2 Poemas de Flávio Morgado

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Flávio Morgado (Rio de Janeiro, 1989) é autor de “um caderno de capa verde” (7Letras/2012), “uma nesga de sol a mais” (7Letras/2016) e “preciso” (7Letras/2019).


o homem com uma flor amarela
ao poeta Carlos Drummond de Andrade

o mundo respira.
na página em branco.
na rua vazia.

a noite recolhe em silêncio
a sua vida sensível.
os bichos noturnos se orientam
ao negro do sol da solidão.
os tempos resguardam Dioniso,
o abraço não se completa ao miasma
a profecia não será ouvida.

padres protegem a velhice,
curandeiros recolhem a magia:
o mundo é vulnerável
em sua face desnuda.
porque o homem dita os humores
da vida que, por si só, caminharia
viúva sem o delírio do verso.

o homem aposta no que inventa
e move a multidão de fantasmas,
põe-se à prova desse gesto justo
e convoca a avenida na hora inoportuna
como o frêmito de uma formiga
que atravessa o papel.
este homem com uma flor amarela,
sozinho, é pai de uma legião lírica.

e da janela gritamos: Vai!
não há motivo ou metafísica
e a obstinação desse rito injustificável
acende a mediocridade
da nossa vida em ordem.
o homem caminha porque tem pernas,
tem uma flor porque há mãos para colhê-las,
parece ofertar porque há outros.

com sua flor amarela,
para onde vai?
Orfeu à cata das mênades,
o mito te desistiu?
quem ousa avançar o sinal do sistema?
qual homem
perturba a ilusão dos médios
nessa convicção sem traumas
que ainda permite colher flores?

que amor frustrado,
que ausência de pares,
que complexo de édipo,
que abuso patronal
não demove este homem?

como se cadastra essa pessoa física
que a quem comove assume o nome?
quem detém esse corpo coletivo?

americanos enviam tropas:
os projéteis são inúteis.
cidadãos conformados caluniam:
mas a flor amarela o ensurdece.
gurus lhe dão altares:
mas o homem é humilde.

a quem deita sua cabeça?
qual a recompensa?

o homem com aquela flor amarela
ergue a rua como uma lua nova.
não a oferta a ninguém,
repõe a primavera de todos.

se a vida segue cínica,
ainda que sejamos íntimos,
é porque este homem se soletra nos sonhos,
contra a rota dos signos
e a favor de nós.
sua bússola está em paz com o tempo
e ele nos perdoa essa marcha fúnebre.

precisamos voltar a dormir.

amanhã ele nos volta
e talvez ainda recolha
nossa ignorância. nossa rosa do povo.


elefantes ritualizam a rota

Sempre chegamos ao sítio
aonde nos esperam
José Saramago

atalho circular
oásis de caráter dúbio
chega assim a tua memória:
como a lua
de um lobo ressentido.

a estrada decompõe os fenômenos
a novidade expurga
nossa noite unânime:
existe o trajeto do desencontro no instinto.

não é de boa-sorte
decorar ruínas e rasgar
as cartas dá a elas sobrevida.
(lembrar é ferido. esquecer é solar)

repõe a vida esse acúmulo
de trilha e tralha emocional que
indeléveis, todos os nossos sentidos
suportam o peso nos ombros.

a baleia registra o cosmo
paquidermes reconhecem o aroma
e o indivíduo é uma caravana de fantasmas.

os mamíferos são complexos ao chorar.
– só os grandes animais se apaixonam.


(Alto Paraíso, Chapada dos Veadeiros, Goiás, dia 18 de julho de 2019)

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