Cachoeira Devastando Desertos – Poemas de Ornella Rodrigues

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Ornella Rodrigues tem 41 anos, nascida e criada em Santos\SP. Escritora, poeta, fotógrafa e arte-educadora, seu processo artístico dialoga entre versos e imagens. Em seus últimos trabalhos “Cartografia afetiva, ancestralidade viva” e “Lua em exílio: amor em tempos de pandemia” (ambos elaborados com fotos e poesia), a artista revela sua busca por identidade, ancestralidade e, sobretudo, amor e afetividade. Possui um livro publicado intitulado “Como domar um coração selvagem”, lançado em 2018 pela Editora Fractal, alguns trabalhos acadêmicos vinculados a movimentos sociais e fez parte de várias antologias poéticas no Estado de São Paulo.


1.

Banhei minha guia
De Yemanjá
Nas ondas
De Ondina
Fiz minhas preces
Pedi a benção
E segui
Onde mora teu coração?
Perguntou Ogum
É no mar, moreno
É no mar
Onde planto minha fé
Minha gratidão
Rio nasce
Pequeno
E corre
Pra virar Oceano


2.

Se eu tivesse
Um menino
Saído do meu ventre
Gerado com todo amor
Nas minhas águas
Se eu tivesse
Um menino Lindo
Preto como eu
Cabelos e olhos pretos
Como os meus
Sorriso de pérolas
Andar altivo
Jeito brincalhão
Se eu tivesse
Essa benção
E meu menino
De sorriso
De olhos
De braços de menino
Fosse brincar na rua
Se meu menino
Andasse na calçada a noite
Se meu menino
Fosse pra escola
Se meu menino
Demorasse pra chegar em casa
Se ele não avisasse
Que chegaria tarde
Se meu menino
Fosse brasileiro
O que seria de mim?

(Em memória de João Pedro, morto pela polícia em maio de 2020)


3.

Nesses tempos
Tão áridos
Ser molhada
Não basta
Então
Me fiz cachoeira
E caí
Da rocha mais
Alta
Devastando
Securas
Sertões
Desertos

Não sei se adiantou
Não sei se abrandou
Não sei se fertilizou
Mas molhei
Mas encharquei
E me deixei

Até que no meu
Corpo
Não sobrasse nenhuma
Gota
Até que no seu
Corpo
Eu transbordasse toda


4.

Quando era pequena
Eu me sentia diferente
Das outras crianças
Desde pequena
Olhava pro meu irmão
E via nele meu espelho
Meu alento
Saía pelo quintal
Brincava na rua
E olhava o mundo
Com muitas cores
As cores dos meus pais
Eu não enxergava o ódio
Eu não via diferença
Amava igual
Mas quando cresci
E o racismo
Bateu na minha cara
Pela primeira vez
Eu enxerguei
Quanto o ódio
Rejeição
Intolerância
Estavam marcados
Pelo meu corpo

Na minha alma
O racismo
Destruiu meus sonhos
E pra sobreviver
Me tornei poeta
Mas nunca mais olhei o mundo
Da mesma maneira
Sem sentir
A dor de ser negra


5.

Preciso curar
Essa fratura
Exposta
No meu peito
Esse coração
Partido
Por todos amores
Fracassados
Perdidos
Preciso fechar
As feridas
Dos abusos
Das mágoas
Das desilusões
Essa dor
Que insiste
Em me embrutecer
Preciso deixar
Na beira do abismo
Meu medo
E seguir
Rumo ao mar
Preciso carregar
Meu corpo cansado
Do racismo e do machismo
Co ti di a no
Pra lavar nas águas
Salgadas
Preciso secar
Essa lágrima
Que insiste
Em brotar
Toda vez que sinto
Esse banzo
Essa coisa tamanha
Que só quem tem
A pele preta
Sabe como é
Eu preciso me curar
E o remédio
Se chama
Amor

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