Pacha Ana é MC, cantora, compositora e poetisa mato-grossense, nascida em Rondonópolis, com morada em Cuiabá-MT. Seu nome artístico (Pacha) é derivado do Quechua, a língua antiga dos povos Incas e Pré Incas que significa “mundo” ou “universo”.
Pacha tem uma grande atuação no segmento da poesia, é tricampeã do slam estadual mato-grossense, foi semifinalista na Copa Brasileira de Poesia – SlamBR em 2017 e finalista em 2018. Atualmente em turnê pelo Sesc no projeto “A Arte da Palavra”, viajando por 7 estados e 14 cidades brasileiras, com o espetáculo “Faces: A Poesia Negra Em Mim, Em Nós”.
Em suas letras, ela aborda o empoderamento da mulher, do povo preto, a espiritualidade no Axé e suas vivências diárias. Em 2017 foi contemplada com o edital da Secretaria de Cultura de Cuiabá que viabilizou seu primeiro disco “Omo Oyá”, lançado em setembro de 2018.
África
Outro dia eu perguntei a meu Babalorixá:
Babá, o senhor conhece a África???
Ele riu bem baixinho, olhou nos meus olhos e respondeu:
– A África ta dentro de mim, Ekedy, dentro de minha casa.
Logo eu entendi que ele sabe mais da África do que os livros. Sabe mais que isso, e o por que eu lhe digo:
Porque dentro dele a África é um continente vivo.
Por que África corre nas veias e pulsa no coração
É sangue bombeado, ar respirado que chega puro no pulmão
Sabe porque África não lhe foi escolha, mas tampouco obrigação
Porque pra nós nunca foi uma opção.
Sabe, porque em nós África é tão ancestral que não se sabe mais onde começa ou onde termina
É tipo nascente onde a água mina
É o reconhecimento no olhar de cada criança, menino, menina
É o renascimento de um povo do outro lado do mundo, que crê na esperança, mesmo em diáspora
Mesmo em terra tão áspera
Vi que ele sabe porque África em nós é mais que só “construir”, é desconstrução
É fundamento guardado, secreto
Porque África é nosso povo feliz, as vezes até sem teto
Porque é Yorubá, nosso sagrado dialeto
Porque mesmo distante, África de nós ta tão perto
Sabe, porque até a água do mar é salgada por causa das lagrimas do nosso povo
Que escravizados há milhares de anos, aos poucos, hoje conquistam sua liberdade de novo
E devagarzinho se enxergam como reis e rainhas que nunca deixaram de ser
Não é vergonha pra nosso povo!
Repito!
Não é vergonhoso pra nós
Nem pra você, nem pra mim…
Vergonhoso é pra vocês, que com 500 anos de escravidão não aprenderam porra nenhuma e ainda seguem assim…
Vergonhoso é um navio negreiro inteiro navegar todo oceano pra uma vida de servidão
Vergonhoso é vocês negarem todo um passado de realeza pra servir um povo que se acha superior
Não é vergonhoso pra nós, é doloroso!!!!!
Ainda bem que a África ta na gente
Tão entranhado, mas tão entranhado, que nenhum branco pode tirar
Ainda bem que África ta nessa conversa, entre Ekedy e Babalorixá….
Marielle
Hoje eu recebi uma notícia tão comum mas que dói tanto
Mais uma mulher preta assassinada
Mais uma família aos prantos
Quando a gente vai parar e olhar pros corpos das nossas sem sentir essas dores?
Quando nosso destino deixará de ser flores… em funerais?
Quantas de nós mais?
O mundo não para pra gente chorar nossa dor,
Não para nós, as que somos de cor
O mundo não nos trata com amor
Os níveis de violência são desiguais entre as preta e as demais
Vejo a maioria protestando só pelos próprios ideais
Infelizmente não somos imortais… E todo dia mais uma de nós se vai
Eu me pergunto: até quando?
Fora dos cargos nos querem,
nos preterem,
diferem,
Nos ferem!!!
E por fim, nos matam
Há muito tempo que nos caçam!!!
Nossos corpos eles abatem
A nossa carne nem vou chamar de mais barata do mercado,
pra eles, ela nem tem valor
E eu ponho na conta de quem essa dor?
Seja pelo estado, pela polícia, pelo marido, tudo é obra do patriarcado,
essas mortes nunca saem fiado,
Isso tem dedo de alguém!!!!!
Enquanto uma de nós não for livre, somos todas reféns!
Marielle Franco, presente!
Meu amor preto
Meu amor preto não é padrão; não é o que mostra na televisão, mas pra mim isso não é nenhuma decepção.
O que eu gosto mais ele faz de improviso, solta os mais lindos sorrisos e várias vezes me faz sentir no paraíso… sabe porque?
Porque perto dele eu não sinto vergonha do meu cabelo, porque os nossos tem textura parecida.
Perto dele eu não penso em chapinha, progressiva, ele não quer me ver lisa
Eu posso ser como sou.
Isso porque meu amor preto tem cabelo crespo igual o meu.
Meu amor preto não me faz sentir insegurança sobre meus traços, porque quando eu to nos seus braços ele elogia justamente essas coisas.
Ele não inferioriza meu nariz, nem eu a sua boca, porque a gente vê beleza nas raízes que temos.
Inclusive, a sua boca me deixa louca, quando eu penso em cada pedacinho que tem o beijo mais gostoso.
Acho que posso dizer que nosso beijo é preto também.
Meu amor preto e eu passamos várias fitas iguais.
A gente debate sobre o preterimento e hipersexualização, racismo e falta de atenção, a gente fala de coisas que só um amor preto pode falar. E nenhum diz pro outro que são coisas superficiais.
Meu amor preto traz feridas da vida, e eu deveria ser muito insensível se as minimizasse.
Isso porque eu tenho feridas parecidas, várias pessoas envolvidas e minha cabeça ainda é confusa. Graças aos céus ele entende, compreende e por várias vezes me surpreende quando esquece suas lamentações pra ouvir as minhas.
Eu percebo que mereço quando aceito que ele é meu afrocentro
Quando recebo o que ele trás de dentro.
Meu corpo com o dele é uma mistura de melanina e suor e quando nossas peles se encostam, parece que a alma também se toca, e os sons são várias notas de ruídos que o corpo faz, no meio de uma sensação de prazer e paz.
Meu amor preto é tipo um pedaço de Afrika nessa imensidão do embranquecimento.
Pro coração é alimento, sustento, tormento e saudade também, muita saudade.
Em meio a tantos brancos da mente, o que eu não esqueço é que ele é preto igual a mim.
E quando eu percebo que somos dois pretos que se enxergam; se amam e se reconhecem, eu vejo que o sistema falhou em relação a nós.
Se o plano era nos aniquilar, sinto muito, invertemos, amor é o que temos
E é amor de preto.