Vozes do Punk vol. 15: Heitor Matos e a cena punk dos anos 2000

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Convidamos Heitor Matos para contar sua história e relação com a sonoridade punk. As referências que atravessam o cotidiano dele são marcadas por um conjunto de bandas famosas do showbiz às formações locais undergrounds. Conhecer sua travessia é uma maneira de mergulhar na rica cena que está acontecendo em Teresina nos últimos 15 anos, mesmo com os impactos causados pela pandemia. Além de ocupar os vocais da Cianeto HC, é pesquisador do tema e um dos autores do livro Chakal, lançado pela Editora Cancioneiro (2021).

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O punk se confunde com a minha vida desde os meus 14 anos, mais precisamente na primeira metade dos anos 2000. Nunca me considerei um jovem muito funcional e talvez por isso tive uma atração tão intima com um conceito historicamente tido como antissocial. Andava longe de alcançar a média aprovativa nas notas na escola, não era o primeiro a ser escolhido no futebol e andava longe de ser um tipo popular entre os colegas.

Nessa época, a febre entre os jovens era o rock e suas megalomaníacas bandas de estádio. A MTV estava e alta e qualquer um que agitasse uma guitarra virava assunto entre os adolescentes da época. O rock era para nós, o que o funk ou o rap tem sido pra juventude de nossa década atual.

Bandas como Red hot Chilli Peppers, Linkin Park, System of a Down e Offspring tocavam a cada vinte minutos em programas de rádio e TV. Apesar de eu sempre ter tido o comportamento de evitar tudo aquilo que era muito popular, até pra me diferenciar dos colegas, agradeço até hoje ao mainstream. Sem ele, eu jamais conheceria a fundo o lado underground do rock e toda a filosofia que, pelo menos para mim, constitui o punk.

Antes de tentar explicar o que essa arte da (r)existência representa para mim, preciso falar sobre alguns encontros de alma que tive nessa época. Frequentei a Escola Santa Helena, um colégio de farda verde que ficava no marquês. Tive o privilégio de ter uma educação de qualidade, apesar de não dar o devido valor na época. Muito mais do que aulas chatas de matemática ou química, minha primeira “ligação iônica” com o punk foi musical.

Meu amigo de bagunça, o Igor Samuel, me apresentou um álbum de melhores êxitos do Ramones. Foi amor à primeira vista. Eu não conseguia parar de ouvir aquelas músicas de pouco mais de um minuto. Metade das coisas que eu ouvia na época ficaram obsoletas ou cafonas. Passei a desprezar – com certa injustiça – bandas clássicas com músicas intermináveis como The Doors, Pink Floyd e Led Zeppelin, que passaram a me matar de tédio. Foi um caminho sem volta, agravada com a revolução dos provedores de internet. Quando cheguei ao ensino médio, ora incomodava os amigos que baixavam músicas por programas como kazaa e emule, ora “afanava” os CDs dos meus amigos.

Com o tempo, passei a frequentar a Chimpanzé, uma espécie de loja de discos pirata, que baixava absolutamente tudo dos fóruns infinitos que eram compilados no orkut. Cansei de guardar grana do lanche pra gravar CDs naquele lugar. Tinha capinha de acrílico e impressão de frente e verso dos álbuns. Os Ramones me levaram aos Sex Pistols, ao The Clash, NOFX, Rancid, Pennywise, Social distortion, Dead Kennedys, Black Flag …Todo dia era uma descoberta nova. Gosto de dizer que essa música energética, rápida e agressiva salvou a minha vida. Superei a minha primeira depressão severa com o puro suco dos power acordes.

Além de me globalizar com as melhores bandas punks do mundo, a Chimpanzé tinha outro atrativo para mim: As bandas locais. Não me lembro exatamente como foi que consegui meus primeiros discos das bandas daqui, mas conheci Obtus e Káfila nesse contexto. Achava os nomes das bandas engraçados, principalmente no metal, com aqueles riscos que pareciam raízes de árvore.

Em finados de 2007, acabei fazendo amizade com o cara que me introduziria a cena local: Thiago Marden. Ele namorava uma amiga minha da escola na época. Ele me contou de sua banda e me convidou pra assistir os ensaios. O nome soa muito bem e banda existe até hoje: Terror Fetus, que na época ainda fazia um som meio Trash Metal. Eu não podia acreditar naquilo. Como alguém podia tocar tão alto e enfiar tantos riffs e solos em uma música? Até brincava dizendo que se o Thiago cortasse as músicas, álbuns inteiros poderiam sair disso.

Eu nunca me considerei um headbanger, mas passei a consumir bandas como Slayer, Behemoth, Dimmu Borgir e Cradle of Filth, muito por conta desse meu ciclo de amizades na época. No entanto, meu amor pelo som punk não diminuiu com essas novas descobertas. O Thiago meio que percebeu isso e passou a me mostrar, mesmo que indiretamente, que há um ethos no punk e nessa produção subterrânea para além da música. Ele me deu de presente o documentário End of century dos Ramones e me apresentou a um dos caras mais inteligentes que já conheci: O camarada Léo Punk. Provavelmente ele não se lembrará de mim, mas eu jamais esquecerei do quão revolucionário foi conhece-lo. Primeiro que seu visual era algo que causava na época, já que ainda não era tão comum os cabelos espetados, os alfinetes e patches, coturnos e inúmeras tatuagens a mostra.

Foi uma tarde em que descobri que haviam bandas punk até mesmo na Finlândia e que elas que cantavam em português! Ouvi pela primeira vez coisas sobre as casas punks “squats”, detalhes de cada gravação dos álbuns dos Ramones, entendi sobre os boicotes as multinacionais e protestos no 7 de setembro, a questão do voto nulo, ação direta, a luta contra o especismo e a ética do underground de controlar o processo criativo, desde produzir seu som e arrumar lugares pra tocar, sem o auxílio de grandes gravadoras ou incentivos de multinacionais. “Faça você mesmo pois ninguém fará por você”, virou meu mantra, meu mandamento, meu caminho para o Nirvana.

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Fui também apresentado aos fanzines, uma espécie de xerox com uma desordenada verborragia contra o sistema capitalista e sua desigualdade brutal. Conhecer o Léo foi uma epifania. Saí determinado a estudar e refinar meu senso crítico e minha visão de mundo, para melhor entender e reagir as mazelas do cotidiano.

Passei a amar História e fui a fundo nas contradições dessa eterna casa grande e senzala que é o Brasil. Eu só fui ter outro insight desse na universidade, quando passei a cursar História e conheci a professora Teresinha Queiroz, uma verdadeira enciclopédia viva. Até hoje me pergunto se ela não é uma espécie de oráculo, visto que ela consegue dar parecer sobre qualquer assunto, sem hesitar. Conversando com o Léo punk na época, tive esse mesma sensação e queria ter essa capacidade de interpretar o mundo para mim. Depois disso, eu passei a olhar para meus amigos e pensar:”Putz, vocês nunca vão ver na escola o mundo tão vivo que eu tenho experimentado fora dela”.

Sobre minha relação com o fanzines, vale destacar o quanto a qualidade da internet havia melhorado, no contexto do pós 2009. Com isso, o papel perdeu um pouco sua força. Os fanzines, que eram importantes ferramentas de expressão e comunicação na década de 1990, deram lugar a redes sociais e e-mails. As redes sociais se mostraram como uma febre que veio para ficar e desde então sofrem mutações das mais diversas. A própria expressão “Meme” passou a emular o que os zines sempre fizeram: tirar uma imagem de um sentido cristalizado e fazer com que ela seja outra de si mesma, com outro sentido e significado.

A era digital transformou muita coisa na forma como nos relacionamos, mas eu considerava que permanecer como um “artesão da palavra” era uma forma a de resistência. Em 2013, no ápice das manifestações contra o aumento editei – gastando muita cola papel, fotos e textos de amigos que frequentavam ou não a cena – o megazine Jardim Atômico, que durou umas 4 edições, sem uma frequência fixa.

O nome foi inspirado numa música da banda Bad Religion, que tinha uma música chamada “Atomic Garden”. A música tem um trecho que sempre me chamou a atenção: “Eles dizem saber o que é melhor pra mim/ Mas eles não sabem o que estão fazendo”. Sempre tive essa impressão do status quo e por isso, resolvi confronta-lo a minha maneira. Muita coisa precisava ser dita e não caberia em poucas palavras. A primeira edição contou com mais de 30 páginas, com textos de essência como “o que é punk?”, críticas a nossos gestores na época, sugestões de filmes e reflexões sobre artistas locais, como Torquato Neto. Ainda conseguimos xerocar umas 100 cópias disso. Espero sinceramente que o Jardim atômico não tenha virado alimento para as traças empoeirando em gavetas. A leitura do fanzine pede a dinâmica do “leia e passe adiante”, não sendo adaptável para escritórios ou repartições. Esse tipo de mídia (ou antimídia se preferir) pode ser um atrativo de informação rica e criativa numa era de leitura preguiçosa.

Com o tempo, passei a ver a importância da tecnologia como mecanismo que nos aproximou de pessoas, línguas e debates que nunca teríamos contato facilmente. De crítico do Hitech, passei a produzir uma versão digital do meu fanzine. Chamados de E-zines, esses compilados nada mais são que versões digitais de nossos fanzines físicos enviados pela caixa de email.

Entrevistamos a banda paulista Bullet Bane e essa edição circulou pelo Brasil – quiçá mundo – de fato. A diagramação ficou muito mais fácil, mas perdeu um pouco da babel que caracteriza esse tipo de mídia. A graça muitas vezes está em deixar aberto o caminho do debate e não simplesmente explicar as coisas. Só sei que ainda prefiro o laborioso trabalho manual de colar, escolher imagens e fazer mosaicos no fim das contas.

Ao ter contato com bandas locais como Enxofre, káfila e Obtus, eu passei a planejar montar uma banda, mesmo sem técnica alguma e decidi começar a colocar no papel as minhas reflexões sobre a realidade. Logo isso se tornou um vício e eu acabei me tornando um letrista voraz.

Até brinco com amigos mais próximos dizendo que tenho material para produzir uns 15 álbuns, o que não é exatamente uma mentira, visto que tenho tudo arquivado em alguns cadernos. No final de 2008 acabei conhecendo no curso de pré vestibular o camarada Valcian Calixto, talvez um dos artistas mais injustiçados do Piauí hoje. Ele chamou a minha atenção porque produzia uma espécie de zine com bizus, dicas e caricaturas de professores e personalidades mafrenses. Sua família é constituída de músicos formidáveis, que tocam todo tipo de estilo, do forró ao metal.

Nos tornamos amigos rapidamente e fundamos a banda Doce de Sal, que era uma espécie de híbrido dessa mistura de ritmos que o Valcian herdou da família e o ímpeto punk comum em nossas jovens composições. Eu não passei dos ensaios com a Doce de sal, porque queria que a banda soasse mais agressiva, com mais distorção na guitarra. Apesar das diferenças musicais, o Valcian continuou com a Doce de Sal e no fim de 2009, se juntou a mim na formação da minha banda, a Cianeto HC, onde ficou até 2017, se a memória não me trai. Nosso primeiro show foi no “finado” teatro João Paulo II, do bairro Dirceu. Convivemos com ótimas bandas da região, como Comassocial, Elétron, Flores Radioativas e outras pérolas da época.

Cianeto HC

Nessa época, a sonoridade tinha como o esqueleto o punk inspirado em bandas punks populares nos anos 90, como o Bad Religion, Cólera, Face to Face e Dag Nasty, bandas anarcopunks como subhumans e o ska de grupos como Garotos Podres e Citizen Fish. Nesse meio tempo, me dediquei ao curso de História e desde o primeiro período da graduação tinha como interesse estudar o underground e o movimento punk piauiense, para mapear espaços de sociabilidade, comportamentos e bandeiras de luta. Gostaria de trazer a superfície um estudo responsável sobre o punk, visto que no Brasil o movimento foi bastante criminalizado, principalmente pelas emissoras de televisão, que apreciam marginalizar aquilo que não entendem, temperando a notícia com sensacionalismo, delinquência e sangue.

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Em minha pesquisa de mestrado, a fim de facilitar um possível entendimento da história do punk Mafrense, eu traço uma linha temporal que mapeia os formigamentos do movimento local, que começa na fundação da banda Grito Absurdo nos anos 80, passando pelo Grupo de Estudos Anarquistas e o mutirão na Vila Irmã Dulce dos anos 90 e desemboca numa espécie de “revival punk” pós 2011.

Em 2011, o Ratos de Porão faria um show memorável juntamente com a banda Obtus no Bueiro do Rock. Praticamente todas as bandas que surgiriam nessa última década, estavam nesse show. As bandas que já tocavam e sobreviveram a virada da década de 2010 como fizemos, se reuniram a essa nova safra emergente.

Até mesmo bandas que tocavam cover em calouradas da universidade passaram a priorizar produções autorais. Bandas que tinham parado, como foi o caso do Káfila, acabaram reativadas. De cabeça, consigo me lembrar de Escrotos, Knifepuncher, Campo Minado 118, Pancreatite Noise, Aloha haole, Kandover, Garoto Andróide, Old School Kids, RG 00, Pay Jones, Banheiro de Rodoviária, Miséria HC, Moderdura, Maldito Necrotério… Com a Cianeto HC, pude dividir o palco com inúmeras dessas bandas incríveis.

Apesar da crescente quantidade de bandas, os espaços que tocam rock e valorizam o som autoral são bem escassos até hoje. O público piauiense gosta mais de covers, embora não goste de pagar o couvert muitas vezes…Mesmo com inúmeras dificuldades, alguns lugares mantiveram a cena pulsante por aqui.

Em qualquer lista feita sobre os últimos 10 anos de underground é preciso citar o Bueiro do Rock, o Trilhos e o Caverna. Entretanto, eu vou me lembrar com carinho do lugar onde mais tocamos: O Vapor barato, a posteriori chamado de estacionamento D’car. O espaço ficava no Centro, próximo à praça da Liberdade. O dono, Ribamar, não cobrava absolutamente nada pelo espaço e basicamente lucrava com a consumação de bebidas e arrumadinhos.

Espaço D Car

O auge desse lugar, entre 2017 e 2019, traz boas recordações e muito saudosismo de quem viveu e tocou naquele inferninho. Infelizmente com a pandemia, o Seu Ribamar precisou vender o lugar. O D’car foi uma opção boa e barata de lazer, descontração e muita crítica ao sistema. O barulho que fizemos ali foi grande e não passou desapercebido. Desses espaços menores, conseguimos fazer shows em lugares mais amplos, como foi no Clube dos Diários em eventos como na Virada Geek (2017), no Grito Rock (2018) e no Teresina Hall, no festival Teresina é Pop (2017).

Virada Geek

Os coletivos, mesmo com todos os problemas de convivência também foram populares durante a década de 2010. A duração é variável e mesmo aqueles com vida curta, deixaram legados importantes no período. A Cianeto HC atuou diretamente em 2 deles: O geração tristherezina e o Nuvem Negra The. O primeiro nascido entre 2016 e 2017, englobava além dos músicos, artistas visuais e escritores. Um dos grandes legados dessa organização foi a maior preocupação das bandas com a divulgação de seus trabalhos. Nós, a banda Cidade estéril, Doce de sal e a Old School Kids produzimos como se fosse numa reação em cadeia e fazíamos por conta própria nossos EPS e shows, mesmo com pouquíssima grana.

Ainda em 2016, Valcian dissolveria a Doce de Sal e sua banda e começaria a tocar solo. Junto com o coletivo, a Cianeto produziu os EPs: “Cianeto”, (2016) “Decair” (2017) e “Estilhaços” (2018). O Valcian merece o crédito de ser um dos pioneiros a começar a divulgação via Spotify e mídias digitais no Piauí. Depois que ele começou a pensar fora da caixa com o seu álbum Foda! todas as outras bandas locais passaram a fazer o mesmo.

Nosso álbum Estilhaços foi resenhado em sites internacionais, como o Super World Indie Tunes. Compararam uma das faixas do nosso álbum com as coisas feitas por grupos britânicos como o Stiff Litle Fingers. Um reconhecimento impressionante para um álbum que foi feito em condições precárias, gravado num apartamento com muito eco.

Eventualmente viramos pauta em vários sites especializados em música, onde eu posso destacar sites nacionais como Nada Pop, Floga-se e Guitar Talks. A força da internet mostrou sua face mais poderosa nesse momento e nos aproximou de realidades e pessoas desconhecidas numa escala gigantesca. Lembro que comemorei quando vi Estilhaços sendo colocado para download num site russo. Impressiona o quão longe se pode chegar na rede, sabe? O importante no fim das contas é circular por aí.

Um dos eventos mais malucos que organizamos nesse tempo foi o Talibã Rock, onde literalmente levamos os instrumentos para frente de um galpão no mercado da Vermelha e fizemos muito barulho. O evento ocorria sempre no segundo semestre, em meados de setembro.

Na segunda edição, coisa de 200 pessoas foram assistir as bandas, todas espremidas em um dos becos do mercado. Foi uma epifania. Infelizmente a polícia e alguns vizinhos não pensaram assim. Ainda rolou uma edição no D’car, mas o coletivo já se encaminhava para o fim. Ainda rolou uma iniciativa muito legal do Valcian em fazer um documentário sobre tudo o que aprontamos nessa época, mas não foi pra frente. Gravamos muitos takes, mas não sei onde essas imagens foram parar, infelizmente.

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Talibã Rock

Com uma duração mais curta, atuei também no Nuvem Negra em 2017, que trouxe atrações nacionais do underground para Teresina, onde podemos citar os cearenses da Damn Youth, os paraenses da Antes do Erro e os cosmopolitas do Surra. O coletivo me ajudou a organizar o Jardim atômico fest e muitas outras iniciativas locais.

Além dos brothers da banda Kandover, representados pela figura do Jairo Mouzinho, construímos eventos com o Pedro Hewitt, que hoje organiza muita coisa principalmente com metal, onde se destaca o Infektor Self Festival. Eu escrevi o manifesto do coletivo, que tinha como premissa “Transformar trevas em luz, o ódio em produção, o desejo em realidade, a força bruta em pensamento, a apatia em crítica, a conformidade em diversidade.

Combatíamos ainda “conceitos cristalizados, intolerância e estrelismo”. Infelizmente na prática não foi bem assim que a coisa caminhou. Não foram poucas as brigas de ego nesse período, sem culpados ou vencedores no fim das contas. Ainda hoje acredito que, se tivéssemos aparado as arestas, já seríamos um selo ou algo do tipo, que facilitaria mais captação de recursos. Cheguei ainda a fazer um fanzine do coletivo, mas durou apenas uma edição.

Entretanto, o coletivo deixou a sua marca e colocou o hardcore/punk piauiense no mapa nacional, organizando o “Hardcore contra o fascismo” em 2018. Essa manifestação nacional contra a Necropolítica de Jair Bolsonaro teve sua versão mafrense. Depois fui informado que coisa de 1500 pessoas circularam pelo evento naquele dia. O clima de tensão em virtude da polarização pós 7X1 estava no ar. Membros do coletivo foram ameaçados no processo, mas felizmente não houveram incidentes ou ferimentos graves. Coisa de 11 bandas tocaram naquela noite. E deu tempo de todo mundo pegar seu ônibus, no fim das contas.

Três menções honrosas precisam ser citadas aqui. A primeira vem de Demerval Lobão. A professora e gerente de eventos Nádia Figueiredo merece muito reconhecimento. Com o evento Balaio Cultural, ela deu muito espaço para as bandas autorais tocarem em outra cidade com a melhor estrutura possível. O Eduardo Djow é outro que precisa ser destacado, pois tirou do próprio bolso pra organizar o Piauí Punk Festival com oito bandas contando com atrações de outras regiões do Estado. No que diz respeito a pandemia e seus desdobramentos recentes de isolamento social, vale citar o Cláudio e uma série de lives organizadas no seu estúdio caverna produções. Ele conseguiu reunir gregos e troianos e mostrar que a cena underground como um todo quando quer, se une e faz acontecer, mesmo em tempos difíceis.  

Quanto a trabalhos mais recentes, Eu e a Cianeto Hc vamos tentando sobreviver a pandemia. Em 2019 lançamos o nosso primeiro álbum full chamado Sociedade das marionetes. Coloquei sangue, suor e lágrimas nas letras, para valorizar a lutar por uma pauta mais progressista em prol do povo e questionar hipocrisias clericais e políticas que alimentam a elite do atraso no Brasil. O conceito de Necropolítica permanece forte em nossos trabalhos, até em virtude de tantas mortes que ocorreram no Brasil por conta da indiferença do governo nos dois últimos anos. O primeiro videoclipe da minha banda chamado “Lunga”, lançado na caverna produções, faz menção ao personagem de mesmo nome e ao filme Bacurau.

A repercussão do clipe foi muito boa e até mesmo o ator Silvero Pereira nos curtiu e indicou para outras pessoas. Tanto o filme quanto o justiceiro se tornam metáforas para mostrar como governos tem brincado e descartado vidas que não possuem valor na lógica de mercado de um capitalismo selvagem. Temos engatilhado um novo Ep com 7 músicas novas, mas falta se reunir e gravar com calma. Uma hora vai acontecer. O importante no fim das contas é manter-se produtivo sempre.

Depois de tanto sangue, suor e lágrimas passei a ver o punk como uma experiência de vida que visa a iluminação. Longe de parecer um budismo ou coisa do tipo, o punk é um conceito multifacetado que passou a significar pra mim um amadurecimento pessoal para catalisar a revolução social.

O punk é um conceito aberto, camaleônico. São mais de 40 anos de vida e transformações são comuns no interim desse processo. Passei a entender que a criatividade é a maior arma contra o sistema. Quando algo é previsível, mais controlável e mais manipulável ele é. O status quo vai saber manter o controle em cima de quem adere a anestésica rotina.

Punk tem a ver com cuidar de si e do outro. Fala sobre respeito genuíno sobre o próximo, responsabilidade social e o complexo exercício de buscar um pensamento sem uma imagem definida e embalada a vácuo pela TV ou pelas fake news da internet. Não sei se minha ideia é comum a toda cena, – sinceramente acho que não – mas pra mim tem servido muito bem.

Refletindo sobre a cena local e brasileira, ainda vejo a ideia de destroy com um fim em si mesmo do Sid Vicious com muitos adeptos. Não sei se isso é exatamente saudável para o nosso futuro, cujos desafios exigem discussões cada vez mais humanizadas e políticas. Eu gosto muito de uma frase dita pelo geneticista Howard Jacobs: Rebeldia requer pensamento. E um pensamento livre de um visual fechado, um espaço demarcado e niilismo sem propósito é preciso. Acima de tudo é preciso provocar e ocupar espaços improváveis sempre que possível.

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