Alex Sampaio Nunes é autor de “Ressuscito na Cidade Suicida” (2017) e colabora com a Revista Acrobata com uma série de resenhas/diálogos sob o título de “Vozerio Piauiense”.
Mar Grave é o primeiro livro de Renata Flávia, piauiense, nascida em Teresina no ano de 1989, graduada em História, mestra em Educação e servidora pública. O livro foi publicado em 2018, pela editora mineira Moinhos (selo Pontes Poéticas), com prefácio da escritora gaúcha Paula Taitelbaum, e mistura, em 60 páginas, poemas em prosa e poemas em versos livres. Está disponível em formato físico e digital pelo site da editora.
– Renata, por que você escreve?
– Costumo dizer que é a minha forma de existir. Escrever é quando consigo criar, ver, transformar, não é algo que tenha uma justificativa lógica ou acompanhe um formato próprio, escrever é, porque é o existir, além do macramê e do criar com as mãos.
Mar Grave possui três partes: Obsidiana, Histeria e Voragem. A primeira parte, mais introspectiva, prepara o leitor para a segunda parte (que possui um discurso feminista mais direto), culminando na última parte (textos com discurso político contrário ao status quo).
“Obsidiana”, além de título da primeira parte do livro, é uma rocha ígnea, quase totalmente feita de vidro vulcânico. Nas minhas pesquisas, ainda encontrei informações de que essa rocha tem a ver com purificação de energias. Os poemas começam descrevendo uma apatia (faltam sensações, mas nunca faltam sentimentos), para, em seguida, tudo queimar, arder. Da mesma forma acontece com a rocha: aparentemente apática, também é arma.
“serve, se você se apresentar de novo
Se a conversa sair com soluços da falta de assunto
(…)
Serve, se você acender de novo
Voltar a ser cometa
Me bombardear no deserto de mim mesma
Com vontade, queimar”
(página 16)
“cheiro de passado por toda casa. não choveu, nem fez sol. acho que essa indefinição é que faz a lembrança retocar sua maquiagem (…) pinto os olhos e me mando pro bar mais central da cidade”
(página 17).
“entre a cor do dia e a nuvem parada dentro dessa sala
(…)
Redecoro a casa em cozinha com parede de mar pra que todo e qualquer barco possa flutuar desapegado dessa sina de querer tudo dentro de um só lugar”
(página 26).
“Histeria” é a segunda parte do livro. Com forte punho feminista, os poemas apresentam a mulher como indivíduo e como coletivo. O simples sussurro da existência da mulher nesta sociedade já é barulhento para os ouvidos opressores. Mas a mulher também é uma comunidade e desta recebe muitas existências. Assim, uma e muitas, estão todas em necessário levante.
“sofro de um mar grave, um mar doente e revolto, que se instalou entre minhas costelas. Respirar é muito barulhento (…) dentro da noite apenas sussurro minha existência” (página 29)
“existe uma floresta dentro de mim
uma selvagem que só acha
equilíbrio com novas paisagens” (página 30)
“Tenho que as raízes são de outras vidas
Tão profundas como o destino
E que tenho mais de minha mãe do que imagino” (página 32)
“E que o chão é uma mulher
Nossos pés se arrastam pela sua pele
E todo passo é um risco
de tudo se levantar” (página 33)
– Renata, Mar Grave é a resistência da mulher nesta sociedade?
– Espero que sim, porque, como mulher e dentro desse sistema historicamente construído de maneira a podar e coagir o feminino, é necessário que sejamos e façamos da criação resistência.
– Como é gritar em estado de afogamento?
– É a única forma de sobreviver e mais uma vez existir. Ou você rosna, ou é arrastada.
“Voragem” é a última parte do livro. Aqui há protesto, contestação, gritos e vontade. “Em estado de guerra, eu abraço!” (página 47), “explode em gritos a cidade violada” (página 48), “ressuscitávamos anarquistas esquecidos (…) quando entenderão a força de nossas línguas poéticas?” (página 51), “a praça da bandeira sorria decapitada pela sua última reforma” (página 52). Muitos poemas da terceira parte me remeteram ao movimento #contraoaumentothe (protestos de rua contra o aumento da passagem de ônibus ocorridos em Teresina nos anos de 2011 e 2012), no qual estiveram presentes a autora e a cidade.
– Renata, como foi o processo de escrita do Mar Grave?
– Mar Grave é o primeiro, minha porta, ele foi escrito com tudo. Tem poemas de antes do Lustre de Carne (blog que comecei em 2007) e tem poemas escritos na hora em que estava organizando, inclusive o último da última parte foi escrito minutos antes de enviar as últimas correções para a editora, foi como um ritual de fechamento. Acredito que o processo maior foi organizar, criar a liga da escrita de antes e de agora, foi uma experiência que me ajudou a olhar todo o processo da minha poesia.