Entre livros, afetos e sinceridades: conversando com Emília Soares

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por Aristides Oliveira

Emília Soares é professora (IFPI – Instituto Federal do Piauí) e pesquisadora em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará (UFC).

Atualmente está dedicada aos estudos da obra de Elena Ferrante, escritora italiana que vem conquistando leitores e leitoras no mundo todo. Ao longo desses dias estamos dialogando sobre muitos assuntos envolvendo cinema, literatura, música e política. Ah, ela já escreveu no site um belo artigo sobre Manzano e a tetralogia de Ferrante.

A melhor forma de segurar a onda nestes dias incertos é compartilhando impressões sobre o pensar e fazer artístico, refletindo as tramas que envolvem os lugares de fala e escuta. A conversa rendeu e selecionamos os melhores momentos para vocês.

Lembrando que esta conversa não acaba aqui.

Semana que vem Emília troca uma ideia com Jaislan Monteiro e o papo continua.

Boa leitura.

***

A literatura faz da parte da sua vida antes de participar do mundo acadêmico em si. Como podemos situar o seu encontro com os livros?

Minha história com a literatura se inicia de forma inusitada, provavelmente aos quatro anos de idade, quando a minha babá lia para mim e para minhas irmãs mais velhas o livro “O exorcista”. Mesmo pequena, eu percebia o impacto daquele livro nos rostos das minhas irmãs que se assustavam com os diálogos literalmente diabólicos. Minha infância foi rodeada de livros de terror, o que não dizer dos contos de fada com suas histórias de lobo, príncipe abusivo e solidão das bruxas?

Minha mãe era professora de gramática e uma imagem muito forte foi a de quase sempre vê-la deitada numa rede lendo algum livro. Eu queria fazer parte daquele mundo misterioso, não queria ficar de fora. Fui privilegiada por ter tido pai, mãe e irmãs que gostavam de ler. Queria ter acesso aos livros mais adultos, às leituras mais inquietantes… eu buscava o meu encontro comigo mesma a partir do estranhamento causado pela linguagem literária.

 A minha escolha profissional foi, portanto, consequência dessa convivência com os livros desde cedo. Além disso, estudei por anos numa mesma escola particular em que tive excelentes professores, dentre eles, a minha mãe. Como eu era “a filha da professora de português” eu não podia fazer feio, pois era bolsista, tinha que falar o português padrão e não vacilar nas notas.

Meu problema era que gostava muito de conversar nas aulas, mas eu era uma aluna que agradava aos professores para compensar esse meu “defeito”, aquela que sentava na frente, apagava o quadro, mostrava as anotações da aula passada e emprestava a caneta para fazer a chamada. Eu sempre gostei muito desse universo de sala de aula, esse local de aprendizagem. O contato mais íntimo com os livros, e em especial com a literatura, também veio dessa minha incapacidade de desapegar desse ambiente de trocas.

A partir dos seus estudos sobre Rubem Fonseca, como você destaca a importância dele na literatura brasileira?

Rubem Fonseca entra na minha história como a expressão máxima e apurada da técnica do conto no Brasil. Suas obras impactam os leitores pelo brutalismo de sua linguagem. A narração de Rubem não poupa ninguém. Teve a audácia de eleger o psicopata, o misógino, o bandido, o depravado, o glutão, o pseudoescritor como expoentes máximos de suas histórias.

São seres que desagradam, são a escória que a sociedade muitas vezes produz e não quer dar conta. Em meu mestrado, debrucei-me sobre a corporeidade feminina presente nos seus contos da década de 1990. Analisei como a escrita de Fonseca nos apresenta os corpos femininos como lócus de produção de uma sociedade capitalista fria, elitista e descrente.

O realismo é cruel, o conto pode ser um golpe profundo e sem retorno. Exímio pugilista na escrita, Rubem fez vários experimentos com esse gênero, reinventando a forma de se fazer contos no Brasil. Suas temáticas vão desde misteriosos assassinatos, cujo crime é o próprio texto, até uma reflexão sobre a previsão do futuro a partir do formato das fezes (copromancia).

Seu livro “Feliz Ano Novo” sofreu censura em 1976, durante a Ditadura Militar, no governo de Geisel, e ainda hoje sofre com uma recente interdição, feita agora já no período do desgoverno Bolsonaro, juntamente com outros autores, como Machado de Assis, Mario de Andrade e Franz Kafka, dentre outros.

 Se é algo que um governo não aprova, temos aí mais um motivo para continuarmos a ler Rubem Fonseca. Isso significa que sua obra continua incomodando, gerando repulsa, debate, embate. O orgulho neofascista não admite o realismo que expõe as mazelas sociais, que desossa os corpos humanos mostrando a massa orgânica e frágil de que são feitos. Existe um Brasil violento e cheio de palavras obscenas em suas obras e existe um Brasil mais cruel ainda fora delas. A literatura não alisa.

Estamos mergulhados numa apatia, num anti-intelectualismo, num cancelamento dos sujeitos, num tudo-ou-nada. Apesar de tudo isso, respondendo a sua pergunta, acredito que avançamos sim, porém agora a gente entende que precisamos avançar muito mais para que não percamos o instável espaço recém-conquistado.

Na sua experiência docente, qual o lugar da literatura em sala de aula? A juventude está levando a sério o ato de ler ou foram tragados pelo mundo dos apps?

A literatura sempre ocupou o papel principal nas minhas aulas. Eu preciso ensinar também redação e gramática, mas são apenas coadjuvantes na minha prática docente. Percebi, ao longo de anos de prática, que a maioria dos alunos não lê as obras literárias que o currículo indica. Muitos conhecem a fama das obras, sabem citar superficialmente o nome dos autores… porém o mergulho profundo poucos estão dispostos a fazer.

Isso não quer dizer que os alunos não estão lendo… estão. Todo mundo está. A todo momento somos bombardeados de informações, fake news, autocuidado, correntes de orações, chás para cura do coronavírus, como superar o ex…etc. Não estamos sabendo lidar com essa explosão de textões nos indicando o tempo todo o que fazer e para onde ir.

 Enquanto isso ocorre, horas se passaram em frente à tela do celular e nada de fato acontece. Estamos desperdiçando um tempo precioso de nossas vidas e deixando de investir na literatura. Queremos emoções a curto prazo. A literatura exige tempo, dedicação e inquietação. Uma obra literária pode levar anos para ser digerida e, mesmo assim, ainda causar um mal-estar.

A juventude leva a sério a importância da literatura, porém, muitas vezes, não tem uma formação necessária para criar um hábito de leitura. Os jovens sabem que os livros não são apenas objetos de fundo decorativos em uma “live” de um pesquisador importante. Eu mesma tenho livros que piscam o olho todo dia para mim, dizendo-me: “Leia-me” e eu me esquivo, distraio-me, deixo-me levar pelas facilidades do cotidiano. Leitura é hábito. Literatura é entrega. Nós professores podemos entregar a chave, podemos provocar, podemos empolgar os alunos com nossa experiência de leitura, mas não podemos ler pelos alunos. Nós não podemos operar o milagre da obra.

Em sala de aula, eu procuro ler os livros juntamente com os alunos, avaliando as emoções das palavras em seus rostos. Mas infelizmente o tempo é escasso, eles precisam terminar de ler o livro em casa. E a gente não vai viver tempo suficiente para lermos todos os livros que desejamos. Eu vejo o aluno como um leitor autônomo, não adianta empurrar “O Guarani” goela abaixo. Alguns livros não vão fazer sentido para determinados alunos, assim como não fizeram sentido para mim.

Emília Soares (IFPI/UFC) e Aristides Oliveira (Acrobata)

Estamos desperdiçando um tempo precioso de nossas vidas e deixando de investir na literatura. Queremos emoções a curto prazo. A literatura exige tempo, dedicação e inquietação.

Atualmente ouvimos bastante a expressão “lugar de fala”, seja nas militâncias, literatura, música, gênero, etc. O que você tem a dizer sobre o “lugar de escuta”? Falamos muito e escutamos menos?

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A percepção política, social e cultural dos lugares de fala é de extrema importância para dar voz a quem tem de fato conhecimento de causa. As vozes femininas na literatura, por exemplo, foram bastante silenciadas ao longo dos tempos. Prova disso é a escritora Maria Firmina dos Reis que no século XIX tinha que escrever sob o pseudônimo “Uma maranhense”.

Prova disso também é Jane Eyre, personagem do livro de Charlotte Brontë, reivindicar um local de escuta ao colocar a mulher como um ser humano de iguais direitos que o homem. No caso das mulheres, eu não acho que elas falem muito. Foram silenciadas e ainda o são. É muito comum no nosso dia-a-dia ouvirmos a expressão dita por um homem “Você não está entendendo”. Ainda não somos de fato ouvidas verdadeiramente. Existem muitas políticas importantes, projetos de leitura de obras femininas, mas quando partimos para o mundo fora da bolha que a gente cria para nos proteger, deparamo-nos novamente com o machismo. É cansativo lutar contra o sistema todos os dias. Antes do lugar de fala, acredito que deveríamos pleitear um lugar de escuta também. Escutar, inclusive, nós mesmas.

Quando você questiona se falamos muito, eu, enquanto mulher, ainda não me vejo nesse espaço de imensidão de poder de fala. Ainda não. Escutamos muito o discurso do homem hétero, branco, letrado e elitista. As poucas mulheres que conseguem transpor as barreiras do cânone ainda se deparam com o racismo, a misoginia, o sexismo, a LGBTfobia, as questões de classe, as escolhas políticas, a gordofobia, a xenofobia, dentre outras questões. Eu não entendo o lugar de fala como a exclusão de outras vozes, um narcisismo militante, mas como a percepção do protagonismo de uma voz individual que deveria ser entendida como mais poderosa que as demais dentro de um discurso.

Que tipo de análise você faz sobre o espaço da mulher no mundo acadêmico? No seu ponto de vista, avançamos ou estagnamos?

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O meu mundo acadêmico foi e é povoado por mulheres. No meu curso, Letras Português, é mais comum encontrarmos mulheres que homens. Acredito que essa talvez não seja a realidade em outras áreas. Não sei. Eu vejo as mulheres se esforçando mais que os homens, vejo as mulheres pretas e pobres se esforçando mais que as brancas e ricas, vejo um esforço contínuo e vejo os resultados também.

Com os estudos de gênero, principalmente nos tempos do meu mestrado na Universidade Estadual do Piauí (UESPI), eu pude ampliar, reconstruir e ressignificar a minha visão enquanto mulher. Os estudos são essenciais para desterritorializar os discursos que nos oprimem. A academia é um lugar para se debater essas questões de forma profunda, porém não devemos nos deter apenas a esse espaço.

Estamos sufocados de tanta teoria e não achamos ainda a metodologia de colocar as questões em prática. É muito bonito ver as discussões na academia, mas é triste sair dos muros da universidade e constatar que muito ainda precisa ser feito. A realidade se impõe a cada dia. A maioria das pessoas ainda não sabe o que são, por exemplo, os feminismos. Estamos mergulhados numa apatia, num anti-intelectualismo, num cancelamento dos sujeitos, num tudo-ou-nada. Apesar de tudo isso, respondendo a sua pergunta, acredito que avançamos sim, porém agora a gente entende que precisamos avançar muito mais para que não percamos o instável espaço recém-conquistado.

É cansativo lutar contra o sistema todos os dias. Antes do lugar de fala, acredito que deveríamos pleitear um lugar de escuta também. Escutar, inclusive, nós mesmas.

Fala aí sobre as escritoras que marcam sua sensibilidade atualmente? Indica essas leituras para os leitores/leitoras da Acrobata?

Cara, o doutorado tem sido um bálsamo na minha vida nesse sentido de ampliar as minhas leituras. Conheci autoras como Elena Ferrante, Elsa Morante, Emília Freitas (com “A rainha do Ignoto”, leiam, acrobatas, pelo amor da deusa), Margaret Atwood, Buchi Emecheta, Octavia Butler, Naomi Alderman, Susan Sontag e Natalia Ginzburg. Paguei uma disciplina no doutorando com a feminista Lola Aronovich e me interessei bastante pelo universo da ficção científica produzido por mulheres.

As escritoras que descrevem mundos distópicos têm muito a nos dizer sobre as nossas sensibilidades, principalmente em um mundo pandêmico em que o vírus do machismo, do tradicionalismo, do bolsonarismo, do tecnicismo ronda a nossa porta. Um mundo que terá que a partir de agora se reinventar, pois estamos, como nos alerta o filósofo esloveno Slavoj Žižek, diante de uma crise médica, econômica e de saúde mental.

Livro é um produto caro no Brasil. Sabemos. Se o tal imposto do Guedes emplacar, o acesso será mais complicado. O que tem a dizer sobre um país que facilita o consumo de armas e dificulta o consumo de livros?

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Falar sobre o meu país tem sido um ato doloroso. Não tenho orgulho nenhum desse momento que estamos passando. Acho que é redundante falar o quanto os livros são mais importantes que as armas. Falar o óbvio é bizarro. Uma bala atravessa uma carne e mata. Um livro atravessa uma alma e cura. E, mesmo que não cure, deixa-te mais vivo que nunca. É bem dilacerante o quanto a Educação tem sido atacada diretamente. A literatura ao longo de sua existência tem sido interditada pelos políticos conservadores. A caça às bruxas sempre existiu. Dificultar o acesso é pior que queimar os livros.

 Hoje em dia, mais que nunca, o que é proibido é mais prazeroso, já dizia a psicanálise. Ao invés de simplesmente proibir, a interdição de hoje em dia é mais sofisticada: ela ataca o bolso daqueles poucos brasileiros que ainda podem comprar livros.

O livro visto enquanto objeto disseminador de conhecimentos deve ser de fácil acesso à população. Livro não deve ser entendido como “coisa de rico” ou de intelectual preso numa torre de marfim. Essa tributação afetará setores que sobrevivem da venda de livros, como as pequenas livrarias, por exemplo. Mitigar esses espaços físicos em que o livro circula é danoso também para a nossa memória cultural. O prazer de ir a uma livraria ou a uma feirinha de livros usados poderá ser coisa do passado. A vivência nesses espaços será perdida. E já perdemos tanto ultimamente neste fatídico 2020 que nunca começou e que parece que nunca vai terminar.

Para você, tudo é literatura ou é importante definir os espaços de atuação das militâncias: literatura indígena, negra, trans, lésbica, feminista… ? Qual a importância de situar essas categorias nos dias que vivemos?

Nem tudo é literatura. O que é literatura é uma tarefa por demais difícil de responder. Hoje em dia, existem espaços que beliscam fortemente o cânone tido como “universal”. E o cânone tem assistido a uma certa abertura, porém não a um escancaramento. A criação desses novos espaços que você citou tem sido importante para as militâncias no sentido de reafirmar suas propostas.

 No entanto, a literatura não se resume a isso. A linguagem literária precisa de contínua reinvenção e ressignificação. A literatura tem expressado essas vozes com poeticidade e dinamismo. Os espaços podem e devem existir, mas, ao meu ver, não deveriam virar bolhas de expressão. É preciso adentrar no território inimigo também, mesmo que muitas vezes estejamos cansados do embate. E é preciso entender do mesmo modo que a literatura não se resume à militância. A literatura pode militar, mas ela vai bem mais além disso. A literatura pode também oprimir, ela não tem um compromisso com a bondade. A literatura pode libertar, mas ela não te garante aonde você vai chegar.

É preciso também perceber que nem tudo é literatura porque ainda existe um certo limite e instituições (academias, premiações) que cerceiam o que é permitido ser relevante em determinado momento histórico. A pergunta mais pungente, nesse contexto, não seria “o que é literatura?”, mas “para quem?”, ou seja, quais instituições legitimam determinadas obras e deslegitimam outras. Por que isso ocorre? Por que algumas vozes vão ser mais visibilizadas que outras?

A literatura tem ajudado, querendo ou não, a sociedade a contestar essas teias de poder. É um local de discurso privilegiado, em que as vozes distantes temporal ou espacialmente podem ser ouvidas. É um local também de confronto de experiências passadas, atuais e até futuras (o que dizer das previsões em “O Conto da Aia”?). A partir dessa difusão de vozes podemos conhecer um pouco mais sobre culturas distantes e sobre categorias, inclusive muito próximas a nós, que foram silenciadas. Chegamos a um momento em que encontramos eventos nacionais e internacionais que tratam de literatura indígena, negra, trans, lésbica, feminista… Isso é algo muito recente ainda, por isso precisamos ampliar e consolidar cada vez mais esses espaços de discussão. E, principalmente, assegurar que eles ainda possam encontrar meios de persistir diante do nosso contexto.

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