Seguros e provocadores: sobre os contos de Marcela Fassy

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Por Ana Elisa Ribeiro, escritora, editora e professora mineira.

Recentemente, postei um texto no Facebook sobre a dificuldade de conseguir publicar um livro de contos por uma editora de mais alcance. As pessoas foram solidárias comigo e, em muitos casos, declararam adorar a leitura de contos, narrativas breves etc. É amor demais, mas ele não corresponde às planilhas de vendas dos grupos editoriais mais organizados (com raras e consagradas exceções, claro). Outro contrassenso foi o resultado da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em sua sexta edição, divulgado no final de 2024. Segundo as respostas da maioria dos entrevistados, o gênero mais lido é o… conto. Isso me encafifou ainda mais. Se as pessoas realmente gostam de ler e consomem livros de contos, por que isso não se reflete nem nas vendas dos livros, nem no acesso às editoras? Na cena literária, e mesmo entre leitores que não são escritores, depois de, eventualmente, alguém elogiar uma autora (ou um autor) por um livro de contos, vem a pergunta fatal (e em algum grau antipática): Quando é que sai o romance?

Tenho a desconfiança de que os contos talvez ainda sejam abordados na escola. Assim como a crônica, eles são textos de menor extensão, embora possam ser muito densos, e correspondem melhor às leituras mediadas, ao timing fragmentário da organização escolar, à possibilidade de ler coletivamente, comentar, discutir, debater e passar para a próxima faixa. São como os antigos discos, os objetos compostos de seções ou fragmentos, com as instabilidades que isso pode apresentar, que também são compreensíveis, e até esperadas. O livro de contos, se não for apenas um amontoado deles, assim como os livros de poemas, pode ser lido com a cadência da vida moderna, urbana, entre uma estação do metrô ou do ônibus e outra, entre os dias da semana, incluindo os que expulsam a leitura do cotidiano, sem parecerem muito disparatados. Lê-se um conto, passam-se uns dias, lê-se outro, e não é preciso recuar, nem perder o fio de uma meada mais longa e mais embolada.

Uma das editoras brasileiras que vem publicando contistas é a Urutau, do interior de São Paulo. Geralmente, os títulos são selecionados por chamadas públicas e muita gente boa tem aparecido daí. Os livros são reconhecíveis pelo projeto gráfico, mais ou menos padronizado. E é nesse catálogo que está o livro da mineira Marcela Fassy, autora de As putas escrevem, publicado em 2024.

O chamativo título da obra não coincide com os títulos dos contos, como acontece em muitos livros do gênero. Marcela Fassy (e seus editores?) o tirou de uma das primeiras frases do conto “A solidão das putas”, incluído na terceira a última parte do volume. Aliás, os dezoito contos estão divididos assim: cinco na parte I – O muro; seis na parte II – O e-mail; e sete na parte III – O livro. Todos os textos mostram uma escritora segura, tanto em relação à língua que maneja, quanto nos desenhos, por vezes surpreendentes, das histórias que conta.

Os temas abordados nos textos não fogem do repertório humano, ou seja, o amor, a frustração, a família, a memória, o sexo (homo, hétero, bi), a própria escrita, a própria literatura, a vida, em suma. No entanto, para quem entendeu que a literatura só é o que é porque vai além do seu assunto, Marcela Fassy e suas narradoras (e narradores) fazem proezas tais como a sinuosa, sedutora e incrível história narrada em “Frágil silhueta sobre um Moleskine azul” ou a delícia de ler seu “Pequeno inventário de furtos”, que, aliás, me deu ideias para uma divertida oficina (proporei a ela).

Sou leitora interventora. Marco as páginas, anoto às margens, sublinho a lápis. Isso tudo é índice de uma leitura interessada, mobilizada, provocada. Livros sem rabiscos são silenciosos demais. Marcela Fassy, a autora por trás dos contos, sabe cutucar a onça, e o faz com uma vara diligente e precisa.

Bem, sem dar spoilers e sem questionar sobre um futuro romance, prefiro dizer que As putas escrevem é um puta livro, suficientemente bom para ser degustado com prazer, sem deixar lacunas. Conta com texto de orelha de Natália Zuccala, epígrafes bem escolhidas e agradecimentos a muita gente que, como sempre, está em torno de quem se lança aos voos da literatura. Vale a leitura e, claro, a compra.

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