4 Poemas de Wesley Correia

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Wesley Correia nasceu em 21 de Outubro de 1980, em Cruz das Almas, Bahia, e aos dezessete anos publicou seu primeiro conto no Jornal A Tarde. Desde então, tem-se dedicado à escrita de textos literários, publicados em livros e jornais especializados, dentro e fora do país. É autor de “Pausa para um beijo e outros poemas” (Ed. Nova Civilização, 2006), “Deus é negro” (Ed. Pinaúna, 2013), “Íntimo Vesúvio” (Ed. Pinaúna, 2017) e “laboratório de incertezas” (Ed. Malê, 2020). Atualmente, é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde ministra aulas na Pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais, e outros cursos. Seus poemas foram traduzidos para o inglês, espanhol e romeno.


Corpo Morto de Meu Pai

sobre o corpo morto de meu pai,
os lapsos desintegraram
e a consciência se elevou diáfana
na tarde de um domingo sem fim.

tão imorredouro era o corpo sem vida,
tão farto o sangue na carne insepulta,
que nem o fluxo do soro estancava
no íntimo das veias jazidas
nem a bexiga morta deixava de mijar.

tão esfuziante era o corpo morto
na rubra intimidade a apodrecer,
que as paixões mais assombrosas
do mundo desejaram nele se abrigar:

suplantado o indefinível hiato político,
o preço do gás,
o vigor dos verbos guardados,
o ranger das portas,
o cão mudo com fome,
as provas de amor,

superados a lágrima e o riso,
o presságio,
o sintoma de beleza distante,
e o “como vai?”
a fulgurar na manhã vulgar.

somente a humanidade incauta
que exalou do corpo morto de meu pai
é o que é para sempre.

“Corpo morto de meu pai”, por Clarissa Macedo

Duplo

Por menos que conte a história,
não te esqueço meu povo.
Se Palmares não vive mais,
faremos Palmares de novo.
Jose Carlos Limeira

Meu corpo filtrava desesperos e alegria,
se insurgia no coração das horas livres.
Meu corpo evadido ia resultando
de coragens múltiplas,
de ternuras errantes, e eu te invocava
sob o afeto das paixões conjugadas.

Solto, grávido de tanto horizonte,
meu corpo vibrava em vermelho,
fazendo a roda dançar no ritmo primordial.
Dispunha o fértil ouvido à palavra fecunda
e, combatente, eu te invocava no fio da navalha.

Me embrenhava por matas noturnas,
abrigava tua luz em minha boca,
lambia o segredo puro dos céus
e sentia escorrer o signo libertário,
motor da existência.
Ia te pedindo a bênção enquanto
agradecia por tantas inconsciências,
mergulhava fundo, abocanhava doze búzios,
me adivinhava na forma viva da força.

Assim, despachado, sentia os ossos tornarem aço,
a pele do corpo, descolando-se da carne, virar rocha,
e a gordura, que havia no íntimo,
verter a lava do vulcão.
Enquanto toda Memória se espelhava
e eu me integrava ao sonho,
via se compor esse meu duplo
num encantado monumento de linguagem.

“Duplo”, por Livia Natalia

Questão de Vala

resiste à pólvora odiosa
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo,
suspenso em flor.

resiste a espumosas rotas de sangue
inscritas em mares de horror,
resiste à vida abreviada,
esquecida entre as histórias
de tantas vidas preteridas.

seja, enfim, questão de vala:
                                     quanto fala
                                                 a bala
                                 que nos cala?

não pode conter o chumbo certeiro
o corpo abnegado de Marielle,
não pode conter os projéteis
que se desviam dos prédios da zona sul,
que se afastam dos carros de luxo,
que contornam os bem nascidos,
e vão alijar uma outra existência
já tão relegada à negação,
já tão calejada de nãos.

seja, enfim, questão de vala:
                                     quanto fala
                                                 a bala
                                 que nos cala?

se assim vive, embora varado,
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo,
suspenso em flor,
é porque aprendeu a enganar o fim,
tendo de suportar a dor mais doída
e se alimentar de si nos dias de fome,
teve de tatuar o etéreo nome
na carne viva da memória
a que nenhum fuzil pode matar.

seja, enfim, questão de vala:
                                      quanto fala
                                                  a bala
                                 que nos cala?

 

“Questão de vala”, por Rita Santana

Minhas Filhas

Quando a dor chegar,
navalha em histeria,
saibam, minhas filhas,
todo corte há de fechar
como a noite se fecha
em face do novo dia.

Minhas filhas, fantasmas
nascerão da vossa ilusão,
mas não se atemorizem.
Deixem que se abriguem
na luz de vossas fantasias,
posto que sentem medo
e já não podem com o ermo
de tantas vidas vazias.

Minhas filhas, paciência,
que um fruto para maturar
tem seu tempo e cadência,
e se acontecer de mirrar
terá sido na exata frequência.

Minhas filhas, atenção:
não cedam à tentação
de querer resolver os
problemas do mundo.
Antes, tentem resolver
os seus, o que já exige
um esforço profundo.

Chorem se tiver de chorar,
lutem se tiver de lutar,
gritem se tiver de gritar,
calem se tiver de calar,
avancem se tiver de avançar,
recuem se tiver de recuar,
mas tenham esperanças,
minhas filhas,
virtude maior não há
do que saber esperar.

Vão à praia
num domingo de sol,
minhas filhas,
e sejam felizes.
Mas se não quiserem,
minhas filhas, não vão,
e sejam igualmente felizes
num domingo de sol,
que a praia inteira
estará à vossa disposição,
de verão a verão.

Sejam honestas,
minhas filhas,
paguem as contas,
estejam no trabalho,
rezem às santas…
Mas ainda que atrasem
os pagamentos,
quem faltem ao serviço
ou deixem de suplicar,
nem por isso,
minhas filhas,
fiquem tontas:
às favas, as contas,
aos ares, o trabalho,
às santas, o descanso,
que a máquina do mundo
segue sendo o que é,
como segue expiando a vida
na mais pura profissão de fé.

Fiquem certas de que o amor virá,
fiquem certas de que o amor irá,
e ainda mais certas
de que outro amor chegará.
Se queiram bem,
minhas filhas,
para que vosso bem
quebrante o espírito
de quem não o tem.

Minhas filhas,
não preguem tantas certezas
não guardem tantas dúvidas,
caminhem com leveza,
pois nesse ir e vir,
tudo se conforma no próprio existir,
desde a hora de chegar
até a hora de partir.

“Minhas filhas”, Wesley Correia

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