Nesse dia que parece ser mais longo que os demais – Um conto de Leonardo Almeida Filho

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LAF – Leonardo Almeida Filho, (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, músico, reside em Brasília. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou “Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito” (EdUnB), 2008, “O livro de Loraine” (Edição do Autor, romance, 1998), “logomaquia: um manefasto” (híbrido, 2008); “Nebulosa fauna & outras histórias perversas” (e-galaxia, contos, 2014), “Babelical” (poemas, Editora Patuá, 2018), “Nessa boca que te beija” (romance, Editora Patuá, 2019), “Grande Mar Oceano” (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019) e “Tutano” (poemas, Editora Patuá, 2020), além de contos, crônicas e poemas em revistas e jornais. “


Nesse dia que parece ser mais longo que os demais

Sou como sou vidente
E vivo tranquilamente
Todas as horas do fim
Torquato Neto, Cogito

A meia nova apertando a perna, “que inferno!”, marcando a carne branca, incomodando como um parafuso fora de lugar. Pinica. Coça. “Ô desassossego!” Ajeita-se na cadeira, abaixa-se, arria a meia, a marca vermelha do acocho na canela muito branca, “coceirinha boa”. Olham pra ela, estranhando a insólita posição, abaixada, quase sob a carteira, coçando a perna. “Calor!” Manhã de novembro escaldante, como todas as manhãs dos meses terminados em bro. Teresina arde nessa sexta-feira. No caminho para a escola, o asfalto fervia, o mormaço cozia o couro rude dos trabalhadores no Mercado Central. O sol abraseava as almas que transitavam pela Igreja de São Benedito, incendiava os maus espíritos do Palácio de Karnak, cegava o cabeça de Cuia nas barrancas do velho Poti. No quadro negro, pronomes sobrepondo-se às capitais do Brasil. Português sobre Geografia. Mim e tu sobre João Pessoa e Curitiba. Tudo anotado com capricho em letra miúda no caderninho. Pensa no pai e na vitamina de abóbora que fora obrigada a beber. Tem engulhos na lembrança. “Beba. Beba tudo. É pra sua saúde”. E ela: “hum!” Os irmãos sorrindo da cena cotidiana ao café. “Se ela não beber, não bebo”, disse a irmã mais velha, batendo o pé. “Eu também não”, emendou o caçula. Aprendia ali que não há solidariedade possível entre crianças, muito menos entre infantes irmãos. O mais velho deles, em silêncio, mastigava o pão com manteiga e espichava o olhar por sobre o muro, no fundo do quintal, tentando enxergar o futuro. Isso foi antes, há algumas horas, antes de sair para a escola, carregando a pasta com cadernos e livros. Regurgita o grosso caldo amarelo da vitamina de abóbora ainda não digerida e bebida sob ameaça. Ânsias de vômito. Vontade de botar tudo pra fora, mas ali, na sala de aula, não. São quase dez da manhã. A meia nova mastigando a canela. O calor queimando sob o uniforme do Colégio das Irmãs. No quadro, em letras garrafais: “Os pronomes pessoais oblíquos tônicos são sempre precedidos de uma preposição, como: para, a, de e com. Devem ser usados quando, na frase, o substantivo que substituem tem função de objeto indireto. As formas contraídas comigo, contigo, conosco,… podem ainda assumir a função de adjunto adverbial de companhia” E a mãe, na solidão típica das mulheres infelizes, logo cedo, saiu para o trabalho, deixando-a e a seus irmãos sob os cuidados de Sassá, a negra velha e boa que há anos ajuda nos serviços de casa. O pai, aposentado a força por questões políticas, aparece eventualmente à mesa do café para conferir se beberam e comeram tudo. “Que nojo!” relembra aqueles comprimidos de vitaminas de todo abecedário. Ontem choveu bastante, chuva forte com relâmpagos e, por causa do temporal, um dos pássaros, das duas dezenas cuidadosamente tratadas pelo pai, amanheceu morto. “Um curió velho, de bom bico e ótimo canto”, a voz paterna lamentando a perda, “que pena!” E a mãe, para aqueles restos de comida e alpiste e penas e cocô de pássaros pela sala, pela cozinha, “Não aguento mais essa sujeira pela casa”. Eram várias gaiolas penduradas nas paredes. Além disso, um viveiro grande abrigava diversos canários no fundo do quintal. “A vontade que tenho é de soltar todos eles”, ainda a mãe lamentando a criação de pássaros do marido. Ela, olhinhos cor de mel, atentos, quantas vezes imaginou o voo daqueles pássaros, a liberdade, a fuga feliz daquela casa, liberdade e fuga que seriam também dela, que se sentia engaiolada. Bateram à porta da sala de aula, despertando-a das lembranças e dos desejos. Alguma coisa importante estava em andamento, pois viu que a Irmã Malvina estava acompanhada por suas primas, também alunas do Colégio. Chamaram-na. “Venha comigo”. Guardou cadernos, lápis, na mochila e saiu pela porta, seguindo as primas num cortejo estranho. As mais velhas estavam excitadas, sem saber o que estava se passando. Por que as estavam arrebanhando e levando-as à sala da direção? Algo muito sério devia ter acontecido, deduziam temendo o pior. “Sentem-se. Fiquem quietinhas, seus pais logo estarão aqui”. “Que aconteceu?” Ela quis saber. “Algo grave com um primo de vocês que mora no Rio” disse secamente a Irmã Malvina.  “Agora, acalmem-se”. Que primo? Que grave? Elas se perguntavam afobadas, em vão. Não tinha muita noção da dimensão de tudo aquilo, continuou rabiscando algo no caderno de desenho. Eram sete primas, ela a mais nova do grupo. Logo, um tio, pai de duas delas, veio buscá-las. “Vamos, gente, apressem-se” Apertaram-se numa Rural verde e seguiram para a casa da mais velha das tias. “Meninas”, explicou-lhes, sua tia perdeu filho, o primo de vocês morreu nesta madrugada, no Rio”. Ela, assustada com a notícia, levantou os olhos do caderno e teve a nítida impressão de ver aquele primo, filho único daquela tia, que andava metido em coisa de cinema e de música pelo Sul, andando pela Frei Serafim e lhe dando um pirulito Zorro. Lembrança antiga e carinhosa de alguém que, na verdade, pela diferença de idade, sempre lhe foi muito distante. Ficou calada, pensando na perda, tentando apreender seu significado. Ele era bem mais velho, outra geração, outra turma, outro mundo. Dele, poucas lembranças e normalmente muito frias, distantes. Sabia, é claro que ele tinha problemas, ouvia o pai comentar as “loucuras desse menino”. Certa vez, ele fora internado no Meduna, para tratamento da cabeça, foi o que lhe disseram. Chegavam sempre notícias de suas atividades no Rio, recortes de jornais com coisas que ele escrevia. Lembra com clareza a capa de um LP em que ele aparece elegante, sentado, de perna cruzada. Ele vinha eventualmente a Teresina e, numa dessas visitas, ouvira uma vez a tia, referindo-se ao filho recém falecido, confidenciar ao pai “Não sei o que faça, ele não toma jeito, meu irmão!” Era um homem esquisito, ela lembra bem, muito magro, nariz grande, cabeleira grande, sonhos grandes. Ao descer do carro, percebeu que toda a família estava presente na casa da Tia. A sala lotada de gente suarenta e chorosa. O tio, no quintal, mantinha-se calmo, mas visivelmente abatido. Sua crença nos espíritos de Kardec o protegia da dor extrema. A tia, não. Seu catolicismo lhe deixava doer-se e culpar-se. Ela era puro escombro, tragédia, dor. Um nada sob o peso da desgraça. Sentada no sofá, amparada pelas irmãs, chorava baixinho, como se não quisesse incomodar os parentes que ali se reuniram em apoio a sua dor. Os olhos vermelhos, inchados de tantas lágrimas vertidas, pareciam não acreditar no destino de seu único filho, seu amado rebento. A terrível informação do Rio chegou, por telefone, logo cedo na voz desesperada da mulher: “Ele se matou” ela disse. Ele, incrédulo, pediu que repetisse. “Ele se matou” e caiu num choro convulso. A esposa não suportaria a notícia, ele a conhecia muito bem, anteviu todo o sofrimento. O que se observa agora, ali na sala, é justamente o que ele temia e supunha que fosse acontecer: uma mulher em fiapos, desdobrando, fibra por fibra, o coração do filho. Ela não cria no que se passara, no que estava se passando, e sentia a presença do filho em cada canto da sala, podia ouvi-lo cantar diante dela: “Mamãe, mamãe não chore. A vida é assim mesmo, eu fui embora”. Caia em soluços curtos e reprimidos. Fechava os olhos, espremia lágrimas que encharcavam sua face marcada por tamanha dor. Olhava em volta, todos a espera de mais notícias do Rio, o translado do corpo, a chegada à Teresina para o sepultamento, capela, velório, tudo em processo, tudo nas mãos de parentes que corriam atrás de cartório, cemitério, companhia aérea. Observava as pessoas conversando, serviam café, suco de bacuri e cajuína bem gelada para refrescar a tarde, homens fumando, crianças irritadas com a situação, presas ali naquele ambiente esquisito de choro e circunspecção, reprimidas pelos pais para que ficassem quietas, “Cadê, onde está?” ela perguntou pelo marido com a voz fraca, quase um sussurro, foram encontrá-lo sozinho, no fundo da casa, perto da roseira, em silêncio. Ele, informado pela cunhada que a esposa o procurava, virou-se para ela, olhos molhados, jeito desamparado, e disse enigmático: “A que será que se destina?”. Fechou-se. O corpo denunciava a estafa que era mais emocional que física, apoiada no braço da cadeira, a cabeça pendendo derrotada, olhos fechados, ela tinha a nítida impressão de escutar a voz do filho vinda do quarto: “Mamãe, mamãe não chore. Eu nunca mais voltar por aí”. As irmãs se desdobrando em atenção, traziam chá de camomila. “Tome, minha irmã. Anda, mulher, reaja!” Mas ela, olhar perdido, ouvia o filho cantando desafinado em seu ouvido uma última canção: “Mamãe, mamãe não chore. A vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isso aqui”. “E o que ele queria tanto? O que ele queria tanto, minha irmã?” A menina viu a tia repetir a pergunta e desabar num choro mortiço de quem desfalece lentamente. A meia apertando na perna, o calor tremendo na sala, um primo mais velho explicando aos parentes que chegavam os detalhes da morte do poeta. Sim, ela ouviu alguém dizer a palavra poeta. Aquele primo estranho e distante era, então, agora, um poeta? Nunca, antes, escutara chamarem-no assim, poeta. “Será então que só a morte é quem batiza os poetas?” Ela pensou, sem entender muito bem o que estava pensando. O fato é que, segundo o primo, e nisso ela prestou muita atenção, o poeta se matara. Isso sim a chocou, pois, em sua ingenuidade e frescor, “como alguém pode querer morrer?” Apesar do calor, da meia ainda apertando na canela, da vitamina de abóbora mau digerida, da tristeza da mãe e da rispidez paterna, “viver é tão bom!” “Por que ele se matou?” ela interferiu na conversa. O primo sorriu desconcertado com a pergunta. Desconversou, passou a mão em sua cabeça carinhosamente e suspirou: “Tristeza, eu acho”. O pai puxou-a pelo braço, “isso não é coisa de criança, fique quietinha”. Ela foi pro canto da sala, numa cadeira vazia, perto da janela. De lá, ficou observando a tia pequenina, encolhida em sua dor imensa. Teve a impressão de ouvir alguém cantando, a voz vinha do quarto, passava pelo corredor, chegava sussurrando “Mamãe, mamãe, não chore. Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz”. Arriou a meia, coçou a marca vermelha na canela. Faz calor nesse dia que parece ser mais longo que os demais.

LAF

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