Apresentação e seleção de poemas por Carvalho Junior.
Déo Silva [Caxias-MA, 15 de agosto de 1937 — em viagem: Caxias – São Luís, 27 de setembro de 1983]. Nome literário do poeta e jornalista brasileiro Raymundo Nonato da Silva. Esteve ligado ao movimento da experiência concretista no Maranhão ao lado de nomes como Ferreira Gullar, Nauro Machado, Bandeira Tribuzi e José Chagas, tendo participado da I Mostra de Arte Concreta, no Ceará, na década de 70. Funcionário do Banco do Brasil, peregrinou pelo país, tendo deixado poemas publicados em vários jornais desses lugares. Em Manaus, esteve vinculado ao Clube da Madrugada, grupo que congregava escritores daquela região. Deixou marcas, também, pelos estados do Pará e de São Paulo. O poeta estreou com “Ângulo noturno” (Edições Jaguarema, 1959), livro de alta poesia com certo vínculo ao movimento neoconcreto, mas que logo Déo alça voos livres de qualquer enquadramento de escola literária. Segue publicando em jornais e cadernos literários até a publicação de “Equação do verbo” (SIOGE, 1980). Acredita-se que o hiato entre a publicação de um livro e outro tenha relação com o nível de exigentismo de Déo na manipulação do verso. Afirmava o poeta: “A palavra, em verdade, é funda em si mesma. Raso, contudo, é o nosso poder de entendê-la.”. Trabalhos inéditos e outros materiais do poeta se perderam em meio às mudanças de casa. Nos quarenta e seis anos de existência física, Déo foi a revelação de um grande espírito humano e artista.
REVELAÇÃO
(trecho)
I.
Dentro do poema estou.
Não sob formas tênues e
claras. Não como uma frustração impronunciável
que o tempo dissolve no ar, ou como
uma paisagem fácil, que degrada os espelhos.
Não apenas cheio de vivências íntegras
e com a palavra inútil em sua lógica.
Mas, oculto e denso,
na mutação que sou de mim mesmo.
AS FLORES ESPÚRIAS
As flores espúrias
crescidas apenas
em sua inércia
no jarro ficaram
Que tempo lhes mede
o caminho
se o caminho das flores
como o de nenhum peixe
é estar?
A morte lhes penetra as
pétalas de náusea
ou as envolve
na manhã do intacto?
As flores
sem o verbo a decompor-se
são o medo ou a inibição de ir
para dentro de si mesmas
As flores espúrias
em cujo exercício me nego
O MURO
O naufrágio do muro é o vermos como tal. O muro, antes que se o edifique (e o muro há de ficar sem muro) já o é. O relevo do muro é ignorar-se, e seu desastre é estar com o ar que lhe degrada o puro. O puro puro. O vocábulo corrompe o muro. O muro que ficou no mundo exigindo uma flauta.
ÁRVORE
A árvore paradoxal
na sala
chora fogo e neve
Ventos de terras esquecidas
não a sopram
porque
em dezembro
as janelas não se abrem para
o abismo
A árvore paradoxal
só constringe
o menino sem estátua
sem rio
sem fruto
Mas extasia o mundo.
PEDRA
A pedra
sofre-se no tempo
sob o impacto de si mesma.
E recria o som,
a sombra,
o sono,
o sal.
A pedra,
imóvel no espaço,
não gera o pó ingênuo.
Trabalha a fome
e o mito.
A pedra
medra a pedra.
E fulge-se,
e sente-se.
PERSPECTIVA DE UM EXERCÍCIO
Eis o de quanto, agora, preciso,
para meu encanto:
abrir a palavra
até descobrir-lhe
o núcleo fundamental
e, depois,
semeá-la numa terra sem memória
de que flores verbais
se abrirão, um dia,
a desprender
o olor
de uma estranha primavera.
Abrir a palavra
que ficou longe,
em seu misterioso concreto
e desvendar,
no imo tônico do verbo,
a verdade agônica
de um desejo
que seja, sobretudo, eterno.
Abrir a palavra
que eu não tenho agora
e de que a alma se nutre
para o ânimo da fantasia.
Abrir, enfim, a palavra
de que nasce
o fruto humano de cada dia,
para o fenômeno
só
da poesia.
DO PÁSSARO EM QUE VOO
O meu pássaro de prata
se deslumbra, com a intacta
existência do seu fim.
Não finge o voo. Só o intenta,
quando a esfinge, que o sustenta,
se abre em volta de mim.
O meu pássaro de prata
da essência não se aparta
que o move em minha mão.
No entanto, fosse possível,
para torná-lo sensível,
dar-lhe o canto. O voo, não.
LADO INÚTIL
Tua infância é muita,
para o que envelhece,
dentro do absurdo
que me torce e tece.
Tua infância é pouca,
para o que me cabe.
(E que a vida seja
o que, em mim, não sabe).
ESTÁGIO
O enriquecimento do ódio
e o nojo oculto, ainda, na fala.
O corpo, em densa discórdia,
e o caminho sem espaço.
O odor de sonho, entre as plantas,
e o chão, sem o ânimo do sol.
O erro acasalado na mente
e o escárnio preso à alma.
O silêncio dos últimos pecados
e a chuva para a semente inútil.
E, enfim, o despejo do que, na lida,
não foi mistério, nem nada.
TESTAMENTO
Deixo-te o verbo
que afugenta o Homem
das imprecações
que, em si, o consomem.
Deixo-te o amor,
amplo e concreto,
junto à sesmaria
do teu desafeto.
Deixo-te, em segredo,
no sol que expirou,
a última bênção
que herdei do que sou.
Deixo-te um tesouro
de súpera importância:
minh’alma fracionada
pela tua infâmia.
Deixo-te a memória
do quanto perdi,
no sexo convulso
a que me rendi.
Deixo-te o inverno
que nutre meus passos
e a alegoria
dos meus planos lassos.
Deixo-te, no ser,
o tudo que é teu
e o todo, que é nada,
do muito que é meu.
Deixo-te, em letras,
meu jeito de vida:
um excesso na mente
e um esbarro na ida.
Deixo-te, enfim,
minha sorte vã
e a luz que escondi
no meu amanhã.
ENSAIO SOBRE A PORTA
Perto da porta está o abismo.
A porta – exausta do caos que a fecha – dá-se em desespero
e seu imaturo silêncio cresce nas muralhas.
A porta, sem a ruína que a espera e a espreita, é o flagelo de
quem a abre.
A porta é o começo real de tudo quanto fica, pois sua viagem
válida é inventar caminhos para o Homem.
Se amadureço no verbo, (onde aporto) descubro, na porta, mais
do que uma porta: um porto. Porto donde parto para o acontecimento,
aquele em que sou a volta de um longo desperdício.
A porta, fora da lógica e do que a torna plena e plana, é a origem
da solidão que a move, fechando-a.
A porta existindo indefinidamente está e razão é que a observemos.
* Links para downloads dos livros de DÉO SILVA digitalizados pelo prof. Carvalho Junior:
1. https://www.4shared.com/office/jGufca9Xca/NGULO_NOTURNO_1959_DO_SILVA.html
2. https://www.4shared.com/office/zO8wJ0W5ei/EQUAO_DO_VERBO_Do_Silva__1980.html