Aliandra Alves: “qual o preço que corpos periféricos precisam pagar para ser um psicanalista?”

| |

Por Aristides Oliveira

Estou num processo de compreensão do papel da psicanálise na minha vida e tenho conversado com várias psicanalistas sobre isso. Dessa vez, quem enriqueceu meu horizonte de leituras foi Aliandra Alves. Com sua experiência e profunda visão política sobre o papel social em torno do fazer psicanalítico, ampliei meus olhares para o tema além dos estudos freudianos, incorporando uma perspectiva contemporânea atrelada às questões que abalam nossas contradições brasileiras mais agudas. Te convido a ler esse bate papo.

Ela é uma Psicanalista lacaniana, psicóloga de formação (UNINASSAU) e atravessada pelo poder das palavras. Natural do Rio de Janeiro, mas pernambucana de coração. Atualmente reside em Recife. Poeta do cotidiano, pesquisadora independente, mãe e ativista de novos mundos. Pós graduanda em Ciência Política (Uniasselvi) e Saúde Pública (Uniasselvi). Pesquisadora dos (des)enlaces entre amor e neoliberalismo. Associada a Associação Livre Lacaniana com estudos sobre psicanálise e relações étnico-raciais. Membra do Coletivo de Pesquisa Ativista Psicanálise Educação e Cultura (CPAPEC). Integra o Coletiva Psicanalista Trabalha (CPT), sendo coordenadora da regional Recife. Atualmente atua com atendimentos particulares na clínica psicanalítica com uma perspectiva periférica e decolonial. Coordena e media desde 2024, grupos de estudos e leituras gratuitos sobre clínica, psicanálise lacaniana e feminismos.

Aliandra, antes de falar da sua vivência com a psicanálise, queria saber detalhes sobre sua escrita poética. Por onde você começou a produzir seus textos e que escritoras influenciaram a você explorar seu lado artístico?

Lendo essa pergunta lembrei do que Freud em algum lugar escreveu: “Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi um método científico que nos permite estudar o inconsciente”, e acredito mesmo que antes de me entender psicanalista, já flertava com o inconsciente através da poesia sem saber ou arrisco a dizer que para ser psicanalista precisei antes ser poeta. Acredito que a escrita, ou essa “tentativa de organização subjetiva” como gosto de chamar, veio como consequência.

Comecei a escrever cedo, tinha uns 11, 12 anos, em diários que eram muito mais relatos do que me acometia no cotidiano dos dias ou o que me deixava triste, lembro de andar com eles na bolsa, a escrita sempre foi minha arma e meu refúgio. Lembrei até agora da Bell Hooks, em Tudo sobre o amor, quando ela narra que começou a escrever sobre a morte pois parecia que mulheres não tinham muito a escrever sobre o amor, apesar de serem as mulheres que o ofertam cotidianamente… achei simbólico quando li isso da morte e do morrer, afinal ser mulher nesse mundo é brincar com a morte o tempo todo, essa última parte foi eu que disse.

Então acho que iniciei escrevendo sobre minhas dores infantis e mantive o hábito por uns 3 anos, mas até então eram apenas relatos, não posso dizer que já havia poesia ali. Depois disso a adolescência chegou com outras dores, mas fui narrar meus dilemas fora do papel ou buscar referências por aí pelo mundo, não sei ao certo. Concordo muito com o Nego Bispo que diz que ele faz poesia vivendo ou se tem alguma coisa difícil de resolver, ele vai lá e declama uma poesia. Minha poesia nasceu sem dúvidas das minhas vivências, mas só organizei isso como uma escrita dita poética um tanto de tempo depois, acho que estou organizando até hoje.

E o curioso é que comecei a escrever antes de ser uma leitora assídua, então só vim conhecer algumas escritoras muito tempo depois, quando ingressei pela universidade, em 2013, mais ou menos, já tinha meus 18 anos. Antes disso, os livros e a leitura não eram uma realidade no meu dia a dia familiar ou a possibilidade de puramente ter prazer com a leitura, ou até ter tempo livre para ler, na época, ler era muito mais uma ponte para tentar ser alguém na vida.

Então sobre escritoras, influências e referências não sei dizer ao certo, acho que era eu mesma minha referência. Mas me lembro vivamente da primeira vez que me deparei com a Clarice Lispector, foi quando trabalhei numa loja de departamento de moda, tinha uns 20 anos por aí, no refeitório da loja tinha uma estante com vários livros e então avistei “A hora da estrela”.

Acho que foi o primeiro livro que li na vida com real prazer… sem pensar em ser ninguém, apenas literatura. Até soa poético dizer que esse foi o último livro escrito pela Clarice ainda em vida e foi o primeiro que me fez me sentir viva. Acho que ali, a Clarice virou uma referência para mim e ainda o é hoje. Ela sabe escrever elegante, como disse a Carolina de Jesus em alguma entrevista e eu bem que concordo. A Clarice sabe (d)escrever sofrimentos elegantes e cotidianos e acho que eu tento caminhar por aí também. Pensando aqui agora, acho que não tem muita escapatória, minha escrita poética teve como referência a minha própria vida ou podemos dizer, escrevivência, usando o termo da Conceição Evaristo, hoje, outra grande referência para mim.

Sua aproximação com a Psicanálise deu-se durante o curso de Psicologia ou após sua graduação? Como você articula esses dois campos de conhecimento no seu fazer cotidiano?

Gosto de brincar que eu já conhecia a psicanálise, só não sabia que existia um nome para “isso” rsrs Mas, de fato, fatidicamente eu e a psicanálise nos conhecemos dentro da graduação de Psicologia. Lembro até como e com quem foi, só não lembro ao certo o período. Era uma aula da disciplina de teorias psicanalíticas (?) e a Fabíola Barbosa, daqui de Recife, uma querida, tava falando brevemente sobre Lacan e seus dizeres e não-ditos e algo aconteceu ali, me encontrei!

Depois fiquei sabendo que eram as primeiras aulas que ela tava dando (na vida!), talvez ela nem saiba, mas foram suas primeiras aulas que me trouxeram as primeiras paixões acerca da psicanálise… Valeu Fabíola! Lembro que uma vez levei algo assim parecido para minha analista da época, dizendo que tava abusada da psicanálise e que achava que não a amava mais, aí lembro que falei que ainda assim, até hoje, ainda é ela, a psicanálise, que dá conta de responder minhas perguntas sobre mim e sobre o mundo e disse para minha analista que nessa mesma aula pensei assim: “É isso! Esse vai ser meu trabalho, essa tal de linguagem inconsciente”.

A partir daí, minha graduação ficou mais interessante, poder falar de psicanálise era minha nova paixão. Apesar de ser uma universidade privada, fiz pela UNINASSAU/Recife a partir do financiamento estudantil (FIEIS) e vale ressaltar que também fui mãe aos 18 anos, então minha maternidade atravessou minha graduação que também atravessou minha escrita, então acho que me formei mãe, psicóloga e poeta tudo num diploma só (risos), só a formação em psicanálise que viria depois.

Sobre a graduação em psicologia, digo que foi uma boa formação, fiz o que deu com o que tinha na época e tinha pouco, mas tive também a sorte de docentes bacanas que tinham muita experiência prática e vivencial e colegas de turma muito espertos, ambos me ajudaram bastante na minha forma de aprender, que é articulando teoria e prática, a chamada práxis.

Me formei em 2017 e caminhando para quase 8 anos de formada, vejo que minha formação em psicologia me ensinou verdade bastante sobre vivências e subjetividades ou a colocar tudo no plural. E apesar de hoje, nomear que trabalho enquanto psicanalista e não psicóloga (mesmo com CRP ativo e vivendo), acho que psicologia e psicanálise caminham juntas e dialogam na minha prática articulando-se nas vicissitudes da saúde mental e da esfera pública. Faço uma pós em Saúde Pública atualmente e acho que o que a ciência da psicologia contribui bastante no meu fazer analítico, principalmente pelos recortes da psicologia social e comunitária. Mas dentro da prática clínica, caminho pela via da psicanálise e não pela psicologia e acho importante essa distinção!

Psicologia é uma ciência que tem como toda ciência, um objeto de estudo, que é o ser humano, psicanálise é outra coisa, não há objetivação de um objeto, só se for o “objeto a”, mas esse é causa de desejo, é uma outra coisa. rsrs Numa psicanálise tudo caminha e se encaminha pela ética e investigação do desejo. Então na clínica, me utilizo de uma psicanálise e não oferto psicoterapia, uma psicoterapia caminharia mais no sentido de produzir bem-estar e psicanálise é investigação. Foco nesse nome. Gosto e costumo separar, mas sempre me utilizo do necessário, tanto da psicologia como de outros campos epistemológicos para tentar construir uma clínica psicanalítica com rigor teórico mas sobretudo, também humana.

Aproveitando que você é ligada a uma abordagem psicanalítica dedicada aos estudos feministas, compartilho com você que atualmente estou lendo Karen Horney. A partir da tese “A Recusa da Vagina”, escrita por Patrícia Mafra, fiquei interessado em entender como a construção das narrativas que “fundam” movimentos e abordagens psicanalíticas promovem ações de apagamento da obra dela e de outros nomes que não pertencem às “escolas” e aos grupos “legitimados”. Qual sua leitura sobre o silenciamento de Horney e de outras vozes femininas na historiografia da psicanálise?

Olha, lendo tua pergunta me veio outra na cabeça: houve alguma psicanalista mulher na história da psicanálise que não passou por algum tipo de tentativa de apagamento? Não estudo a Karen Horney, sei selvagemente que foi uma psicanalista alemã que contestou essa “inveja do pênis” freudiana e aliás, concordo com ela, afinal não se trata de pênis, nem de falo, mas essencialmente de poder e isso, Freud teve.

Então respondendo um pouco tua pergunta, sempre houveram e haverão narrativas de apagamento ou em outras palavras de tentativa de soberania masculina, a questão talvez seja, por qual prisma investigar isso? Meus estudos e pesquisas no campo feminista e do feminino na psicanálise se direcionam para as construções brasileiras e latino-americanas e esses “apagamentos” que carregam as sequelas coloniais que são também geopolíticas. Ótimos casos para pensar são a Virginia Bicudo, em contexto de Brasil ou a Solange Faladé em recortes europeus.

Por que não se fala tanto de suas obras? Onde estão suas construções? Virginia Bicudo, mulher negra, feminista, brasileira, primeira não-médica reconhecida psicanalista no Brasil, com contribuições valiosas acerca de uma teoria social crítica na sociologia e psicanálise, onde ela é citada? Ou a Solange Faladé, “herdeira de Lacan”, mulher negra, médica, antropóloga e psicanalista, com vários seminários publicados sobre neurose, sujeito e outros. Onde estão suas produções? O Paulo Bueno, psicanalista, faz um trabalho impecável de recuperação de suas narrativas, recomendo a busca.

Então parece que há algo muito bem marcado nessas relações de poder entre gênero e raça na história da psicanálise: corpos negros e tentativas de apagamento de suas vozes femininas e feministas. Sobre o livro, A recusa da vagina, confesso que ainda não tive aproximação com a leitura, mas se aborda queda do falocentrismo, já me interessei rsrs.

Penso que o próprio nome já aponta para a problemática que envolve a tua pergunta, o silenciamento é antes de tudo da concepção da vagina ou, da própria mulher, enquanto instrumento também de poder e empoderamento. Acho que Freud, na sua construção teórica acerca do Édipo, deixou escapar o machismo que é recorrentemente tentado ser recalcado no próprio campo. A Lélia Gonzalez, num ensaio chamado “Racismo e sexismo na cultura brasileira” elucida bem toda essa “neurose cultural”, deixo a recomendação.

Como você gerencia os grupos de estudo que participa? De Lacan, feminismo às questões envolvendo psicanálise periférica, que leituras você está trabalhando e como elas se aplicam na prática da clínica?

Ah, eu sou uma entusiasta de grupos e coletivos! Sem a possibilidade de estudar psicanálise em pares provavelmente já teria desistido dela. Partilhar angústias e não compreensões também faz parte do processo de formação. Atualmente, contabilizando aqui agora (risos), participo de 6 e 5 deles são grupos que eu coordeno. Como gerencio todos eles? Não gerenciando hahaha brincadeira.

Gosto de pensar que escolho estar em cada grupo desse, pois faz sentido suas temáticas nas construções da minha clínica e as pessoas que lá estão também, então, costumo deixar espaçado durante a semana. Tenho grupo de segunda a sexta com uma horinha de duração e discussão que faz muito mais pela minha formação que duas horas estudando sozinha, mas isso, é minha forma de estudar. Os temas dos grupos variam entre clínica lacaniana, teoria lacaniana, feminismos, decolonialidade e relações étnico-raciais. A lógica dos meus estudos parte do que a minha clínica me demanda e não a partir do que acho que devo saber para construí-la, faz sentido?

Então, no momento, sendo minha clínica predominantemente de pessoas não-brancos e periféricas, meus estudos e pesquisas giram em torno de pensar uma psicanálise brasileira e decolonial. Fui no lançamento do livro do Douglas Barros, psicanalista e filósofo, aqui em Recife chamado “O que é identitarismo?” e ele falou algo muito urgente, disse que não existe possibilidade de sustentar uma clínica psicanalítica no Brasil sem estudar relações étnico-raciais e o sintoma do racismo na construção da subjetividade.

Arriscaria também a dizer que é preciso pensar sobre recortes de classe social e gênero também, afinal, tudo se articula para construção de uma neurose. Hoje, tô estudando bastante a Lélia Gonzalez e sua leitura sobre neurose cultural, a Bell Hooks para pensar as questões sobre o amor e política, por que se toda demanda é demanda de amor, como Freud disse, que danado de amor é esse e como ele aparece na clínica? Tô estudando também o próprio Lacan e o conceito de sintoma, articulando a uma leitura marxista sobre alienação e trabalho.

E acho que por hora, já tá bem bom. Vejo que meus estudos repercutem efetivamente na minha clínica, na minha escuta racializada e nos efeitos com os analisantes, por que só há movimento na clínica e nos casos, quando o psicanalista está sempre em movimento e inclusive se questiona, até onde é apenas neurose e onde entra todos os dilemas sociais e políticos que também a fundam.

Quando conversávamos em off sobre nossa entrevista, comentei contigo que tinha vontade de saber mais sobre a condição de trabalho das psicanalistas no Brasil. A partir dos dados que você me enviou, o que inicialmente me chamou atenção foi: Recorte de raça: analistas não-brancos (pardas, pretas, amarelas, indígenas). São 23,4% dos respondentes. Enquanto a população branca tem faixa de renda muito distribuída, a população não-branca tem concentração de renda em até R$ 6 mil (61,4%) — entre analistas negras a diferença de renda chega a diminuir pela metade. Maioria (62%) tem até 6 anos de clínica (Fonte: Coletiva Psicanalista Trabalha). Que perspectivas a longo prazo você lançaria sobre as condições de trabalho e oportunidade para uma maior inserção das mulheres que estão situadas neste recorte da pesquisa?

Esses dados que tu apontas são alguns recortes dentro de um espaço de tempo, mas, para não surpresa alguma, os dados mais atuais não mudam muito e o panorama geral parece ainda perpetuar a soberania do marcador identitário excludente que a psicanálise carrega: a branquitude burguesa.

Vamos pensar aqui sobre os dados da enquete, dos respondentes em âmbito nacional, 65,6 % são mulheres, 75,2 % são pessoas brancas, 57,6 % trabalha majoritariamente com a clínica psicanalítica e os que recebem mais de 6 mil, calcula-se 85% sendo brancos e 66% sendo mulheres. (Dados enquete CPT). Então, numa análise bem selvagem: a psicanálise é feminina, branca e classe média alta? Na contramão do absurdo, ou dos dados apurados, quando vamos em dificuldades enfrentadas na formação, a maioria dos votos aponta para o preço da formação.

Fazendo uma brincadeira com as palavras, qual o preço que se paga para ser psicanalista? Ou de outra forma, qual o preço que corpos periféricos precisam pagar para ser um psicanalista? Uso a palavra periferia não apenas no campo da geografia, mas principalmente no lugar simbólico da própria língua, periferia é uma palavra especificamente brasileira, que diz respeito ao que está a margem do centro, ou todos aqueles que excluídos da centralidade, buscam outros caminhos para continuar existindo.

Façamos um recorte breve sobre a população brasileira, 45,3% da população de autodeclara parda, 43,5% são brancos. (CENSO IBGE 2022). Em recortes de classe social, predomina as classes C, D e E, com renda que varia entre 3 salários mínimos a 1 salário mínimo. Em 2022 as classes D e E totalizaram 50,7% da população, em 2024 passou para 49,5%. (INFOMONEY). Ou seja, a partir dos dados expostos, percebemos que a população brasileira é parda e pobre. Correlacionando com o campo da psicanálise no Brasil, notoriamente branca e classe média alta, parafraseando a Lélia Gonzalez: “Cumé que a gente fica?” ou, quais as condições de formação e trabalho na psicanálise para os corpos periféricos (notoriamente predominantes no Brasil, como vimos nos dados) na psicanálise atualmente? Esse é um dos tantos pontos a serem (re)pensados e mapeados pela Coletiva Psicanalista Trabalha, recomendo acompanhar. Dados expostos e voltando a tua pergunta e ao teu recorte (mulheres negras, correto?), quais as possibilidades de trabalho na psicanálise para elas? Não sei. Mas acredito esperançosamente numa psicanálise que se atualiza ao nosso tempo e ao nosso território.

E se o Brasil é nitidamente “matriarcal”, vejamos os dados de mães solos em 2022: 55%, ou mais 11 milhões de mulheres (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS) e a psicanálise nitidamente feminina, não à toa, parece que o trabalho do cuidado e da escuta ainda é uma herança patriarcal para as mulheres, principalmente, as mulheres negras. Talvez a questão seja: quando serão reconhecidas, no campo e no bolso, por isso? Seguimos sem respostas. Ao meu ponto de vista, discutir sobre as condições de trabalho dos psicanalistas no Brasil é também, sobretudo, repensar em recortes feministas, as condições de duplo trabalho e impasses que impedem as mulheres negras apareçam nos dados ou até apareçam, mas em outro tipo de dados, em 2023, a taxa de homicídios de mulheres negras no Brasil chegou à 68,2% (CENSO 2023).

Bom, contra dados não há argumentos. A revolução será feminista, isto é um fato, mas não há feminismo possível que sem contemplar todas as mulheres e corpos. Então para mim, para pensar uma inserção e cenários de ascensão de mulheres negras na clínica psicanalítica, antes é preciso que a sociedade brasileira assuma seu racismo velado de democracia.

Que perfil de público você está atendendo e que desafios você tem enfrentado na sua prática?

Essa pergunta é bem legal e importante, por que entender o perfil de sua clínica é a mola central para direcionar seu fazer, da teoria à prática. Em recortes de gênero, hoje minha clínica é majoritariamente feminina, podemos dizer 90%, mas é feminina não por questão de “nicho” nem nada, não trabalho com isso, trabalho com indivíduos pretendentes a se tornar sujeitos.

Em recortes de raça, posso dizer que 70% são pessoas não-brancas e desses, 50% são pessoas negras e de origem periférica em início de ascensão social. Só ressaltando que esses dados são puramente vozes da minha cabeça, mas às vezes gosto de acreditar nelas (risos). Pensando nesse perfil de clínica, os desafios atuais vem sendo um pouco da ordem do manejo psicanalítico, tipo, conseguir articular o que é do campo apenas da neurose e a teoria lacaniana alcança e o que perpassa tantos marcadores sociais.

Basicamente, compreender quando ler um sintoma (numa leitura lacaniana) como um conflito com o grande Outro e quando o ler como um sintoma social, isso não é nada fácil, até por que não se trata de uma ordem binária onde um exclui o outro, mas acontecem sobretudo de forma concomitante. Aja trabalho e estudo! Os grupos de intervisão (discussão horizontais de casos) e a supervisão (psicanalista mais experiente que pontua questões) tem ajudado bastante a ler os casos de várias óticas possíveis, aí de mim se não fossem os pares!

E pensando em desafios dentro do campo psicanalítico para fazer clínica, ressaltaria um que parece não cessar de ser um desafio para mim: a solidão do fazer clínico. Acho que por causa da resistência dos psicanalistas de conversarem abertamente sobre as angústias das suas clínicas e seus narcisismos inflados demais para assumirem seus desafios, acabamos ficando presos na mesma lógica individualista que os tempos neoliberais imperam e perdemos de fazer laços e construir clínicas de forma também coletiva.

Pense num desafio!

Por ser um investimento alto, sabemos que pagar um(a) analista pesa no bolso de muita gente. E quem vive em condições econômicas limitadas e possui uma jornada exaustiva de trabalho e uma série de demandas emocionais a serem analisadas, mas infelizmente não tem acesso à tratamento fica à margem do cuidado com a saúde mental. Que caminhos estão sendo construídos para a psicanálise chegar a quem precisa? Estamos carentes de projetos sociais que ampliem o acesso ao público que mora na periferia?

Meus estudos sobre periferia e democratização da psicanálise são até bem recentes, então de antemão, já sinalizo que preciso pesquisar bastante ainda para entender quais os caminhos possíveis para que a psicanálise chegue de forma efetiva às populações periféricas. Mas ao mesmo tempo, acho pertinente levantar a questão sobre as clínicas públicas em psicanálise, que são clínicas abertas ao público e de livre demanda, que costumam estar em lugares de fácil acesso dentro do território.

Atualmente, vem-se percebido um aumento significativo desse movimento, também chamado de “clínicas de borda”, “clínicas de margem” ou apenas clínicas públicas. Esse movimento surgiu com Freud, visando além de atendimentos gratuitos, a formação de novos psicanalistas assim como a pesquisa para os dispositivos clínicos. Acho primordial para essa discussão, ressaltar que os interesses, apesar de dignos, de Freud, eram para o campo da sua pesquisa e clínica e não uma real tentativa de transformação social ou ofertar acesso psicanalítico digno aos pobres, até por que o mesmo, em 1913/2010, escreve assim: “no entanto lamentar que a terapia analítica […] seja quase inacessível para os pobres. Quanto a isso não há muito o que fazer”.

Sobre isso, falo um pouco sobre essa problemática num seminário que tem disponível no Youtube a convite da Associação Allos, “Por uma psicanálise periférica à brasileira: a questão do dinheiro na (de)formação do analista contemporâneo. Mas voltando a Freud, queria ver ele dizer isso aqui no Brasil, a todas as famílias em situação de extrema pobreza com saúde mental a beira de um colapso, dizer que “não há o que fazer” é o mesmo que pactuar com a morte de cada um.

E parece que seus discípulos ou herdeiros acabam seguindo por essa linha, “não há o que ser feito no campo da psicanálise, isso é coisa de saúde pública”, e sim, de fato é, mas isentarmos ou anularmos possíveis investidas do campo psicanalítico e cair no discurso de que não há nada a fazer só traz à tona o privilégio da classe de poder se manter aquém da realidade e uma certa preguiça de colocar o famoso divã no meio da favela.

Então acredito que o surgimento de tantos movimentos de clínicas públicas em psicanálise atualmente são apenas um reflexo das cortinas sendo abertas e as verdades sendo trazidas à tona ou em outras palavras, um grande chá revelação da classe social brasileira. E sobre como fazer chegar a psicanálise na favela? Acredito que apenas democratizar seu saber e seu acesso não é suficiente, por que ainda que hajam profissionais dispostos a ouvir neuroses em praça pública, muita gente da favela nem sabe que isso existe ou para os que sabem e chegam até ela, acaba sendo uma catarse ali e depois retornam a sua realidade. Acho que não é o periférico que precisa chegar à praça, mas o psicanalista que precisa chegar na favela e isso, dentro dos meus estudos atuais, apontam para uma interlocução com a educação social.

Mas isso aí são conversas futuras…

Aos que nos leem e nunca foram ao Analista por algum receio ou preconceito, o que você diria a ela|ele?

Antes de te responder queria focar na distinção dessas palavras: receio e preconceito. Receio é aquela preocupação por não saber bem sobre determinada coisa, aquela dúvida beirando uma incerteza que comumente leva alguém a manter-se resguardado. Já o preconceito vejo como mais ativo, vem carregado de estereótipos e estigmas e age no sentido da evitação com uma certa violência, pois mantém uma certeza de que algo não é bom.

Sobre as duas posições, se posso dizer, seria bom buscar um psicanalista (risos). Mas para além das gracinhas, poderia dizer que a gente tem receio e até certos preconceitos de tudo aquilo que não nos é familiar, que é desconhecido, é muito não-saber para suportar (risos), e é comum e humano ter, afinal, um processo de análise não é mesmo para qualquer um. Sobre isso de que “todo mundo precisa de análise”, eu discordo veementemente, todos até podem precisar, mas nem todos vão topar essa investigação de encararmos a nós mesmos desvinculados do que todos esperam da gente. Mas se posso dizer de coração, como quem faz análise há quase 6 anos (e contando), aos que toparem encarar seus fantasmas e deixar cair vários deles, inclusive pedaços de quem a gente acha que devia ser e se abrir a possibilidade de rir de tudo isso, a psicanálise é uma ótima pedida! Nem sou de dar conselhos, mas vou deixar um: arrisca deixar tuas palavras revelarem quem você realmente é, ou de outra forma, deixa o inconsciente aparecer, nem sempre vai ser bom, mas quando for, será libertador!

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!