Mírian Freitas é mineira, escritora, reside em Juiz de Fora, MG (Brasil). Doutora em Literatura Comparada (UFF), lecionou por anos nos EUA, em Massachusetts. Atualmente é professora do IFSUDESTE/JF. Escreveu Intimidade vasculhada (narrativas- 7Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio ilustrado- CRV). Publicou em antologias no Brasil e Portugal (Leiria e Lisboa) e nas revistas CULT, CP Literatura, Palavra Comum, Subversa, Mallarmargens, Acrobata, Ruído Manifesto, Desvario, Arribação, Tamarina, Arara, Diversos Afins e outras.
Os poemas, aqui publicados, são do livro “quando éramos pássaros e outros poemas abissais” (Ed. Penalux, 2021).
O CANTO DA CIGARRA
Eu seria menos se balbuciasse teu nome
nas funduras dos linhos imortais
do poema?
Pudera ter nas mãos os calos de tua volúpia
a nódoa expressa em manto
arruinando os tempos de alegrias.
À procura de flores tenho andado.
São os ventos que me dizem adeus.
Não mais repito quem um dia me matou.
Lanço fúrias no ar após as reticências
de teus ossos.
Pedra, enxofre, muralha.
Corremos o risco fatal de abismar o mundo.
E foi assim que o amor assombrado
faleceu no jugo permanente desta manhã:
− roto em lágrimas
invariáveis abismos
febre nos pulmões
vômito contido na garganta
− é difícil ser onde existimos.
VORAGEM
O pó dos teus ossos estão agora
recolhidos ao pé da árvore do poeta.
O tempo revira o mundo dos mortais
asas, pedras, lajes, gargantas de aço
hálito de nuvens, olhos de areia
distâncias além do humano
rugem atrás das cortinas
à procura de um sopro
de esperança e eternidade
as montanhas escondem a pressa da tarde
em morrer
entre verdes e prados
entre frutos e cordões de pássaros
aqui há vestígios de água e sal
sombras de animais que voam
vultos e o tempero dos amantes
lendas e descobertas
na brandura do peito
se fôssemos feitos de barro
não iríamos amar nem florescer
só testemunhar
as cinzas do corpo a encobrir ternuras
e o líquido do esquecimento.
SENDO QUEM SOU
Sendo quem sou, minha vida de exílios
e renúncias. Terraços e garças,
não é a mais a mesma de anos atrás, agora
tem sido a forma de contemplar lagos
pastos, rostos, colheitas. Paredes
sem ruídos, só arvoredos. Vento brando,
vida no pouso da ave,
tardes que tocam os filtros do ar
− luz e frescor −,
o corpo a céu aberto
sempre de partida
como as nuvens nos tempos de verão
como a criança delirante
de mãos dadas
com o círculo da alegria.
O que seria de mim
se não fosse o amarelo?
Se não fossem os luares e os afetos,
o azul da claridade e os pássaros
das manhãs?
(Seria possível viver?)
Sendo quem sou
a sede de águas, o silêncio nos lábios
da carne
o sol da cor dos jambos,
o destino sem estrada, só constelações
e sementeiras contra os enganos da vida.
A IDADE MADURA/CAMILLE CLAUDEL
Venha após o último trem
passe pelos campos de lavanda
colha flores roxas
e perfumadas
como o inverno no seu regresso tardio.
Beba do líquido que te incendeia o coração,
o anjo da ausência te guiará pelos pátios noturnos
de teu mar mais íntimo, águas de mármore e bronze.
O fôlego da morte resiste ao ver o bosque solar.
O corpo cresceu, enormes são as mãos
a tecer a espera vã nas calçadas ameaçadas
pelos teus cães enlouquecidos.
SOBRE A MORTE E OUTRAS MORTES
A morte vem silenciar as mandíbulas do poema.
Devagar amassa entre os dedos palavra por palavra
despe as retinas feridas do pássaro
fala consigo mesma das águas longínquas, assustadas,
derrete os versos e a vaidade loura do halo poético.
Sábia que é, crava na garganta a síncope de um ritual.
Absurdos de comoção, golfadas de nuvens pela boca
espasmos, ventanias,
a saga da chuva, tempestades
sobre os arbustos, enfim, a morte.
O que esperar do gesto nítido
sozinho, inventado,
reinventado
dessa personagem?
Conjeturas? Vilania?
Desamor?
A palavra não basta para ser morta.
Dedos azuis sobre a folha em branco
passam pela vida, madrugadas, memórias vãs,
arrastam peitos, flores, nudez, mães,
tudo
para dentro das ilhas tateadas pelos cães ocidentais.
As vítimas da morte viajam para libertar o coração
e a mente das vidraças opacas.
Momento de solidão, de um exílio de pedras,
árduos olhos sobre o chão fundo
das ausências.
Nenhum rótulo, nada contradiz o destino inominável.
O poema jaz na terra além dos homens.