Romeira convicta

| |

Por Ana Elisa Ribeiro, Escritora, editora e professora mineira.

Até assistir a uma palestra da pesquisadora e editora Priscila Branco, em 2022, eu não conhecia a poesia de Maria de Lourdes Hortas. Aliás, até ali, tinha notícia imprecisa sobre a atuação de Hortas como editora das Edições Pirata, legendária iniciativa no Recife, décadas atrás, que resultou em livros de poesia contemporânea e em coletivos fervilhantes de poetas que não se limitaram a andar por lá. Agitaram-se pelas quinas e polpas do Brasil, dando notícia de sua poesia.

Naquele ano de 2022, não tão distante, tive notícia das andanças de Priscila a escavar a trajetória das Edições Pirata e de seu encantamento ao conhecer Maria de Lourdes, a quem chamava de Lourdinha, sem qualquer cerimônia. Tive de esperar alguns meses até ter em mãos a coletânea poética intitulada Romaria, publicada pela corajosa Macabéa, editora independente do Rio de Janeiro cuja missão é publicar e republicar literaturas escritas por mulheres, com especial atenção à poesia. O volume de capa predominantemente azul, com belíssima ilustração de Paula de Aguiar, esperou algum tempo na extensa fila dos livros que aguardam sua vez, embora alguns, de tão bons, me deixem com pena de ter demorado tanto a encontrá-los. É o caso de Romaria.

Maria de Lourdes Hortas nasceu em Portugal e veio morar no Recife ainda criança. Nesse sentido, guarda uma relação afetiva explícita com os dois países, que aparecem trançados em seus versos, que ora podem ser ouvidos com sotaque de lá, ora de cá. Romaria, como coletânea que é, reúne poemas de dez livros publicados pela poeta, além dos inéditos de 2022, conjunto intitulado “Argila da palavra”. Os demais títulos são: Aromas da infância, publicado em Lisboa em 1965; Fio de lã, publicado no Recife em 1979; Giestas, Recife, 1980; Flauta e gesto, Recife, 1983; Relógio d’água, Recife, 1985; Outro corpo, Recife, 1989; Recado de Eva, Galiza, 1990; Dança das heras, Lisboa, 1995; Fonte de pássaros, Recife, 1999; e Rumor de vento, Recife, 2009. A seleção dos textos é enriquecida pelos fac-símiles das capas de todos os livros, nas aberturas das partes ou seções da obra, um modo de capturar as edições de cada momento da trajetória poética de Hortas, além da demonstração de cuidado da Macabéa com o que faz.

Minha intenção não é comparar Maria de Lourdes Hortas a ninguém, embora sempre se possa fazer o exercício de encontrar uma possível linhagem ou tecer argumentos para as semelhanças e diferenças desta ou daquela voz poética na relação com suas antecessoras ou contemporâneas. O que prefiro fazer é expressar meu absoluto encantamento com poemas que li na coletânea Romaria, que apresenta um panorama honesto da trajetória poética de uma escritora relativamente pouco conhecida no Brasil. Não será, infelizmente, a primeira nem a última poeta a padecer de certo esmaecimento, soterrada talvez pelas hegemonias brasileiras e seus ecos geográficos, que, afinal, terminam mesmo é por nos dificultar uma noção mais diversa e ampla do que se produz no país. Maria de Lourdes Hortas deve ser lida, hoje e sempre.

Dos poemas anotados, posso exemplificar o traquejo migrante, coisa de quem transita entre dois mundos, transatlanticamente, na condição de quem pôde, de certo modo, escolher. Em “Fio de lã” (poema do livro homônimo), a voz lírica viaja de Portugal ao Brasil, fazendo câmbios culturais e poéticos que marcarão sua poesia inteira.

De minha fase europeia:
amorenei, inteirinha.
[…]
(Se esqueci das amoras?
Das quintas e das latadas,
das fontes, grilos, giestas,
primaveras e outonos?)

Passei a colher pitombas,
jambos, mangas, carambolas,
e me entreguei à passagem,
às praias, coqueiros, pontes.

Mais adiante, aparecem caçadas de poetas, poemas de partidas e chegadas, com a intensidade declarada neste verso de “Palavras-sangue”: “De resto,/ as palavras substituíram meu sangue nas veias”. E assim segue a coletânea, fornecendo uma pequena amostra de cada título, sempre entre rimas e pequenos sustos poéticos, em textos às vezes muito breves, mas em sua maioria longos, em linguagem descomplicada, mas cuidadosamente arranjada, de modo a que a sensação inequívoca seja: estou diante de uma poeta.

No livro de 1985, encontrei “Prisão perpétua”, que bem poderia ser um grito de hoje, mas também faz sentido que seja de quando é:

Então
o masculino Senhor disse:
vai, Eva, e nutre a vida
com o suor dos teus sonhos.
Não te esqueças, mulher,
que inventaste o amor.
E isso é imperdoável.

Para além das releituras bíblicas e da abordagem crítica das questões femininas, a poeta trata de questões sociais que jamais deixaram de merecer atenção, isto é, não descansa seu olhar na paisagem, como se poderia dizer de uma “poetisa” e suas mal atribuídas delicadezas; esta voz lírica perscruta, é ativa, se recusa à resignação diante do mundo, do que vê, do que experimenta; não admite o abandono e a fome; observadora em desassossego, esgrime a poesia como lâmina, o sangue quente das palavras, sangue que ferve, talha.

Em “Louça partida”, a voz lírica pergunta: “Que mão me recolheria toda?”. Hoje, uma resposta possível é que editoras mulheres têm feito o imenso e relevante trabalho de recolher a poesia completa ou em coletâneas de escritoras como Maria de Lourdes Hortas. Não basta, como sabemos, mencioná-las em listas de poetas “esquecidas”. Entender a edição de livros como gesto firme e político é fazer o que a Macabéa tem feito: republicar, refazer, dor novo alento aos livros esgotados ou escondidos em remotas prateleiras, de modo a reiterar o que nunca perdeu a majestade. Numa oportunidade dessas, tornei-me romeira.

1 comentário em “Romeira convicta”

  1. Excelente resenha.
    Conheço Maria de Lourdes Hortas desde o tempo em que residi em Natal, e sempre a admirei pelos poemas e por seu trabalho como editora.

    Responder

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!