Colecionador de Conchas – um Conto de Taylane Cruz

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Taylane Cruz (SE) é Formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, é escritora  e assessora de comunicação da Mostra de Cinema Negro de Sergipe- EGBÉ e do Festival Sergipe de Audiovisual- Sercine. Em 2015 lançou seu primeiro livro de contos “Aula de Dança e Outros Contos”(Infographics). Já colaborou com a antologia Senhoras Obscenas (Editora Benfazeja, SP) e Golpe: uma antologia-manifesto (Editora Nosotroseditorial, SP). Participou de oficinas de criação literária com os escritores Luiz Rufatto, Marcelino Freire e Gonçalo Tavares. Já ministrou a oficina de Microcontos durante a semana literária do Sesc em 2017. E hoje atua como palestrante e ministrando oficinas de escrita criativa. Seu segundo livro de contos foi lançado em 2018, A pele das coisas (Editora Multifoco, RJ).


 

Ele adorava conchinhas. Mudou-se para a casa da avó só para poder estar mais perto da praia. Nada era capaz de lhe dar mais prazer no mundo do que catar conchinhas na areia molhada e guardá-las num pote de vidro. Seu espírito de colecionador. Possuía vários potinhos na estante, todos cheios e sortidos de conchinhas branquinhas, marrons, pretas, douradas. E foi nas conchinhas que pensou, quando voltou da escola e viu aquele homem morto na calçada de casa. Poderia imaginar um cão preguiçoso enrodilhado debaixo do sol, ou a avó atirando um balde de água com sabão fazendo a espuma derreter na calçada quente, ou mesmo o carteiro entregando a correspondência, tudo a sua imaginação poderia projetar, menos um homem morto estirado na calçada. De olhos arregalados, interrogou-se sobre o fato de ninguém na vizinhança, nenhum transeunte ter estranhado o defunto ali. Sentiu um calafrio, será que a avó fazia ideia de que um cadáver se exibia na sua calçada? Aquilo mudaria a rotina de ambos, dele e da avó.

O menino observou o corpo que estava de bruços; o braço direito, escuro e forte, sobre a cabeça; o braço esquerdo debaixo da barriga; as nádegas semicobertas por uma bermuda rasgada; a cabeça escondida por cabelos cacheados pretos; as mãos, tão bonitas, embora demasiado sujas, tocavam um relevo na calçada e estavam cheias de feridas. O menino quis logo gritar pela avó, correr até ela, puxá-la pelo braço “vem depressa, vó, tem um homem morto lá fora”, mas ponderou, não queria assustá-la. Com a tranquilidade das suas manhãs catando conchinha na praia, burlou o corpo e com muita cautela ergueu a perna para não pisá-lo. Abriu o portão e entrou. Intrigado, chamou pela avó. A mulher respondeu assustada ao ouvi-lo: “Que história é essa de homem morto, Gabriel?” O menino, deixando cair a mochila e se mostrando tão espantado quanto ela, disse: “Pois a senhora venha ver com seus próprios olhos. Morreu aqui bem na nossa calçada”.

A frase do neto reverberou em todos os cantos da alma da mulher. Como era possível algo assim? E como ela não percebeu antes? Estava a manhã inteira em casa, não ouvira barulho algum. “Talvez ele tenha morrido quieto, vó” ─ o menino ponderou  ─ “tem gente que morre sem barulho e ninguém percebe”. Prendendo com um grampo os ralos cabelos, a mulher calçou os chinelos, decidiu conferir. Acompanhada pelo neto, atravessou o portão. Lá estava, de fato, um corpo com uma aparência cadavérica. Fedia. Um cheiro forte de mijo e álcool fez a mulher sentir repulsa, cobrindo a boca e o nariz com uma das mãos. Com a outra afastou o neto. O menino, interessado em saber quem estava ali morto, driblou o corpo da avó e foi parar do outro lado da calçada. “O que a gente faz com ele?” ─ perguntou olhando a avó como se esperasse dela uma solução imediata. Ela, mexendo com o pé o pé do corpo na calçada, respondeu: “Ele não tá morto, Gabriel. É só um bêbado que desmaiou. Deixa ele aí”.

O menino arregalou os olhos, colocou sobre a boca as duas mãos. A avó entrou impaciente, chateada. O corpo do bêbado, que agora se movia lentamente, tentava se erguer. Gabriel, do portão, olhava apreensivo. Era fascinante ver aquele corpo retornar à vida, retomar os movimentos como se tivesse acabado de nascer. A cabeça do homem girava devagar procurando a direção do sol, e o menino sentiu o coração disparar na ansiedade de ver aquele rosto. Teve tempo de ver apenas dois olhos se abrindo avermelhados, duas pequenas chamas que provocaram-lhe um susto. Fora interrompido, repreendido pela avó que, querendo protegê-lo, apareceu novamente e atirou uma panela de água quente no homem que rolou pelo parapeito da calçada. “Não se preocupe que só fiz isso pra espantar ele” ─ a mulher explicava-se  ─ “a pele dele tá tão morta que não sente mais nada”.

Foi um choque para o menino imaginar uma pele morta num corpo com olhos que se abrem. Como se tentasse se mover em areia molhada, o homem se arrastou, levantou-se vagaroso e desmaiou no meio da rua, retornando ao profundo sono de antes. Enquanto a avó batia o cadeado no portão, o menino pensou nas conchinhas que gostava de catar na praia e que, se pudesse, cataria aquele corpo como uma conchinha frágil, cuja beleza de porcelana era impossível violar. Nada mais que pô-lo num pote de vidro. Alegrou-se ao pensar que, vivo, o corpo combalido daquele homem poderia emitir algum som. Ficou ali com a cara no portão, as mãos pequenas agarrando as grades, os ouvidos atentos: achou graça ao perceber como o ressonar do bêbado se parecia com o barulhinho que as conchinhas da praia faziam. E não precisou se esforçar muito para ouvir o som do mar.

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