Morcego – Um Conto de Nelson Maca

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Nelson Maca, poeta e professor de Literatura. Ensinou na Universidade Católica de Salvador de 1995 a 2019. É fundador do Coletivo Blackitude: Vozes Negras da Bahia, que realiza o Sarau Bem Black, o Slam Lonan e outras ações artísticas e de formação sócio-racial através das linguagens da cultura hip hop e afins há quase 20 anos. Criou e coordenou o evento infantil Sarau Bem Legal, que aconteceu durante cinco anos e meio na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, em Salvador. Há mais de 30 anos promove e participa de eventos da negritude – seminários, workshops, cursos, shows – na Bahia e no Brasil. Juntamente com o escritor paulista Berimba de Jesus, realizou três edições do Encontro Nacional de Literatura Divergente. Com o escritor Marcelino Freire, organiza a Balada Literária de da Bahia, evento completou sua sexta edição em 2020. Com o produtor e gestor cultural Chicco Assis, fez a curadoria da Casa do Benin na Flipelô, edições de 2018 e 2019. Participou de diversas coletâneas de poemas e organizou os livros Tarja Preta, de Zinho Trindade (Edições Maloqueirista) e A Rima Denuncia (Global), do rapper brasiliense GOG. Lançou “Gramática da Ira” em 2015, “Go Afrika” em 2019 (ambos de poemas) e “Relatos da Guerra Preta ou Bahia Baixa Estação” em 2020 (contos).

foto/crédito: Leo Ornelas


Morcego

Quando Neguinho teve acrescentado à sua galeria de apelidos o de Morcego, não foi diferente de quando ganhou o de Pelezinho. Sem que abandonassem o caseiro Nenê. Ou seja, ele se faz múltiplo também na coleção de vulgos. Mas isso só poderia ser assim mesmo. Enquanto se alastra a notícia de seu último feito, ele já prepara alguma novidade. E assim corre e se diversifica sua fama. Não nasceu para passar despercebido. Mas também não se cristaliza em excesso. Nesse dia, bom de bola, como quase cracão do Vitória, que seria se tivesse passado naquela peneira de cartas marcadas, do nada, saiu voado de um beco desses que margeiam a Avenida Suburbana. Jogou o corpo pra cá. Retorceu-se pra lá. Meio que derrapando dentro das imensas havaianas sujas e maltratadas. Saltou magistralmente. Como que voando sobre aquele carrinho de mão carregado de bananas, laranjas, maçãs, mangas, abacaxis, goiabas, umbus. Deu apenas um leve toque de pé no asfalto antes de, literalmente, flutuar por alguns segundos e colar as solas dos pés, ao mesmo tempo em que retorcia os dedos, sobre o pára-choque do Rio Sena, coletivo de inomináveis aventuras. Sem perder a concentração, tirou as sandálias dos pés cascudos e vestiu-as nas mãos. Tudo no maior equilíbrio. Já sentia o vento da aventura no rosto. Começava a entrar no seu delírio único de nova revelação do surf rodoviário. Foi então que se deu a freada brusca, totalmente fora de hora e lugar. Claro que, mesmo intuitivamente, ele estranhou a parada de supetão do buzu. Ali não havia ponto, lombada, sinaleira, vala, cruzamento, módulo. Antes mesmo de virar o rosto para ver do que se tratava, sentiu o estampido no ouvido. Quando deu por si, estava estatelado no meio da rua. Orelha direita pulsando como um coração em colapso. Sua audição prolongava as contrações do estampido que lhe ensurdecia. Ali, no chão, rodeado de curiosos ao longe, recuperava sua inocência perdida na fama. 14 anos de idade. Magrelo e comprido. Uma vareta de cutucar estrelas. Maltrapilho, trazia estampado na pele e na mente as marcas sujas da Bahia preta, pobre e perversa.

– Levanta, vagabundo!!

Só então, percebeu, já pelos coturnos e a calça cáqui que subia de dentro das botas, que se tratava de um meganha. Levantou cabisbaixo. Arcando-se sobre si mesmo, mãos na barriga, finalmente, soltou seu primeiro gemido de dor. Baixinho. Como convém diante de um homem da lei.

– Tá doeno, seu morceguinho filadaputa?

Sabendo que, de um jeito ou de outro, prosseguiria o corretivo, apenas curvou-se um pouco mais. Protegeu o fígado, o pâncreas, o estômago, como se acostumou a fazer em momentos de encontro com os pacificadores da área.

– Olha pra mim, seu sacana abestaiado!

Sem mover o abdômen, mantendo ambas as mãos na barriga, levantou o olhar. Fitou a cara preta do policial que lhe enquadrara. Morcego, um Davi descalço em frente daquele Golias fardado.

– Se eu te pegá mais uma vez bancano o macaco agarrado num desses carro, cê já sabe, né, seu viadu. Ocê acha que é morcego, mas vai acabá virano é um monte de merda, que é o que cê é. Seu porquera fudido. Sacizero do caraio! Agora se saia, vá! E não olhe pra trás. Vai! Seu preto otário!

O menino saiu pisando de leve. Ainda curvado, foi andando. Passos miúdos em direção oposta ao soldado. À sua volta, dava para ouvir até o ruído das moscas. Desde que reconheceram a pessoa do Neguinho no morcego derrubado pelo marreco, ninguém esboçou a menor reação. Muitos eram os motivos para o silêncio. Conhecimento antigo daquele pivete criado naquela área. Admiração. Desprezo. Raiva. Pena. Receio. Dó. E até ciúme.

Ciente da missão cumprida, o Golias cáqui desviou seu olhar de desprezo. É de menino que se torce o pepino. Era a voz sublime da velha mãe querida. Sabia que impôs o respeito ao pivete e a todos os vagabundos presentes. Além de mandar um recado aos ausentes. Sabia que fez jus à sua fama já antiga. Sorriu maroto para si mesmo. Depois se dirigiu para o carro ali estacionado pelo puro acaso de comprar uma carteira de cigarros. Vinha de uma noitada de plantão relativamente tranqüila. Apesar da má fama de sua jurisdição. Sabedor da eterna tensão com aqueles que esperam, na sede, seu mínimo vacilo. Entrou. Empurrou seu Djavan para dentro cd player. Deu partida no motor da barca. Antes de aliviar o pé da embreagem, pensamento na nenê acordada em casa, tateou o painel em busca do isqueiro para acender seu Carlton.

Todos viram, sem muita surpresa, quando Neguinho desencurvou-se, ganhando a estatura de um enorme problema. Como nas rodas de angola, mandingueiro batizado Ciclone por seu velho mestre Sariga, girou ligeiro. Deu meia-volta no corpo delgado, ao tempo que tirava as mãos da dobra do estômago, trazendo, na conhota, como um relâmpago, seu inseparável ferro, que brilhou, naquela manhã, antes de atingir duas vezes a nuca de seu algoz com a precisão de um mestre. Ali mesmo ele ficou. Sentado ao volante. Em silêncio eterno.

                  “Os que trairão
                  Esses não
                  Já tem gente demais
                  A querer mandar
                  O povo quer florescer
                  E ganhar a vida”

No cd, Djavan seguia inabalável. Menino de hábitos tranqüilos, Morcego, antes de se sair, catou o outro pé de sua sandália. Prendeu a tira que havia soltado. Voltava a lhe coçar a mente o desejo de pongar no primeiro buzu, grudando suas garras longas, sujas e negras na lata já quente pelo calor da manhã. Queria sentir o vento na narina larga e aquele arrepio no corpo, enquanto sonha transferir os negócios para São Paulo. Lá, grudará como morcego nos trens da Luz, que lhe falou seu quase lembrado pai na nunca esquecida promessa de volta naquela remota dolorosa despedida.

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