Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rey – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019).
O SUSTO DE ISAQUE
Este pai cujo filho pergunta:
Papai, se as brasas e a lenha estão aqui,
Onde está o cordeiro?
Este filho, sabe-se, não é uma criança
Mas ainda assim sobe com a brasa
Ainda assim a lenha nos ombros
Este pai cuja esposa, sua meia-irmã
Chora, pois pressente, como se um demônio
Sussurrasse: seu filho corre perigo
Este filho obediente o bastante para abandonar
Sua mãe, sem compreender suas lágrimas
Para subir a montanha, no silêncio do pai
Este pai cuidadoso para não revelar o seu plano
Para não estragar a oferenda ao Senhor
Que ensina a preferir um filho morto
Este filho que aprendeu a não ousar
Adestrado cotidianamente para aceitar
Qualquer ato da autoridade do pai
Este pai que já se vê voltando sem o filho
Este filho que poderia ter sido um milagre
Mas que se deixa amarrar, mesmo tendo forças
Este pai que deita o filho sobre a pedra
Este filho que ainda procura o amor do pai
Este pai que só ama o Senhor das Promessas
Este filho que volta a ser criança
E se assusta.
A METÁFORA DE AGAR
Tudo são metáforas, Agar
Menos a servidão e o fato de possuir um útero
Antes ainda, mulher, ser um
Vaso onde jogar sementes com a graça de deus
É metáfora. Viver longe das gentes suas, egípcia
Entre as propriedades desta mulher que não pode rir
Pois parece estéril havendo um senhor sobre ela
Mas que tem uma serva
É você, Agar, a serva oferecida nesta noite
Em que este homem a possui no breu que se prolonga
Enquanto a mulher que não pode rir chora
E você tenta limpar o que lhe escorre entre as pernas
Ah, tudo são metáforas, querida Agar
Até este colo que ofereço para diminuir a sua dor
Eu que só tenho palavras enquanto sua barriga cresce
E você foge daquele homem e da mulher que não pode rir
Uma fuga pelo deserto, mas qual deserto agora, Agar?
Finalmente você encontra uma fonte de água
Porém, o deus que tudo vê não lhe dá descanso
E no seu encalço há um batalhão de anjos treinados
Em busca, recuperação de servas, restituição de filhos
E você nem pra se sentir lisonjeada
Tudo metáfora, você volta escoltada e em silêncio
E frente a frente: você e a mulher que não pode rir
Quatorze anos, vocês em vão, olhando para o menino
Tentando conviver sem se lembrar do breu daquela noite
Que habitou em Sara, que habitou em você, mesmo depois
Que recebeu do homem parca pensão alimentícia:
Pão, um odre de água e um deserto. Tudo são metáforas
Mas onde é que encaixamos o estupro?
O IRMÃOZINHO DE MIRIÃ
Miriã sabe que o irmão será abandonado no rio
A mãe não pode mais criá-lo, que desnaturada
Ninguém pergunta pelo pai
Ele segue no cesto, velejante
Na inocência de menino que jamais
Miriã vai poder prever o futuro
Por enquanto é só uma irmãzinha correndo aos soluços
Tentando alcançar a margem para protegê-lo
Para jamais perdê-lo
Por enquanto é sem deus
Por enquanto
É só uma história de amor.
O CORAÇÃO DE ZÍPORA
É triste que o rio em que as crianças se banhavam
Tenha se transformado neste sangue cru e infecto
Zípora ainda tenta ir para a cozinha
Produzir alegrias enquanto vida há
Mas pululam as rãs nas massas
As moscas invadem em torno
Zípora chora os vizinhos
Assolados por piolhos
Uma vizinha desconsola:
Os rebanhos estão mortos
As mulheres relatam
As úlceras nos meninos
Uma chuva de pedra
Rompe os telhados
Nem Hórus poderá conter
Lavoura perdida – os gafanhotos
Javé envia trevas:
A guerra é um mundo de homens
Zípora chora os seus
De povo não escolhido
Agora os primogênitos morrem
Um a um, nas casas do Egito
Moisés vai abrir o Mar Vermelho
Mas não vai afogar a dor de Zípora.
Adorei as poesias, elas correm cristalinas pelos rios ácidos.