para que o adentrasse com toda a intensidade. Como ela mesma afirma: “O mundo do Sergio era vasto, profundo e maravilhoso. Aos poucos eu mergulhava de cabeça no Surrealismo. Passei a estudar e ler tudo a respeito e tive contato com as obras de Breton, Benjamin Péret, Aragon, Desnos, Mallarmé, Sade, Vicent Bounoure, Anne Lebrun, Charles Fourier, Benoit, José Pierre, Joyce Mansour e tantos outros” (Ferraz, 2019). Ao mesmo tempo que se aprofundava nos estudos sobre o Surrealismo, passa a conviver com artistas brasileiros com afinidade pela estética surrealista, como Paulo Antônio de Paranaguá, Claudio Willer, Roberto Piva, Maninha, Raul Fiker, Roberto Bicelli, entre outros.

Participa do primeiro grupo surrealista brasileiro oficial, de 1965 a 1969. O grupo estava em torno do eixo São Paulo/Rio de Janeiro com participações de Sergio Lima, Raul Fiker, Leila Ferraz, Paulo Antônio Paranaguá, Eduardo Jardim de Moraes e Maninha. Coube ao trio Lima, Leila e Paulo Paranaguá encabeçar a organização da XIII Exposição Mundial do Surrealismo e I Exposição do Surrealismo, realizada em 1967. Como resultado, surge a revista A Phala, que é também o catálogo da exposição, cuja capa apresenta a informação: “Revista do Movimento Surrealista”. Suas 160 páginas contêm textos de André Breton, Benjamin Péret, Aldo Pellegrini, José Pierre, Aimé Cesaire, Mário Cesariny, Alain Joubert, Vincent Bounoure, Robert Benayoun. A produção da revista ficou a cargo apenas do casal Lima e Leila Ferraz.

Esta revista é hoje um objeto de colecionador e os afortunados que dispõem de um exemplar podem muito bem avaliar a grande do trabalho de Leila Ferraz, na concepção gráfica, traduções e nos ensaios que ali publicou. Um desses ensaios, “Introdução ao pensamento mágico surrealista”, também foi recuperado e se encontra em O dia dos cinco orgasmos. Leila teve também uma experiência de escritura automática a quatro mãos com o poeta Floriano Martins, resultando em um dos capítulos deste livro, “Convulsiva taça dos desejos”. Ele próprio, comenta acerca da poesia de sua parceira, em texto que Elys Regina Zils reproduz nas orelhas do livro:

O mais bem guardado segredo nas relações humanas é o desejo, que quase sempre se mostra outro como uma máscara de ervas que assinasse um manuscrito com suas melhores premissas. O desejo é o símbolo de uma catástrofe que se guarda para a melhor hora. A representação de um impulso irresistível que não atende a outra obsessão que não seja a sua miragem predominante no espelho. O desejo é uma película de mistérios que inesperadamente altera a trama dos corpos enquanto se tateiam na escuridão do abismo. Uma imagem poética que incentiva o erro de interpretação. Essa fábula indizível de uma “transgressão mutável e única” que Elys Regina Zils tão bem espreita na poética de Leila Ferraz, ao reparar que esta é a gema que ela utiliza para decompor a mulher em seus versos. Singular porque descobriu o método preciso de ser várias. Mutação fecunda por haver aprendido o caminho de todas essas mulheres até o seu íntimo mais grave. O dia dos cinco orgasmos é um livro de ervas, onde o desejo amoroso sugere as práticas de todas as conexões corporais, onde cada verbo desenlaça suas virtudes curativas e faz do leitor uma fonte sagrada de seus sentimentos predominantes. O livro atravessa uma vida inteira, um ramo de escadarias refulgentes que nos entregam a biografia de uma poeta intensa e sua visão ascendente de todas as formas do ser. Leila Ferraz é uma doadora de visões que impressionam pelo fulgor de seu mistério, pela peregrinação erótica de suas imagens e o delicado conflito de suas esferas desejosas.

Dito assim, não nos resta senão abrir os braços do desejo e sair em busca da leitura deste livro, que pode ser adquirido com a própria editora, através do e-mail: [email protected]. E damos as melhores boas-vindas a essas duas mulheres que também atuam como nossos satélites reveladores. Viva a poesia!

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