OS QUADRINHOS NO LIMITE ENTRE A FICÇÃO E A VIDA: O PROCESSO CRIATIVO DE FELIPE PORTUGAL

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Por Aristides Oliveira e Bernardo Aurélio

VASCULHANDO ARQUIVOS: Resolvemos resgatar essa entrevista realizada há quatro anos atrás para ampliar as ideias de um artista que merece ser lido com frequência: Felipe Portugal.

Nascido em São Paulo em 1991, já chama Teresina de “minha cidade”. Tudo começou com aventuras no terreno desbravado da internet nas redes sociais. Uma, duas páginas com mais de 60 mil curtidas no Facebook colocaram seu nome em discussão. Forjado no calor das batalhas dos tokusatsus da rede Manchete, dos animês da Band e dos jogos do seu Super Nintendo, ele estava bem preparado para dialogar com uma infinidade de nostálgicos leitores: como prova sua primeira publicação impressa, Badonkadonk. Mas a vida não para por aí e prova ser uma fonte inesgotável de inspiração e foi daí que surgiu sua segunda revista impressa: Espiga, que atingiu críticos especializados de todo o Brasil.

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Aristides: A partir de que insight você percebeu que os quadrinhos poderiam se transformar numa forma de expressão pra você?

Lá atrás – em 98 ou 99 – eu fazia uns gibis sozinho. Era minha forma de transformar as coisas que saiam da minha cabeça em histórias (em sua maioria fanfics de Dragon Ball) desenhadas de lápis num papel sulfite dobrado ao meio. Com 20 anos eu retomei essa essência que eu tinha guardado como uma forma de me conectar a infância, uma relação que eu sentia falta. Em algum determinado momento a linguagem que escolhi pra mediar esse laço se tornou pública.

A presença na internet cresceu e a partir daí quadrinhos se tornaram outra coisa pra mim. Se tornaram uma extensão do que eu sou, além do objeto de estudo e de interesse do meu dia a dia

Aristides: Um dos meios que você utiliza para expandir seu trabalho está nas redes sociais, com uma vasta interação dos leitores, além da sua participação em eventos de grande porte como a FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos). Muitos artistas locais ainda utilizam-se da falácia de que, para fazer sucesso é preciso morar nos eixos Sul-Sudeste, pois é lá que “teremos visibilidade e reconhecimento”. Quando foi que você percebeu que o potencial dos seus trabalhos podia te levar tão longe, morando no Piauí? Você concorda que ainda existe a barreira geográfica (centro-periferia) para alcançar o grande público?

A Internet mudou nosso século. As dinâmicas sociais e midiáticas mudaram bastante. Isso tem um impacto muito positivo para um artista. Nesse breve momento que estamos, a internet ainda é uma trincheira democrática onde um desconhecido consegue ter voz tão grande quanto um empresário que investe nisso, a arte pode ser viralizada. Foi isso que aconteceu comigo quando comecei a publicar minhas tirinhas na internet. Inocentemente comuniquei uma mensagem que as pessoas gostariam de ouvir e a página foi crescendo gradativamente, daí surgiram oportunidades.

Tenho uma certa facilidade de me comunicar com a cena do Sul, sempre foi muito comum pra mim falar com gente de fora. Conheci uma penca de gente assim, seguindo essa cartilha da amizade virtual. Uma amizade leva a outra, investi em algumas viagens – como a do FIQ, que você cita – e lá busquei conhecer mais gente. Editores, jornalistas e quadrinistas. Independentemente dessa facilidade do contato, a proximidade geográfica ainda facilita em algumas coisas. Fazer amizade e lobby não funciona muito bem só por Whatsapp ou Facebook. As pessoas tendem a te dar mais oportunidade de mostrar teu trabalho se elas olham no olho de uma pessoa real. Mas ainda estamos bem melhor que antes.

Bernardo: Antes da página “Quadrinhos Insones” no Facebook havia a “Dadaísmo em Quadrinhos”, mas as atividades da Dadaísmo foram encarradas por volta de dezembro de 2015. O que houve? São propostas diferentes? Participantes diferentes?

Eu não me interesso mais pela proposta da página. Quero outros públicos, quero criar outras histórias. Por muito tempo foi divertido e sincero fazer quadrinhos sobre melancolia diária e como eu me sinto quando corto o cabelo ou levo um pé na bunda. Mas pra mim já deu. Eu mudei significativamente e agora minhas aspirações são outras. Parei de postar como uma atitude de respeito com o público e com o que a página foi pra mim. Prefiro deixar ela lá, parada, do que enfiar coisas que não são do interesse daquele tipo de público e receber um vácuo infinito como resposta.

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A política do Facebook também me desanima muito. É injusta, é mercenária e alienante. A internet era um lugar onde tínhamos chances iguais de viralizar nosso trabalho e conseguir público e audiência. Agora as redes sociais exigem que você poste todo dia pra que os algoritmos deles te deem “relevância”. O que diabos é relevância? Você assina uma página porque você QUER receber a porcaria do conteúdo, oras. Forçar os produtores de conteúdo a criar alguma coisa todo dia em detrimento de visualizações só diminui a qualidade do conteúdo e transforma a internet numa segunda televisão.

Aristides: Como você avalia a produção de HQs no Piauí? Que nome(s) locais(l) você considera interessante na cena? Indica leitura pra gente.

Vai soar arrogante mas a verdade é que: eu me isolo muito. Não saio muito de casa para os eventos que promovem arte aqui. É uma opção minha. Fico em casa produzindo constantemente e fazendo outras coisas. O pró é que eu faço bastante quadrinho. O contra é que eu não conheço as pessoas que tem produzido aqui. Não conheço os quadrinistas, não conheço os artistas visuais. Sou um total analfabeto cultural ao que diz respeito a minha cidade. Ainda assim conheço algumas pessoas, como por exemplo o Narciso Rogério que trabalha ao lado do Thiago Ramos.

Já tive conversas maneiras com o Narciso e acho o trabalho do Thiago competente. Gosto de alguns traços do Joniel e sou amigo do Antônio Cardoso, que agora tá começando a se aventurar nos quadrinhos. O Bernardo foi a primeira pessoa que conheci da cena de quadrinhos daqui e sempre é muito solicito comigo. Acho que a produção dele é a que mais se comunica com a minha por aqui. Tem o Caio também que fez todo mundo cagar de rir com o All Hipsters Marvel. Ele é um cabeçudo de quadrinhos de herói e mercado americano. Uma amiga minha chamada Georgia Parente começou a fazer seus primeiros quadrinhos agora. Fiquem de olho, ela é boa.

Bernardo:Você se percebe fazendo parte de algum movimento dos quadrinhos nacionais? Quer dizer, é possível para você se perceber como integrante de algo novo para os quadrinhos brasileiros?

Sim. Por muito tempo tive receio de responder essa pergunta. Afinal de contas estando dentro de uma “geração” é difícil conseguir ter uma visão homogênea. Mas depois do último FIQ eu não tive dúvida. Claramente você tem um pessoal mais velho como Gustavo Duarte, Fábio Moon, Gabriel Bá, Rafael Grampá, Rafael Albuquerque, Rafa Coutinho, Shiko, Danilo Beyruth, Marcelo e Magno Costa, por aí vai. Eles são a última geração sólida dos quadrinhos nacionais. Mas tem uma penca de gente nova que já tem ideias novas e estão trazendo inovação de conteúdo pra dentro da cena.

São gente jovem de 17 até 25, 26 anos, que se comunicam mais com os leitores recentes de quadrinho, fazem um trabalho muito passional e por vezes introspectivo, visceral, explosivo e político. Gente de Brasília, como os meninos da Mês, Lovelove6, Thais Koshino. A cena de São Paulo, com o Montanaro, Felipe Nunes e Pedro Cobiaco. Diego Sanchez também, no Rio – até dividimos uma página de quadrinhos no Facebook.

Embora existam outras cenas dentro do quadrinho nacional, como o pessoal de Belo Horizonte (Os Caffagi, Damasceno e Garroucho, Ryot) acho que a minha geração está muito grande. Todo dia surge alguém novo que eu não conhecia fazendo quadrinhos. Isso é muito louco. Não sei se eu estou preparado pra ser só mais um nesse monte, queria ser o melhor de todos, haha.

Aristides: Levando em conta que seu trabalho é bastante conhecido no circuito, como você se articula no mercado dos quadrinhos? É possível sobreviver dos livros que está lançando?

Meu trabalho é conhecido na internet. São leitores diferentes. O leitor de nicho dos quadrinhos deseja ler uma história sólida e uma arte bonita – digo isso porque EU sou esse leitor. Não dá pra enganar ele com melancolia de facebook. Quando comecei a postar meus trabalhos na página eu era só um iniciante. Tem muita coisa horrorosa lá mas as pessoas gostam da mensagem.

É como um meme tosco: você não leva a sério a competência artística daquilo mas ele traz uma mensagem objetiva e fácil de se identificar. Dito isso, o leitor de internet não tá tão interessado em pagar 30 reais num livro. Ainda estou longe de conseguir sobreviver de quadrinhos. Posso dizer 5 pessoas que sobrevivem só de quadrinho aqui no Brasil além do Maurício de Sousa com a super empresa dele. É triste mas é um mercado que tá mudando. Vamos ver o que os próximos cinco anos oferecem pra gente em termos financeiros.

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Aristides: Como você define a expressão “Quadrinho Independente”? Me fala sobre a repercussão de Badonkadonk e Espiga fora do Piauí.

Quadrinho independente é aquele que tem todo seu processo controlado pelo autor. Quadrinho de autor – autoral – pode não ser independente. Editoras como Veneta e Mino trabalham num panorama autoral, mas a diferença é que eles controlam o processo em todas as etapas. Quando você imprime o quadrinho sozinho, edita e distribui ele sozinho você está sendo independente.

Claro, existem outras definições. O indie se tornou um estilo estético mas não necessariamente é independente. Badonkadonk foi minha primeira HQ independente. Já tinha feito zines, esse tipo de coisa. Pouca gente leu, vendi no FIQ e aqui no Piauí. Algumas pela internet, foi isso. Acho uma HQ divertida e bem ambiciosa pra um primeiro projeto. Eu era um moleque.

Ela é cheia de furos no roteiro, a trama é ilógica e alguns recursos narrativos estão lá sem precisarem, só porque podem estar. Mas ainda assim eu considero uma empreitada bem melhor do que boa parte das pessoas que estão começando.

Espiga foi meu segundo trabalho, depois de um hiato de um ano sem fazer nada significativo. Essa funcionou. Consegui fazer com que chegasse aos jornalistas especializados e tive uma resposta muito satisfatória da crítica.

Bernardo: Como se dá sua relação de autor independente com editoras como a Nemo ou a Mino? Como avalia a participação dessas iniciativas editoriais com autores como você, Diego Sanchez ou Pedro Cobiaco?

Conheço alguns editores, todo mundo muito interessado em discutir e todo mundo gente boa. Claro, tem sempre aqueles que nem olham na tua cara direito. Janaína da Mino é uma amiga pessoal minha, conheço o Guilherme Kroll da Balão Editorial e bati um papo legal com o Rogério de Campos, da Veneta, no FIQ. Ele nem deve se lembrar. As editoras estão abertas, sempre. Algumas mais, outras de menos. Essas pessoas que eu citei são pessoas que se importam com quadrinhos e procuram trabalhos de qualidade. Cabe a nossa geração mostrar a que viemos e entregar quadrinhos sólidos.

Existe uma discussão relevante sobre o mercado de quadrinhos ser majoritariamente dominado por homens e a invisibilização das mulheres, editorialmente falando. Os quadrinhos são um reflexo de uma sociedade inegavelmente machista, logo é bem óbvio que vamos encontrar sim editores que não estejam dispostos a dialogar com um trabalho mais feminino. As meninas já estão unindo forças e encontrando seus próprios caminhos no mercado. A voz do feminismo também está muito forte e esses editores que fecham as portas não vão mais poder ignorar isso por muito tempo.

Aristides: Me identifiquei com Badonkadonk porque me faz referência a geração 2000, que acompanhava os desenhos pela TV (tipo, Band Kids, como você aponta). A gente se divertia muito com os desenhos orientais e os super-heróis acabavam tornando-se uma referência para nossa imaginação. Pra você, como a TV te influenciou a escrever essa história? Como a televisão e o quadrinho se mistura na tua escrita visual?

Sempre fui muito individualista. Infelizmente. Quando eu era criança o que eu adorava fazer era: me isolar das outras crianças no quintal da minha avó e interpretar enredos e aventuras que eu mesmo criava. Não conversava muito com os primos e as outras crianças da vizinhança não pareciam muito dispostas a conversar. Então meu videogame era meu melhor amigo.

Desenhando minhas ideias e jogando Megaman X foi onde eu aprendi a ter alguma criatividade e que criar um mundo próprio na minha cabeça era muito divertido. Quando passei a fazer quadrinhos pra valer, depois dos 20 anos, o resquício que essa vivência deixou em mim foi a capacidade de criar universos que se comunicam com essa inocência boba infantil, usando elementos sobrenaturais e que parecem ser tirados de um mangá pra expressar a minha visão sobre os sentimentos e as humanidades, foco principal do meu trabalho.

Aristides: Espiga é um trabalho em que você expõe um lado muito íntimo da sua vida, o que nos leva a acompanhar um processo delicado de luta e superação. O que mudou pra você depois que a história ganhou o mundo? Transformar experiências pessoais em arte dissipa as feridas? Reinventa o olhar sobre o Outro (ou seja, aos personagens que você destaca na obra)?

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Usei em Espiga a arte como um recurso para me autocompletar. 2015 não foi um ano de flores na minha vida e o prelúdio disso foi a morte da minha tia no final de 2014. Ela me criou junto com minha mãe e minha avó – olha só, três mulheres – e isso deixou em pedaços a estrutura familiar e a vida sussurrou no meu ouvido que até as pessoas mais fortes podem cair.

A partir disso várias decepções e problemas pessoais foram me definhando e me transformando numa sombra do que eu já tinha sido um dia. Não queria sair de casa, não conseguia desenhar e muito menos estudar. Resultado: tranquei o meu curso, fiquei sem fazer nada. Um bobalhão completo. Só na cama o dia todo vendo filmes e saindo pra beber numa tentativa pífia de me distrair. Ao passo que o FIQ se aproximava eu lembrava como, em 2013, no mesmo evento, eu era muito mais seguro de mim.

Eu era feliz, estava produzindo e não tinha medo dos dias vindouros. “Felipe, você vai ficar dois anos sem fazer nada? Você vai perder o FIQ? Você vai congelar no tempo?”. Espiga foi a minha resposta. Queria entender porque raios estava dando tudo errado na minha vida e projetei um personagem que estava passando por tudo aquilo que acontecia comigo, tentei enxergar o mundo através dos olhos dele e cheguei à conclusão que o que deveria ser feito era ressignificar as memórias e me levantar. Quando terminei a HQ e enviei o PDF final pra gráfica eu só deitei na cama e tentei sentir as coisas. Estava tudo diferente. Hoje em dia eu enxergo com mais lucidez esse período, certamente não vai acontecer de novo, minhas mãos voltaram pras rédeas da minha vida.

Aristides: Qual o limite entre o real e o ficcional em Espiga?

Considerável. Transformei alguns sentimentos em coisas mais palpáveis dentro da HQ. Não levei uma surra, não tomei café com uma prostituta e não xinguei meu pai – coitado, acho que ele nem merece.

Bernardo: Antes de Espiga e Badonkadonk você produziu muitos fanzines, entre eles tem um que conheci e gosto muito: o Menino Concha. Certa vez você me disse que esse material fez parte de uma fase experimental e que mesmo Badonkadonk não dialoga mais com você, com a “fase” que está vivendo hoje, se é que posso dizer assim. Qual o significado e a importância dessas HQs e dessa fase que já passaram? Elas realmente já passaram?

Boa pergunta. Quem tá chegando de paraquedas no meio dos quadrinhos tem que experimentar de tudo, fazer de tudo até encontrar sua linguagem. Por um tempo achei que Badonkadonk era o estilo que melhor me comunicava ao mundo. O herói shonen e a sua fúria passional. O Menino Concha foi uma história sobre deslocamento e fuga. Nem sei encaixar direito aquilo num gênero. Embora eu tenha muito carinho pelos dois eu enxergo várias falhas que refletem o quão eu era ingênuo para com a linguagem de quadrinhos na época. Um pouco de cada eu ainda levo em mim mas a minha vontade é executar as ideias dessas histórias de uma forma mais consciente e relevante.

Bernardo: Você é formado em História, certo? Como sua formação influenciou de alguma forma sua produção de quadrinhos? Fazer quadrinhos pode ser considerado um hobby, uma profissão ou uma teimosia?

Teimosia, certamente. O curso de história influenciou muito mais a minha vida e concepções pessoais e políticas. Talvez a maior contribuição dele aos quadrinhos foi um modo mais cíclico e alegórico de enxergar as relações pessoais. No futuro pretendo dialogar mais o que aprendi academicamente com o que produzo artisticamente. Por enquanto eu sou só um graduando que não sabe de nada.

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Originalmente publicada na Revista Desenredos em agosto de 2016.

Foto de abertura: Even-Grazielly

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