Andriele Moraes, 26 anos, pernambucana, jornalista e co-criadora do grupo e podcast “Clube do Livro Feminista”. Já publicou contos diversos contos em revistas literárias como: Mallamargens, Philos, Arara e Acrobata.
A Matéria do Nada
Eleonora havia se tornado a sombra do próprio marido. Não pensava mais com sua cabeça, tampouco sentira as emoções que percorria as células de seu corpo. Daquela mulher se via apenas Eduardo, com quem vivia há 15 anos. Nesse tempo, o aspecto infundia terror à própria imagem. Temia olhar-se no espelho. Ali, resignada às atividades domésticas, sentia repulsão ao que se tornara a matéria do nada.
Das poucas vezes que saia de casa, Eleonora perguntava aos colegas de sua existência. “Olhe pra mim e me diga se eu existo. Eu existo?”, falava num tom alto que era para todos escutarem. Daquela pergunta, ninguém compreendia o verdadeiro significado. Alguns riam, outros se assustavam, poucos levavam a sério. A mulher queria saber se seu corpo, por culpa de Eduardo, já não existia mais.
Exprimia, nos pensamentos, cada resposta que daquela gente saia. Isso a exasperava. Seu marido, um homem alto, extraordinariamente magro, castigado pelo trabalho desde pequeno, parecia sentir repugnância pela mulher que escolhera passar a vida. Talvez, ela pensava, ele tenha percebido que seu corpo havia se fincado nela. Ele a consumira, nesses 15 anos já se habituara, nem sequer a olhava mais.
Na cama, pouco se encostavam. Eleonora dormia cedo para acordar ainda mais cedo, antes do sol nascer. Eduardo, ao contrário, deitava-se sempre de madrugada. Quando acordava, a mulher se metia na cozinha para nunca mais sair. Tornou-se uma serva da casa pequena.
Do casamento rendeu 2 filhos. Marcelo e Roberto, assim como o pai, percebiam naquela mulher apenas as marcas do trabalho que desempenhara há muito tempo: o de servir. A lembrança da mãe transformara-se apenas aos cuidados do lar. Eleonora, para todos, anulou-se. Agora era apenas a mãe, vez ou outra, a esposa.
O capricho com o corpo que tinha quando era mais jovem, em poucos anos de casada, havia se transformado, assim como ela, em matéria do nada. A aparência ociosa, amarela e cansava acompanhava Eleonora. A humilhada mulher já não sabia quem era. Na vizinhança se tornara apenas “a mulher de Eduardo”, com o passar dos anos tornou-se na “mãe dos meninos Marcelo e Roberto”. Eleonora temia não existir na certidão. Certo dia, essas marcas a levaram a conferir se em sua certidão tinha o nome Eleonora. Mais uma vez, era para comprovar a própria existência. De nada adiantou essa conferida no documento. A cada dia expandia-se mais à sombra do marido.
Certa vez, ela, habituada a passear pela casa – único lugar que conhecia -, tomou-se por um pranto que já havia desvanecido. Tudo aconteceu quando percebeu que a certidão que revelava sua presença no mundo tinha se inundado na chuva. Não conseguia mais ler. Ali, naquele papel, até a água levara para si o nome que os pais tinham escolhido. Eleonora já não existia mais.
A infelicidade da mulher tornou-se um humor permanente. Não sabia não ser infeliz. Ela se perdeu dela. A coragem se desfez na anulação. Já não existiam fragmentos de sua matéria. Havia se tornado a matéria do nada. Do nada que o marido fincara no lar e que a água levou embora.