Mariana Ianelli nasceu em 1979, em São Paulo, onde vive. É autora de dezesseis livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia, e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal literário Rascunho. Site: www.marianaianelli.com.br
PÓS-ESCRITO
Preamar dos ventos
Mirante o mais distante de casa
Desdobrável é a noite
Exausto o desespero
Céu de chumbo
Invisível lua cheia
Impossível sutileza do dilúvio
A noite é mãe de tudo, mãe de tudo
Andorinhas, rosas altas e relâmpagos
Quem os inscreveu aqui foi ninguém –
Antes e depois é a noite
E o coração, um assassino lento.
LEMBRAR FARÁ ARDER A BRASA
Terá sido
O mais sufocante verão
Desde décadas
O inverno mais severo
Pouco importa:
Lembrar fará arder a brasa
E os meandros
Serão desses de fumo
Que mal se desenham no ar
Se desfazem.
A mão pensativa
Não mentirá sobriedade
Dançará
Um nome fulvo sobre o papel
Um céu sem nuvens
Dançará esta mão
Menina insolente
Sem quem lhe veja
As pontas dos dedos
Alcatroadas de solidão.
SOBRE ESCURAS ÁGUAS
Hoje a doença de novo me acomete
Saio à porta
Só para ver a lua
Estou a ponto de encontrar beleza
Em situações as mais impróprias.
Um sonho me subjuga
Em calidez de lamparina de papel
Na madrugada
Boiando sobre escuras águas
Sem chegar a olho algum.
Boiando, dançando, alucinando
E amanhã carrego o rastro do cansaço
De manter silêncio
E sem que alguém perceba
Estou mancando de uma coxa.
VEM QUE TE QUERO MOSTRAR COMO VIVO
Não apenas de caça, tocaia e crueza
Se fazem tigres e lobos
Se pudesses ouvir este segredo
(Este segredo de monge)
Uma mecha de fogo
Ondularia no limiar da verdade.
Não nos perde – me ouves? –
Não nos perde
Um lar promíscuo de feras
E coisas santas.
Moro entre elas, sou como um elo:
Assim minhas noites.
Vem que te quero mostrar como vivo
Enquanto quase todos dormem.
Há tigres e lobos em santuários
E eles comem das nossas mãos.
POR QUÊ?
O vento do deserto esta noite estupra os meus ouvidos.
Se pelo menos me dissessem palavras terríveis
E por elas fosse arremessada para esse mesmo deserto
Eu agradeceria.
Receberia sem desgosto esse vento
Divisaria o caminho lendo estrelas
Como fazem os que perderam o luxo de desistir.
Mas não: me trouxeram até aqui com infinita gentileza.
Franquearam-me o deserto como um presente.
Ontem – ainda quase ao meu alcance –
Uma voz me falava tão docemente.
Por que por que por que não me disseram palavras terríveis?