Tradução Marcus Groza
Claudia Masin é escritora e psicanalista. Atualmente vive em Córdoba, Argentina. Coordena oficinas de escrita. Foi docente da disciplina Poesia no curso de Artes da Escrita da Universidade Nacional das Artes da Argentina. Seu livro La vista ganhou por unanimidade o Prêmio Casa de América da Espanha em 2002. Seu livro Abrigo recebeu uma menção do Fundo Nacional de las Artes em 2004. Seu livro Lo intacto obteve um prêmio do Fundo Nacional de las Artes da Argentina. Textos seus foram traduzidos para o francês, inglês, sueco, português e italiano. Participou de leituras, festivais e encontros de poesia em seu país de origem e em vários outros países, incluindo Espanha, EUA, Colômbia, Chile e Uruguai.
Poemas publicados no livro “A Plenitude/ La Plenitud”, de Claudia Masin (Ed. Primata – 2019).
A graça
Às vezes, muito raramente, um encontro nos comove
de uma forma que não pode ser atenuada pelo pensamento
ou pela linguagem. É que traz uma memória
do que foi intimamente conhecido e desejado, mas acabou
deslocado para um lugar inalcançável, de onde não saberia voltar
a menos que uma pessoa – entre todas – o chamasse. Somos
criaturas tímidas que não encontraram, em resposta
a sua curiosidade e paixão pelas coisas, mais do que dano
ou repúdio. Como animais que lutaram muito por sua vida,
não sabemos o que fazer com a alegria, e se ela vem,
continuamos fugindo para nos salvar. Se conseguíssemos vencer o terror,
se permanecêssemos, poderíamos recuperar algo
perdido há muito tempo. A felicidade mais plena é uma felicidade física
e deveria se produzir apenas uma vez,
antes de conhecermos as palavras. Seu regresso é sempre
um instante de graça que nos devolve o amor com que um dia
a materialidade do mundo havia nos tocado.
A crosta
É possível entrar na infância de outra pessoa.
Não falo de inventar uma história suficientemente bela
ou triste, ou estranha, que nos dê a ilusão de estarmos unidos,
mas de entrar, como entra a raiz de uma árvore na raiz de outra,
quando o espaço que as separa é pouco. Falo
de troncos diferentes crescendo em um solo comum,
em uma mesma direção, de tal maneira
que não se poderia derrubar uma sem resultar
na queda de ambas. É possível entrar assim,
não em um corpo, mas na memória desse corpo,
na reverberação do impacto que causaram sobre ele
as primeiras vozes escutadas, em sua alegria
diante da experiência do contato físico, do encontro
com as forças tremendamente violentas do que está vivo. Podemos
saber do pavor que o isolou desde então,
o fez se fechar em si mesmo para não ceder ao desejo de ser tocado
e de tocar. Talvez haja uma forma de compaixão
ou acordo capaz de transpassar a dura crosta
da própria vida, pequena demais para abarcar
a intensidade do mundo, tão extrema
que só podemos suportar em companhia.
A geada
Quem foi arruinado carrega consigo esse dano,
como se sua tarefa fosse propagá-lo, fazê-lo impactar
sobre quem se aproxime demais. Somos
inocentes diante disso, como é inocente uma geada
quando devasta a colheita: está nela seu frio,
sua necessidade de cair, havia esperado
– formando-se lentamente no céu,
no centro de um silêncio que não podemos conceber –
seu tempo de brilhar, de se desprender. Como suportarias
viver com semelhante peso sem desejar o alívio,
ainda que nesse ímpeto destruas a terra,
as casas, as vidas que se sustentam, afáveis,
no trabalho de manter o mundo a salvo,
durante longas estações em que o tempo se divide
entre os meses de colheita e semeadura? Rogo por essa força
que resiste à catástrofe e refaz o que foi ferido todas as vezes
que for necessário, e também pelos danos que não podem ser evitados,
porque o que nos damos uns aos outros,
mesmo o terror ou a tristeza,
vem do mesmo desejo: curar e ser curados.
O soterramento
Antes que os sentidos se embacem e se acostumem à vida,
há uma época em que tudo o que nos toca produz
um ofuscamento, um leve, ainda que profundíssimo,
tremor de alegria e medo: a saliência sutil, quase invisível,
da nervura de uma folha, as erosões
e canais do corpo de uma pedra,
a vibração que deixa o toque de um ser vivo sobre a pele,
o calor irradiando-se em ondas que se apagam lentamente.
Depois vem o hábito, um fogo-fátuo
que não sabe queimar nem proteger ninguém do frio
com sua presença. A capacidade de sentir é encoberta
pelo gesto que deveria acompanhar uma emoção,
porém é tudo o que resta dela,
um sedimento irreconhecível do que já foi certo,
da mesma maneira que um coral fossilizado no fundo do mar
é o que a vida – perfeita um dia na precisão de sua tarefa –
deixa quando se esvai. Seria necessário,
para voltar a estar no mundo, um cataclismo,
uma sucessão de fatos que escave
as fundações da pequena cova que construímos,
sem lugar para a luz, para a companhia dos outros,
seria preciso uma demolição que chegue subitamente
e nos surpreenda? Talvez não pudesse ser de outra maneira: o soterramento,
resultado de milhares de pequenos fatos e sensações
que deixamos passar com indiferença, quando se desencadeia
não deixa nada em pé: é a nossa própria força,
a do apego irrenunciável ao mundo, a que retorna com ele,
é o olhar, o tatear que apenas começa a conhecer os objetos,
são nosso assombro e atenção que retornam,
transmutados em violência,
porque apartar o corpo do que lhe traz felicidade,
deixar até de percebê-lo, é causar uma ferida
na frágil crosta do universo, muito mais sensível
do que nós, muito mais indefesa.
O descanso
E há, entre todos aqueles que se amam, alguns a quem não é dado
desfrutar do descanso nos braços do seu amor. A esses,
a serenidade do coração não os alcança, e lhes cabe o ofício
constante de inventar – para poder saber um do outro –
uma linguagem de sinais semelhante à dos barcos
que por meio de luzes ou sirenes se chamam de noite,
às vezes se correspondem, às vezes se ignoram e se tornam
solitários e calados como criaturas
do fundo do mar.