3 Poemas de Maíra Vasconcelos

| |

A plaquete “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Ofícios Terrestres, 2021) é a segunda publicação de poemas de Maíra Vasconcelos. “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) é seu primeiro livro. Também prefaciou e organizou a antologia poética e de artes visuais “Quem dera o sangue fosse só o da menstruação”, volume I (Urutau, 2019). Jornalista, de Belo Horizonte, Maíra mora em Buenos Aires e é mestranda em Estudos Literários pela Faculdade de Filosofia e Letras da UBA.

Foto da poeta por Alexandra Vilas Boas.



***
À noite com a lâmpada acesa
Piglia escreve em seus diários
dá nome à terceira pessoa
– essa presença entre nós e nós mesmos –
enquanto lá fora demora
a luz de inverno
em 1953
antes de se mudar a Mar del Plata
escreve poemas em seus cadernos
quer dizer
antes do nascimento oficial dos diários
já existia um diário

enquanto lá fora demora
a luz de inverno
nessa manhã seca e branca
releio anotações de minhas leituras

e continua a lâmpada acesa
neste quarto a leitura
passa embaixo dos meus olhos
como também o poema
pode ser talvez o lugar
para caber os diários
mal lidos por mim certamente
pois ditos em poesia
essa linguagem guarda
não a forma de um diário
aqui sem data mês ou ano
mas apenas o significado e a sombra
e as duas coisas podem ser tão parecidas
significar e sombrear
o esquecido eu e depois recolher
seus fragmentos
nas anotações de cada leitura
para terminar este poema
tentar uma casa possível
onde possa guardar a palavra diário
e escrever sobre os diários
e não exatamente entender os diários
– e a terceira pessoa –
enquanto lá fora demora
a luz de inverno.


***
Era inverno na Rússia
e mesmo sem poder conter esse frio
o poema agora deve acontecer

2 de dezembro de 1921
em Moscou
Marina escreve em seus diários
alguns anos antes sua filha Irina
se ausentara pela fome
e cada vez mais sua única alegria
é a poesia
que deve transparecer
também nas linhas deste poema
e não o frio da Rússia
mas o abrigo da poeta
a sua fé no ofício da palavra

dizia:
nessa hora sou feliz, segura de mim
como se tivesse aqueles enormes casacos
que aparecem nos filmes de guerra

mas agora enquanto escrevo
não estou tão segura sobre o frio
se aqui ao Sul é diferente
devo me transportar ao seu abrigo
e escrever com alegria
o que li em seus diários
quando poetas foram resumidos
em: uma estrutura da alma
e o quente da sua alma
talvez o encontre na próxima página
a leitura dos seus diários ajuda
nessa busca a imaginação branca e seca
cede como se dissolvesse um bloco de gelo
onde vejo toda a água embaixo
pronta para o mergulho
e no mergulho o encontro
deste poema em suas águas
a poesia cheia de fôlego
sem freio ao crescente da vida
fria de beleza intacta.

*Marina Efron, nascida Tsvetáieva (1892-1941)



***
Publicado postumamente
em 1981
após sua leitura
fui tomada por atitudes simpáticas
abri as janelas no inverno
indecisa em animais e plantas
vesti outra em mim mesma
primeiro
respirei ar de labradora matinal
depois
como bicho-da-seda em ciclos
varri bruma dos olhos
como se insetos em ciclos
tivessem relação com o olhar
diante da vida
após a leitura desse livro
esclareci a relação corpo e leitura
verifiquei:
ao ler os olhos se mexem mais
do que todo o resto no corpo
isso é inquietante
a redução do movimento ao mínimo
e outros movimentos no invisível
como em animais e plantas
após a leitura
instiguei o vizinho e seu cachorro
a fazerem o mesmo com suas vidas
quer dizer pisar o mundo alegremente
o cachorro é assim mas você
disse ao meu vizinho
você deve alegrar-se melhor
antes que a crise econômica fale por nós
e isso não preciso dizer ao seu cachorro
é urgente
estar um pouco mais como bárbaros
ser menos civilizado
como ler um livro póstumo
tentar olfato de animal
e paciência de sericultor
para fertilizar
ciclos na primavera.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!