Cobra: Força, Vida, Troca de Pele, Ressurreição, Infinito

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Por Alexsandro Lino*



Enquanto lia “A proporção áurea do caos”, eu percebia que a Cobra, como um símbolo arquetípico/ancestral, rastejava por aquelas páginas. Sabe aqueles signos que nos contagiam com poder? O rastejar no chão como catalisador da força que a gente já carrega dentro de si. O contato com a terra embaixo da gente. Terra que cobre os corpos e ossos de nossa ancestralidade outrora encarnada. Pés no chão. Pele no chão. Coisa que tem sempre de estar na nossa cabeça. Para a gente nunca se esquecer de quem a gente é; e se lembrar de quem veio antes da gente. A memória-resistência. Cobra, bicho sem braço nem perna; bicho cuja força simultânea de ataque e defesa fica na boca. E assim a gente vive e sobrevive na palavra, pela palavra, com a palavra: tanto a nossa, quanto a do Outro; tanto o Eu, quanto alteridade. Conheci o conceito de autoficção graças à escrita de uma mulher, numa obra indicada por minha orientadora de mestrado (Tânia Lima), e desde então penso muito no quanto esse conceito é libertador, transgressor e potencializador: subvertendo os limites artificiais dos gêneros do discurso, a gente escreve numa bricolagem de realidade e ficção, derretendo as paredes – outrora sólidas? – que tentavam isolar o eu biográfico do eu imaginado – ficcional, mas nem por isso menos real. Aline Cardoso inicia “Ritos encantatórios e outras ladainhas” fincando, com força, os pés no chão da identidade: “Eu sou negra e potiguara”. A firmeza desse posicionamento orienta sua escrita. E esse “sua” inclui todo o passado, o presente e o futuro que a constituem: a bisavó arrastada, domada, marcada e estuprada pelo invasor; a vó parteira; a mãe; ela mesma, professora: “eu quero tá dentro da escola pública. Pobre bem informado é hidra”; e sua filha.

Nossa biografia, nossa vida, é o que a gente foi, é, será; fez, faz, fará; sonhou, sonha e ainda vai sonhar. Existe algo mais biográfico do que nossos desejos, sonhos e delírios? Ainda que algum distanciamento seja sugerido (“Pensava que você saberia diferir um eu-lírico de um escritor”), quantos rastros de si artistas da palavra não deixam em seus escritos? O mundo e suas instituições (que nos regulam e tentam, o tempo todo, nos castrar e controlar) podem interferir até no que o nosso eu mais profundo é e deseja, mas a escrita, a leitura e a arte (literária especialmente) existem para a gente se cavar e cavar os outros, sempre em busca de mais (auto) conhecimento. É uma arma que temos. São nossas presas, nossa peçonha. Nossa arte-ataque. A única coisa que nos desarma é o amor. E nem sempre deveria. Não esquecer: cobras, mesmo as venenosas, podem matar até com um abraço – ou pelo menos paralisar quem nos ataca, como um alerta. Porque há caminhos que só têm estrada de ida (“Nada pode ser carbonizado duas
vezes”) e, assim, às vezes, não há mais volta.

Momentos de quietude, gestos de pulsão de morte (“acender um cigarro pra abreviar os dias”), gestos de pulsão de vida (“Minha cabeça não acredita que me privar das minhas vontades vai me fazer uma pessoa melhor pra nada”), momentos em que a tranquilidade e a paz incomodam (“Tudo muito pacífico. Muito pouco sanguíneo. Não dá pra surfar sem onda”), atos de descolonização (“eu não penso pela lógica cristã”), a consciência da morte (“Essa certeza constante do fim”). Afastando-se das formalidades e arcaísmos de Machados e se aproximando de Marcelinos, a autora não dispensa palavrões, usa o “tu” do jeito que usamos coloquialmente (inclusive alternando-o com o “você”) e dribla, rebelde, tanto algumas gramatiquices das “normas urbanas de prestígio”, quanto o pudor que tiraria as cores e a força do erotismo direto e ambíguo de sua escrita: “Dentro daquele poema ela fodia comigo além do tempo”. Das leituras que fizeram a leitora Aline virar a escritora Aline, fica um exercício para nós: identificar as intertextualidades de seu texto, desvelando as músicas, livros e artistas que a habitam, antropofagicamente. Escritora que se inscreve, se faz, se organiza e se cura por meio de sua escrita-necessidade, escrita-posicionamento, escrita-desabafo: “Eu escrevo porque eu preciso, e eu não vou parar de fazer”. Nossa arte-terapia. Que a liberdade da escritora nos seja contagiosa: “eu não tenho nenhum dilema moral em passar dos limites. […] Eu sei que somos cruéis. E está tudo bem em admitir. Pra que isso de esconder os dentes? Mostre seus dentes, os meus estão aqui, e eu inclusive gosto bastante de usar”; e que a gente aprenda, com ela, a colocar quase todos os sete pecados num mesmo parágrafo (e na vida) sem culpa: “Ira engana inveja que tem gula da luxúria que não teme a preguiça nem a avareza de não querer que o outro […]”. Escrevivências. Outra palavra que me prende e me liberta. As escritas que contêm VIDA – real e imaginada, sentida e sonhada. Passe a página para abraçar as palavras que te farão pensar, repensar, sentir, sorrir, aprender, viver: “sorver a palavra direto da fonte”.


Alexsandro Lino é professor da rede pública e formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisou sobre a formação da identidade das personagens de Lygia Fagundes Telles em “As meninas” e atualmente estuda os romances “Ciranda de pedra” (da mesma autora) e “A confissão da leoa” (do moçambicano Mia Couto), investigando como a morte (literal e simbólica) atua como catalisador no desenvolvimento humano das protagonistas desses livros.

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