6 Poemas de Mírian Freitas

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Mírian Freitas, mineira, reside em Juiz de Fora, doutora em Estudos de literatura (UFF), lecionou em Massachusetts, EUA, por quase 10 anos e atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Autora de Intimidade vasculhada (contos- Editora 7 Letras/Imprimatur), Exílios naufrágios e outras passagens (poesia- Editora Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade- no Prelo- (Ensaio), foi uma das autoras da Antologia Lusófona I (poemas- Folheto Edições&Design, Leiria- Portugal). Organizou a antologia de textos Alento (Finalista do prêmio VivaLeitura), participou com narrativas e entrevistas do livro Mulheres: prosa de ficção no Brasil de 1964 a 2010 (Editora Ibis Libris), participou do livro Entrevista sobre poesia –Gilberto Mendonça Teles (Editora Galo Branco), e também com poemas para as Antologias Patuscada e Hilstianas I (Editora Patuá),contribuiu com texto em prosa para Um certo Rosário (Editora Sempre-Viva); compôs a antologia Poemas no ônibus e no trem (Casa da Cultura-Porto Alegre); menção honrosa pelo poema “Chove em Lisboa”(Casino Lisboa, Portugal). Possui textos espalhados em revistas como CP Literatura (Editora Escala), Revista Cult, blogs e sites de literatura como o Releituras, portal Cronópios e outros.


Poema da Rua Alfajor

Como pode o arrependimento camuflar as mãos?
Não se pode acreditar que alguma coisa mudou,
– nada mudou?

Há uma fresta por onde entra uma pequena luz, logo
atrás das cortinas e do pó.
A claridade se insinua, deixe-a entrar
para preencher esse curto momento da existência
em que as lâminas noturnas estilhaçam o dia em mil e um pedaços,

Agora está escurecendo em todos os cômodos da casa:
– não tenhas medo.
Uma outra luz penetra a sala,
reflete nas paredes, manchas escuras de um mofo estranho,
grosso como nata de leite cru.

Como podem as mãos ainda visíveis
continuarem a mentir para este rosto incerto,
negar que não iria durar a luz, assim como
o dia nega as sombras da carne e dos seus próprios
ossos crepitando no escuro?

Quando essas paredes caírem
já não estaremos mais aqui,
já não estaremos em lugar algum.
Quando vierem remexer nossos ossos, sentirão
arder nas narinas, o perfume cor da terra,
saberão que fomos felizes como as aves centenárias
que ardem suas asas e vagam
como duas pombas de prata
no crepúsculo incendiado da manhã.


Suponha que Você Ame a Vida

Suponha que você de fato ame a vida.
Ame a sua própria vida.
O que fazer com a vida do próximo?
O pedinte, o miserável, o arruinado?

Seu olhar reluz o ouro dos ancestrais emudecidos.
As bocas noturnas que pedem, sufocam-se na insistência
da antipalavra:
– variações e escassez de ternuras, sombras
no cume da montanha alta,
enquanto a neve estilhaçada pelo vento, cai
desnuda e branca
sobre o vácuo das mãos que imploram
por pedaços de pecados de um outro
que não fui, ou serei.

De prontidão, os lírios nascem e renascem do chão
como o jorrar do leite sobre as bocas e suas línguas abertas;
línguas de pano e de algodão,
macias e afáveis,
feitas para driblar o percurso ingrato
da solidão.

De repente, no acaso inexistente,
generoso aroma inunda de cima para baixo,
a terra aflita, suas pontes e aviões desesperançados.

– Quem foi? –Foi Deus? – Quem foi?… O poder de Deus se manifesta nas mais pequeninas coisas, como nas maiores.

Do céu, o milagre desabrocha a juventude de uma flor azul,
infinita em gestos de compaixão e misericórdia,
ninguém mais de braços cruzados.
Os vaga-lumes açoitaram a noite e suas tribos mais remotas.
Partiram o pão,
repartiram as nozes da Índia, também
os damascos adocicados do Atacama.

Todos agora comem e se fartam, e se morrerem amanhã,
morrerão cheios, repletos de intensidade e vigor
como os insetos.


Máquina de Fabricar Esquecimentos

Tantos nomes a imitar o silêncio
na combustão do pensamento em chamas;
laços cortados do tamanho dos fios dos cabelos do vento,
não há mais razão para te precipitares no vazio das noites incendiadas:
chove agora neste chão de vícios inertes e de frias esperanças.
Cadáveres escoltados pelo açoite das cabeças convulsas
balançam a cabeleira imortal e seus segredos além-túmulo.
A máquina de fabricar esquecimentos produz fórmulas rápidas
de apagar os nomes,
intocáveis nomes
que fulguram ainda em meu coração.


O Fim

Não voltaremos a pressentir a corredeira dos rios
nem sequer lembraremos dos peixes com suas guelras tensas
debatendo-se nos fragmentos das águas, sufocados pelo bolor da terra submersa.
Não haverá natureza empática se não refletirmos sobre a perda,
sobre os crimes nômades do homem de fogo,
sobre o sonho escuro
e os corpos incendiados dos bichos, formando constelações de chamas,
labaredas insistentes
que vagarosamente queimam
a floresta pantaneira
sem deixar rastro de sangue,
mas de um fogo
que ataca e mata
sem piedade,
vidas.


Condição para Te Amar

Só conseguiria te amar se pudesses acariciar minha penumbra
com as mãos flamejantes a iluminar meu íntimo
e plantasses crepúsculos à minha porta
debruçasses a luz sobre os degraus da existência arbórea do corpo,
acenasses aos meus barcos que ancoram portos sem ninguém.

Amaria teu rosto se me sorrisses até as funduras da solidão
precipitasses teu desejo molhado de tinta
nos instantes umedecidos pela bruma matinal
com a palavra seiva
sem definições ou constantes arguições
sem necessidades ilegítimas e pedintes
ou mesmo sem o rosto de vítima
de um Van Gogh enlouquecido.


Notas Sobre Covid 19

Com manchas roxas pelo corpo todo
ela sofre por assistir de mãos atadas
o sofrimento dos outros. Dos outros diferentes da gente
já sufocados por falta de ar, febre, tosse;
pelos outros com Covid 19, – ela lamenta e sofre.
Numa Casa de Saúde costuma-se ver de tudo, sob o viés da dor,
das perdas. Um choro compulsivo vem de um quarto no corredor dos fundos.
Alguém partiu desse mundo estranho.
Partir é descansar os ossos nas águas azuis e gélidas nestes intervalos do inverno.
Lágrimas brilham no rosto triste como as redondas lantejoulas.
-Morte é mistério-. Ninguém a alcança daqui, o aqui não é destino,
quem quer morrer?

II

Os suicidas são imaginários, inventivos, fracos? Corajosos?
No além do Além, minúsculas estrelas cobrem o céu de chuviscos iluminados.

III

Ela queria desaparecer, abrir a porta do carro e sair da atmosfera mórbida,
Fugir até o campo e ver seus segredos transformarem-se em tulipas doces e amarelas.
Porque, assistir pelo espelho a matança do Covid 19 a deprime.
Este é o sinal dos tempos profundos de violência mental, lençóis negros do materialismo, ódio lamacento, e dos morangos mofados das fake news.

A carne do vírus é desesperança, suspiro e morte.

IV

Compaixão: mergulhar um único girassol na liquidez sombria da dor de um outro.

V

Quem sente o quê pelo outro quando a raiz da árvore-mãe apodrece e desparece na terra úmida de orvalho… Há sinais de vida perto daqui, os vultos silenciosos e com seus ossos crespos, já desceram as escadas e esperam pacientes, nesta tarde, por uma xícara de chá de jasmim. Quem chora com os olhos do outro pelas doces ofensas, pelos grãos graúdos das feridas em flor? Pacientes, enfermeiros, médicos lotam os santuários íntimos para orar de chinelos, e em prantos, para os que são tocados pelo Dedo Maior, e se libertam como pássaros alados de olhos fechados para nunca mais se ferirem.

VI

[Ela acorda], varre a roupa na calçada, pisa na grama desbotada e inicia a saga acesa do dia, as lâmpadas nos postes, um crepúsculo desponta no céu como um longo alfinete cravado no peito.

As mãos em círculo formam arcos sem flechas, mãos de alguém florindo num jardim cinzento, a vontade de chorar.

[Ela chora], obedece os alicerces trêmulos da manhã. Põe a máscara no rosto, passa o álcool em gel entre os dedos e sobre o castanho das unhas, se despede da filha que ainda dorme, dá-lhe um beijo nas bochechas efêmeras e macias, depois segue incendiando o tribunal dos quase mortos com sua pétalas todas.

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