O Piano e a Roseira – Um conto de André Giusti

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André Giusti nasceu em maio de 1968 na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e poemas. O mais recente é a coletânea de poemas De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia, pela Editora Penalux. Espera lançar este ano seu primeiro romance, Só Vale a Pena se Houver Encanto. Também é jornalista e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br
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O Piano e a Roseira

Termina de escrever a matéria e manda logo para o editor. Tem até segunda-feira, mas com essa moda agora de trabalhar em casa, sábado virou dia útil. Depois vai até a varanda descansar os olhos da tela, e dá com a mulher podando a roseira. Sem olhar muito bem para ele, diz que com os galhos menores, a planta tem como ficar no canto. E aponta o canto. Ele não pergunta nada, mas pensa por que mudar a planta de lugar. Onde ficava, fazia vista se alguém que passasse lá embaixo arriscasse uma olhadela para cima. Uma vez uma dona elogiou “Belas rosas!” e ele agradeceu, soltando a fumaça do cigarro. Há cinco anos não fumava, portanto, há pelo menos isso a roseira estava ali, à disposição para enfeitar os olhos de quem passava. A esposa se aproxima e cochicha, aponta para o chão, que a dona debaixo reclama com a síndica que as pétalas caem e sujam a sala dela, e ele agora entende a mudança de lugar. A vizinha mora ali há três meses. Fechar a varanda para aumentar a sala foi a primeira coisa que fez quando comprou o apartamento. O apartamento em que ele, a mulher e as filhas moram é um dos únicos com a varanda preservada. Mais por causa dele. Ele se lembra da mulher levando em consideração blindex fumê e ar-condicionado para ganhar mais dois metros de sala em troca de lua cheia e brisa da tarde. Desistiu quando o silêncio dele disse não.

Quis saber se a vizinha debaixo era a mesma que reclama do vizinho tocando piano, e logo fica sabendo que não, que é outra, uma que diz que o piano incomoda a filha a estudar pro concurso do Banco Central. Como alguém que toca Chopin pode incomodar a vida de alguém? ele se pergunta. Já houve reclamação de choro de criança e quem pedisse que o condomínio derrubasse a mangueira da frente porque muito passarinho cantando de manhã atrapalha de dormir, foi a alegação. O prédio em que moravam antes não tinha nem elevador nem garagem, mas lhe parecia um ajuntamento de cabeças melhores, de menos estupidez. Por vontade própria estaria lá até hoje, a mulher é quem quis a mudança e talvez em reconhecimento à cessão dele nunca insistiu em aumentar a sala. Agora fica ali, cortando a roseira. Parece resignada, ou pensando que é justa a implicância da vizinha. Ele acha, e sempre achou e cada dia acha mais, que a vizinhança naquele prédio é cheia de pobre que só tem dinheiro e que esta frase, sucesso de rede social, desenha bem toda aquela gente.

Duas horas mais tarde coloca no prato um tasco imenso de bolo de batata com carne moída e pergunta à filha caçula se fez a inscrição. A garota mastiga sem olhar o pai, engole sem olhar o pai, diz não com a cabeça sem olhar o pai, que se espanta: por que não? Pergunta com os olhos, interrompe se servir, outra colherona de batata e carne para no espaço entre o pirex e seu prato, periga a maçaroca se desprender e cair na toalha branca de mesa. O último dia é segunda-feira, igual ao da matéria, que ele já mandou, e o aflige a menina esperando sabe-se lá o quê para acabar com aquela história de inscrição para o vestibular. A mulher explica que a garota ainda não decidiu o que quer fazer, e o silêncio da filha confirma a indefinição. Há uma semana se fala naquela casa em serviço social, e agora volta tudo ao zero? Ele sustenta a colher no nada, parece até esquecido de comer. A menina andou conversando com a prima, sobrinha da mulher, filha da cunhada, a própria mulher conta, e ele entende agora a escolha empacada. E, finalmente, toma-lhe bolo de batata no prato. É aquela história de novo de fazer Direito, de ser advogada. Advogado tem muito mais chance de arrumar trabalho, há muito mais campo e opções, o Direito é uma carreira que prepara muito mais a pessoa para o serviço público do que qualquer outra, e a filha disse que a prima disse que a tia disse. A cunhada outra vez com aquela história, e ele olha para a mulher, que joga a culpa na sobrinha, já que a irmã nem conversou com a caçula deles, sobrinha dela, cunhada, eximida dessa maneira, ali, naquela conversa à mesa do almoço, da tentativa de querer decidir o destino da filha dos outros. A cunhada é advogada, claro, uma das mais procuradas da cidade, fatura uma nota alta com o escritório, tem vida farta que chega ao luxo, então acha que ser advogada é a única forma de pagar as contas e pôr comida na mesa. A filha dela, sobrinha da mulher, prima da filha, faz direito porque esse discurso amordaçou, estrangulou, jogou no rio, amarrado às pedras, o sonho de estudar belas artes. E essa conversa não era novidade ali naquela casa. A cunhada veio com a mesma história anos antes, no vestibular das duas mais velhas, mas ele peitou aquela lógica e as duas se encaminharam do jeito que quiseram, uma, em relações internacionais; a outra, em desenho industrial. A história se repete, como encheção de saco. Família era uma bela invenção, pena que vinham umas peças com defeito.

A tia disse que serviço social não dá futuro, não dá dinheiro, que é vida de cuidar de pobre, de mendigo, de criança violentada, e a filha finalmente ergue os olhos para ele, mas logo os volta para o nada. Então será que o mundo não precisa de quem cuide dos pobres? A cunhada por acaso cuida dos pobres? Apenas dos pobres milionários sonegadores do fisco. A filha possuía a mesma expressão de quando era criança. Na verdade, a mesma desde quando ele a viu pela primeira vez, 20 minutos depois de nascida. A mesma, apesar dos olhos aflitos, do rosto contrito, carregado pela indefinição. Era desse jeito que o sistema deixava uma jovem que aos 18 anos precisa decidir o que quer fazer da vida, e sem o direito de errar. E os adultos, achando que ajudam muito, cuidam de levar para os jovens seus próprios medos: de não conseguir comprar casa, de não poder pagar colégio bom para os filhos, de não conseguir se aposentar bem. Essas crianças nem bem começaram e já querem que pensem em quando vão parar – ele cruza os talheres, foi-se o bolo de batata -, como se houvesse a certeza de que nesse país haverá ainda Previdência Social daqui a 50 anos. A filha deveria ocupar aquela cuca ainda fresca pela idade se preocupando de no futuro trabalhar em algo que realmente goste, algo que lhe dê prazer e alegria em sair todos os dias de casa para trabalhar. Ele conta que a gente passa um terço do dia, e por tabela, da vida, no trabalho, e pergunta se ela tem ideia do que é perder todo esse tempo fazendo uma coisa que não gosta, com o objetivo único de pagar conta e pôr comida na mesa. Não, ela não sabe, embora nada tenha respondido ao manter olhos, rosto, silêncio e apreensão em alguma migalha perdida na mesa. Então ele, o pai, que há muito não tem a cuca fresca, mas admite que não sabe tanto assim da vida, insiste e pergunta e agora quer saber se a pequena – não, ela não é mais pequena, já tem 18 – se enxerga estudando lei disso, lei daquilo, entrando nos tribunais, ficando nas barras de um juiz, escrevendo petição. Silêncio de talheres e mastigação da esposa, que olha para a filha querendo ver aonde aquilo vai dar, o que ela vai dizer. Muda, a moça parece transparecer que elabora uma resposta, ou que já tem uma resposta, ou que todos ali sabem a resposta. Para que então insistir que ela diga? Mas o pai insiste no que a filha se imagina fazendo e que traga o prazer de todos os dias acordar cedo e ir para a faculdade e, alguns anos depois, para o trabalho. A garota bufa, afasta o prato que mal tocou, diz que saco que encheção que chatura e que é serviço social, mas, logo em seguida, se volta finalmente para o pai e, o inquirindo, quer saber o que fará na hipótese de viver sempre na pindaíba, à mercê de juros de cheque especial e cartão. O pai sorri, rebate o tom de inquérito, por acaso ela acha que ficará rica fazendo o que não gosta? Mas a angústia da menina vai além, quer saber o que faz se na metade do curso perceber que não é o que ela quer, que se enganou. E ergue os mesmos olhos lindos do primeiro instante em que o pai a viu, lindos apesar de aflitos agora. Ó, céus! Que angústia é ser jovem, o pai havia se esquecido, há muito já não era. Mudança, recomeço, caminho novo, nova escolha, ele tenta explicar como ela deve fazer em caso de engano, como se realmente fosse fácil assim, como se as escolhas erradas não povoassem bem mais a vida do que as corretas. É muito mais difícil errar escolhendo o que acha que gosta do que escolhendo aquilo que se tem quase certeza de que não irá tolerar, e ele se sai com esta pela tangente.

A filha parece mais calma, o pai raspa do prato um resto de massa de batata, e isso acompanha a pausa na conversa. Ele pensa no que dizer para continuar, para tentar convencê-la de vez. A mãe se levanta e a caminho da cozinha pergunta se o marido quer um nespresso. Ele aceita com o sinal do polegar, e como já arranjou mais argumento para o assunto, pergunta à filha se ela sabe que nessa vida a gente precisa dar um jeito de fazer alguma diferença, um modo de operar o tempo em que estivermos por aqui para que ele valha a pena, que seja proveitoso não apenas para nós, mas para a sociedade. E essa diferença nem precisa ser heroísmo digno de manchete de jornal, ele assegura, é só fazer bem feito o que se escolheu fazer na vida, mas será difícil fazer essa tal diferença se for algo que não se gosta de ser. Calada e sem gestos outra vez, o silêncio da moça e sua imobilidade não chegam a ser assentimento, mas digestão, e não do almoço, mas do que o pai dizia. A esposa volta da cozinha, chama de idealismo o discurso do marido, e o ar da sala se encorpa de aroma de café. Em alguma época da vida talvez ela tenha tido admiração por essas ideias; hoje, é no mínimo neutro o que acha, o que pensa disso que escuta. Ele discorda, não classifica como idealismo, é apenas o que pensa, o que aprendeu, o que viveu. Então, como pai, acredita que é dever passá-lo para a filha, e nesse aspecto chega a dar razão à cunhada, ela faz o mesmo, ensina o que acha que é certo. Claro, ele despreza o conteúdo, mas o movimento da outra é irmão daquele que ele faz agora, que fez com as outras duas filhas. Sua obrigação é falar – para isso servem os pais, além de pagar mensalidades – e a caçula que se entenda mais tarde com sua própria vida.

O café se foi, era um expresso curto, pequeno para o assunto que continua, e o pai conta de uma certa vez, as três eram pequenas. O jornal encomendou uma matéria especial para o caderno de fim de semana sobre doentes terminais. A filha já de pé empilha a louça na pia, a esposa tira o resto da mesa e ele chega à cozinha para lavar os pratos, os talheres, as vasilhas, sua tarefa de todos os dias. E com a torneira aberta pergunta se a filha imagina o que as enfermeiras que ele entrevistou contaram sobre os últimos momentos de dezenas de moribundos de quem assistiram ao último suspiro. Óbvio, a menina não faz ideia, está na idade em que sequer se pensa que a morte existe. Pois as enfermeiras contaram que a maioria daqueles miseráveis confessou que se arrependia de não ter vivido do modo que quis viver, de não ter feito o que o coração em algum dia mandou fazer naquela vida que finalmente descia pelo ralo do desconhecido. Deixaram os outros escolherem por elas, e no apagar das luzes só sobrara arrependimento. A moça não diz nada, mas era impossível que não pense no que acaba de escutar, afinal, uma história daquelas… então deixaria que a tia, via prima, decidisse por ela? em nome da imbecil racionalidade pragmática arriscaria ser uma pessoa arrependida no último instante da vida? Não precisa também ameaçar a menina, meu Deus, e a voz da esposa vem lá do rumo dos quartos. Pratos, talheres e tigelas brigam por espaço no escorredor de louça. O pai ergue a voz, vira o pescoço na direção do fundo do apartamento. Gente feliz, que faz o que gosta, não reclama de pétala de rosa, de som de piano, choro de criança, passarinho cantando, e ele se sai com essa, rápido como quem fecha a torneira. Enfim, cala-se, parece satisfeito, não esperava encerrar tão bem aquele discurso. Quando olha em volta, a filha, calada, dá as costas também na direção do quarto e o pai não vê sua expressão. Se visse, não teria qualquer certeza de que ela concorda com ele.

2 comentários em “O Piano e a Roseira – Um conto de André Giusti”

  1. Muito bom! Cheguei a sentir a emoção e confusão dos envolvidos! Cheguei a transpirar….
    Felizmente não passei por esse dilema: passar as férias em Paris x sentir perfume de rosas e ver passarinhos, todos os dias. Minha filha nasceu para o que é, sem dúvidas!
    Parabéns

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