por Aristides Oliveira
Samar Shahdad é uma pesquisadora iraniana que mora na Inglaterra, fazendo doutorado em Bradford. Dedica a vida aos livros e o ofício de tradutora. O mundo virtual é uma ponte que possibilita as pessoas se aproximarem, numa realidade em que a ordem é ficar distante, com máscaras e zelando pela própria sobrevivência, mas nada impede dos encontros acontecerem. Entre o Brasil e a Inglaterra, conversamos sobre temas que carregam a urgência para reflexão, principalmente sobre a condição das mulheres no Irã, autoritarismos contemporâneos, a arte da escrita e os desafios da vivência no exílio.
Samar tem muito a dizer para os leitores e leitoras da Acrobata.
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Você nasceu em Shiraz, no Irã. Por quanto viveu lá? Que motivos levaram sua decisão de sair do país e iniciar esse processo de deslocamento geográfico?
Nasci no Irã e morei lá até os 24 anos, quando saí para morar no Reino Unido. Minha decisão de deixar o Irã não foi política. Saí para formar uma família, que não durou muito.
Venho de uma cidade chamada Shiraz, que é conhecida pelos seus jardins de rosas, poesia e sobretudo, pelo seu vinho, que infelizmente já não é produzido e servido desde a revolução (1979).
Minha partida foi por amor, mas minha decisão de não voltar também foi por amor. O primeiro era por pessoa, e o segundo era para mim como mulher e poetisa. O primeiro não durou (como era de se esperar!) E o segundo continua crescendo!
Eu não me vi, desde o início, como exilada, e esperava visitar o Irã todos os anos, mas me tornar uma mãe solteira durante e buscar minha educação ao mesmo tempo transformou meu plano em um sonho, e eventualmente, no pesadelo, com a morte de minha mãe em 2018.
Por quatro anos após a separação, recusei-me a falar persa, ou mesmo a seguir as notícias sobre o Irã. Eu estava com raiva do meu país, de minha cultura, das expectativas que ele tinha de mim, como esposa e mãe. Como uma criança perdida, que começa a aprender a falar novamente, eu cresço a cada dia aprendendo inglês.
Na verdade, o inglês me alimentou e preencheu a lacuna que minha distância voluntária da Pérsia e do persa criou. Após 10 anos sendo a mulher que quero ser, e 13 anos morando no Reino Unido, vejo o inglês como minha primeira língua; uma língua que me libertou e o persa como língua que me foi dada e não me acomodou, por causa da censura política e social.
Fiz um vínculo muito forte com o Reino Unido, a língua e a cultura, mas apesar de toda a segurança e apoio que isso me deu, me sinto como uma alma perdida, que não pertence a lugar nenhum e está dividida no mapa, entre dois continentes, dois países , passado e presente (e futuro, se houver!)
No Brasil, as heranças coloniais construíram uma sociedade que ainda está enraizada numa base machista e patriarcal, mas há um forte movimento protagonizado pelas mulheres que lutam contra este modelo opressor. Como é ser mulher no Irã? Que vivências e lutas políticas- socioculturais feministas destacaria no país?
O regime iraniano se opõe a qualquer ser vivo, incluindo as mulheres. As mulheres iranianas são constantemente discriminadas e privadas de seus direitos básicos. A própria natureza da lei no Irã é contra as mulheres e sua liberdade em relação ao casamento, divórcio e emprego, etc. A polícia da “moralidade” assedia as mulheres diariamente. Se elas são vistas usando o que definem como “roupas inadequadas” podem ser encarceradas. E atualmente há mulheres servindo na prisão sentenças por causa de seu desafio a isso.
Apesar da ignorância das autoridades em relação à violência emocional, mental e física contra as mulheres, as iranianas continuam a resistir. Uma grande proporção das mulheres iranianas tem educação universitária e, apesar de todas as restrições sociais, culturais e políticas, elas continuam conectadas ao mundo.
A República Islâmica do Irã sempre afirmou que a alta porcentagem de mulheres educadas é o resultado da revolução e uma de suas muitas conquistas (se houver!). Embora seja evidente que é o trabalho árduo e o espírito livre das mulheres que os trouxe até aqui, a sede de liberdade e claro, esperança.
Como iniciou seus estudos literários na Inglaterra? Comente sobre sua pesquisa de doutorado em Bradford?
Comecei a ler e escrever muito jovem. Mas, ao longo dos anos, e passando por diferentes experiências como iraniana, mulher, mãe, tenho me tornado cada vez mais interessada em literatura – não como um hobby, mas como forma de viver e experimentar a vida. Concluí meu bacharelado em Gestão de Serviço Público e terminei o mestrado em Política e Estudos de Segurança do Oriente Médio em 2018. Imediatamente progredi para um PhD.
Meu doutorado começou como acompanhamento de minha dissertação de mestrado, que focava na Rússia de Putin. Continuei a pesquisa ao longo de minha própria leitura literária, que ao longo dos anos foi reduzida ao exílio e ao deslocamento, como resultado de minha distância contínua do país onde nasci.
Mas foi com a morte de minha mãe – em novembro de 2018 – que passei a me denominar exilada. Minha mãe teve Alzheimer por três anos, e eu não a vi por dez anos, na verdade, desde que cheguei ao Reino Unido. Depois de sua morte, recusei-me a voltar para o Irã e ainda me recuso a voltar.
Com sua morte, passei a me ver como uma criança cujo cordão foi completamente cortado do ventre de sua mãe e continuo a acreditar que não há mais nada ali para mim, exceto memórias e pessoas de que não me lembro mais de seus rostos, mas continuam a aparecer nos sonhos que e me ligam de volta.
Vejo a morte da minha mãe como um momento de epifania que mudou tudo na minha vida e deu nome à experiência que estava a fazer – que agora posso chamar com confiança de Exílio! Assim, mudei o tema da minha pesquisa, apresentei uma nova proposta e parti daí. Atualmente estudo o conceito de perda como resultado do exílio na poesia de Alejandra Pizarnik e Mahmoud Darwish, e faço comparações entre esses trabalhos e o meu.
No seu ofício há uma reflexão sobre o Exílio. O que esta experiência significa para você?
Edward Said, um dos maiores intelectuais de nosso tempo escreveu:
“O exílio é estranhamente atraente de se pensar, mas terrível de experimentar. É a fenda incurável forçada entre um ser humano e um lugar nativo, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial nunca pode ser superada. E embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfantes, na vida de um exilado, estes não são mais do que esforços destinados a superar a dor paralisante do afastamento”.
Edward W. Said, Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios.
Nada me define, exceto o exílio. Não me vejo mais como uma mulher iraniana, nem o farsi como minha primeira língua. Qualquer país é meu país e qualquer língua pode ser minha língua, eu pertenço a todos os lugares e a lugar nenhum.
Essa percepção tornou tanto uma pessoa errante quanto uma pessoa curiosa. Também me separou de qualquer pessoa e de qualquer lugar, e me levou a uma vida muito isolada, onde por acaso leio sobre pessoas mortas, em vez de ter desejo de estar perto de pessoas vivas.
Minha experiência também limitou minha leitura a temas como memória, pertencimento, deslocamento e, acima de tudo, linguagem. Afinal, não vejo mais a linguagem como algo que me ajude a atender às minhas necessidades – a comunicação diária – mas como um ser vivo. A língua é meu país, minha mãe, minha amante, a língua sou eu e eu sou a língua.
Alguns poemas persas estão sendo traduzidos para o inglês e você está à frente desse trabalho. Que desafios você encontra no campo da tradução literária?
Para um exilado, a língua é o único país possível, e para mim a tradução é um caminho que poderia seguir para descobrir o desconhecido, dentro e fora das fronteiras deste país. Às vezes me perco, mas a paixão pela descoberta é sempre mais forte do que o medo de desaparecer. Para mim, a tradução é um ato pelo qual declaro meu amor pela humanidade e pelos demais seres humanos.
Traduzir para mim significa,:eu falo a sua língua, e cuido disso tanto quanto cuido da minha própria língua. Mas o que queremos dizer com minha linguagem e sua linguagem? Como um exilado, qualquer língua é minha língua, e posso beijar todos os lábios que estilhaçam o vidro do silêncio!
Fernando Pessoa escreve “Para compreender, destruí a mim mesmo”. Sempre sinto que essa frase resume totalmente minha paixão pela linguagem e a destruição que ela trouxe para minha vida. Aprender outras línguas é um trabalho do qual gosto e do qual nunca reclamo.
Meu encontro com o português foi através do amor, que quando saiu da minha vida deixou uma fome que só poderia ser alimentada falando aquela língua. Tenho um apego emocional aos idiomas e, para mim, traduzir não é encontrar uma palavra equivalente para uma palavra no idioma de destino ou origem.
Para mim, a tradução é despir-se e vestir-se novamente, é infligir uma ferida na minha pele, e trocar uma pele velha com a intenção de curá-la e obter uma pele não só nova, mas fresca. Para mim, a tradução é um processo pelo qual consigo ser transformada e nenhuma transformação vem sem dor.
Por onde esses textos circulam na internet e que análise pode ser feita sobre a recepção do público inglês a literatura persa?
Sou uma poetisa que passa 100% do tempo lendo e escrevendo (e caminhando). Achei muito difícil encontrar tempo para publicar meus poemas. Antes da pandemia, um editor me ofereceu a oportunidade de publicar uma coleção bilíngue de meus poemas, mas o estudo e o compromisso familiar me impediram de ir mais longe. Eu sempre sinto (e disse aos meus amigos) que se eu morrer e for publicado postumamente, as pessoas vão entrar e ver meus diários e cadernos!
No entanto, estou trabalhando em estreita colaboração com Mike Baynham e Antonio Martínez-Arboleda e dirigimos Transforming with Poetry, cujo objetivo principal é reunir a poesia de pessoas de todo o mundo, e está comprometido com a poesia sem fronteiras. O evento está online na segunda sexta-feira de cada mês e esperamos trabalhar com mais poetas e tradutores.
Para mim, o universo literário persa é algo absolutamente novo. Que artistas você indica para os leitores(as) brasileiros(as) conhecerem?
Eu me distanciei gradualmente da literatura persa e leio principalmente os textos publicados em inglês, que muito provavelmente foram escritos por escritores e poetas, cuja primeira língua é o inglês.
Embora, de vez em quando, eu leia obras de poetas e escritores iranianos em inglês ou persa, posso dizer com honestidade que não estou totalmente ciente de quaisquer vozes emergentes no Irã. Gosto da poesia de Mohsen Emadi, um poeta iraniano exilado radicado no México, que é uma poesia consciente e responsável, e também posso recomendar Forough Farrokhzad e Ahmad Shomolu, que são os poetas persas contemporâneos mais queridos. Também dos poetas clássicos, posso recomendar Hafez, que foi a poesia de Wine, e Rumi.
E a literatura brasileira? Você tem algum escritor/escritora favorito? O que leu ultimamente sobre nosso país?
O Brasil é um país muito próximo ao meu coração por um motivo pessoal. Sempre senti que havia um lar esperando por mim no Brasil. Acompanho diariamente as notícias do Brasil e sou muito apegada a este país, que me foi apresentado através de uma pessoa! Já faz quase quatro anos que li apenas coleções de poesia e romances escritos por latino-americanos, incluindo poetas e escritores brasileiros. Infelizmente, poucos desses trabalhos são traduzidos para o inglês, por isso decidi aprender os idiomas para poder ler o que quiser, sem esperar que alguém os traduza e publique para mim.
Até agora, li obras de Paulo Coelho, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Adélia Prado e Thiago de Mello. Mas acima de tudo, sou tão apaixonada pela poesia do Paulo Leminski, porque é curta e cortante, e bate forte!
Todas as noites eu digito na minha barra de pesquisa do Google e tento encontrar um novo poeta do Brasil ou de outros países de língua espanhola. Sempre sinto que estou correndo contra o tempo, e ainda há muitos poetas que preciso conhecer e ler. Olho todos esses nomes, procuro seus poemas publicados online, e suspiro, pois sei que devo ter paciência e esperar o dia em que entenderei plenamente o português. Eu quero que esse dia chegue muito em breve.
Nas nossas conversas nos bastidores, compartilhamos a angústia de vivenciar difíceis realidades políticas, seja no Brasil ou no Irã. A partir da Inglaterra, que notícias você está acompanhando sobre a situação do Irã durante a pandemia?
Minha relação com meu país de nascimento tem sido dolorosa. Estou presa entre um amor sério pelo Irã e desistir desse amor por causa do grave sofrimento que ele infligiu a mim. Eu sei que o regime do Irã continua a negligenciar questões internas (como saúde e educação subfinanciadas, etc.) e financiar a guerra além das fronteiras iranianas.
Eu sei que o povo iraniano está privado de suas liberdades civis e suas vozes políticas são constantemente atacadas por um regime que é contra tudo / qualquer um que carregue a vida (das crianças aos animais e à natureza).
O regime iraniano não conseguiu combater a pandemia e o número oficial de mortes e infecções é muito maior do que o relatado pela mídia estatal. O Irã é uma prisão e os iranianos são os prisioneiros. Embora os iranianos, como todas as nações, estejam lidando com esta pandemia, sinto que os iranianos têm sofrido por décadas com a pandemia de opressão, censura e abuso dos direitos humanos / animais e ambientais.
Antes de publicar esta entrevista, Samar compartilhou comigo a notícia que saiu no The Guardian:
O presidente eleito do Irã, Ebrahim Raisi, é linha-dura ligada a execuções em massa.
Raisi foi acusado de enviar sistematicamente até 3.000 pessoas para o massacre no final dos anos 80.
Para fechar nossa conversa, um poema de Samar:
“I slept with you”
I slept with you,
with the whole of you.
With the slim fingers of yours,
that pour out honey,
into the empty cup of my body.
A body made of flesh.
A body made for pain.
I slept with you,
with the dark colour of your eyes,
that hold my white hidden moon.
With the grey colour of your hair,
that attract the stroke of my hands
….
Hands that have gone unnoticed in their youth!
I slept with you.
Under the naked sky,
that folds the loneliness of two wandering shadows,
in a bed
that unfolds playful children of tomorrows.
I slept with you.
From the first sweet touch of the night,
to the first bitter bite of dawn.
In a room,
confined in the openness of friendship and love,
behind a closed door
that squeals your way,
to the stretch of awakening roads in the morning of goodbye.
Samar Shahdad
14 Feb 2017
Dedicated to T.M
***
“Eu dormi com você”
Eu dormi com você,
com você por inteiro.
Com os seus dedos finos,
que derrama mel,
no copo vazio do meu corpo.
Um corpo feito de carne.
Um corpo feito para a dor.
Eu dormi com você,
com a cor escura dos seus olhos,
que seguram minha lua branca escondida.
Com a cor cinza do seu cabelo,
que atraem o golpe das minhas mãos
….
Mãos que passaram despercebidas na juventude!
Eu dormi com você.
Sob o céu nu,
que dobra a solidão de duas sombras errantes,
em uma cama
que revela as crianças brincalhonas de amanhã.
Eu dormi com você.
Desde o primeiro toque doce da noite,
até a primeira mordida amarga do amanhecer.
Em uma sala,
confinados na abertura da amizade e do amor,
atrás de uma porta fechada
que grita em seu caminho,
ao trecho de estradas que despertam na manhã do adeus.
Samar Shahdad
14 Fev 2017
Dedicado para T.M