5 Poemas de Rodrigo Garcia Lopes

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Foto / desenho por Andrea Ramos

Rodrigo Garcia Lopes(Londrina, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Traduziu Marcial, Rimbaud, Whitman, Sylvia Plath, Laura Riding, o anônimo The seafarer, Apollinaire,entre outros. De 2002 a 2015 foi um dos editores da revista Coyote. Sua poesia está representada em várias antologias importantes de poesia brasileira contemporânea, no Brasil e no exterior. O romance O trovador foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2018. Poemas coligidos (1983-2020), reunindo seus sete livros de poemas, saiu em 2023, pela Kotter (https://kotter.com.br/loja/poemas-coligidos1983-2020-rodrigo-garcia-lopes/). Site oficial: https://rgarcialopes.wixsite.com/site


Janelas para o mundo

The word is a window onto reality.
Zbigniew Herbert

O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade

mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:

uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra.

Isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras.


Sextina: o Dia da Marmota

Vai estar frio, vai estar cinza, e vai durar para o resto da sua vida.
Phil Connors (Bill Murray), em Feitiço do Tempo

O rádio-relógio dispara exatamente às seis
ao som de “I got you babe”. O DJ anuncia: “É hoje
o Dia da Marmota! Tá muito frio lá fora!”
Phil acorda e diz: “Mas isso não foi ontem?”
As saídas da cidade, bloqueadas. Voltou outra vez.
Na sexta, percebeu: era prisioneiro do presente.

Olhou-se no espelho; sim, estava ali, presente.
Ligou pros seus irmãos (eram em seis):
“Ninguém atende! É isso, acontece toda vez,
como previ!” Amanhã não estaria mais frio que hoje
e Rita não menos ou mais bela do que ontem.
Começou uma sextina para ela. Neve caía lá fora.

Às seis tocou o rádio-relógio que ele jogara fora:
“Mas que inferno este eterno presente!”
No quarto, tudo no mesmo lugar de ontem,
quando ao som de Sonny & Cher se levantou às seis
e diante do espelho perguntou: “Será diferente hoje?”
“Nasci de mim quando acordei. Tento outra vez?”

A previsão do tempo, como Phil, pirara de vez
e os festejos haviam atraído a multidão. Fora
do hotel, Rita disse a Phil que apenas hoje
era o Dia da Marmota e que um belo presente
seria fugir de Punxsutawney depois das seis,
“na mesma van branca que pegamos ontem”.

“A marmota viu a sombra antes de ontem,
ontem, hoje também. Vou dizer mais uma vez,
Sou imortal! Sou Deus!”. Foi quando seis
caipiras jogaram o homem do tempo pra fora
do café. Acreditava agora estar num mágico presente.
“Algo me diz que nada será como hoje”.

Só que não! Rita, a produtora, confirmou que hoje
era de novo dois de fevereiro. “Engraçado, ainda ontem
sonhei que era prisioneiro do presente”.
“Nietzsche chama isso de eterno retorno. Uma vez,
em Elko, aconteceu comigo. Você me deu o fora,
ontem”, disse Rita. “Não, amor, transamos umas seis”.

Vai, sextina, ontem não houve. Amor venceu mais uma vez.
Este presente é precioso e não se joga fora.
Phil deletou a sextina. Hoje, exatamente às seis.


Verão

A lâmpada
Phillips

queimada
nos restolhos

à beira-mar
gira aos olhos

entre os dedos
da turista

que, indecisa,
se equivoca

e a joga
de volta

à areia
escura

molhada
e vai embora

e do nada
de repente

ela vira
uma coisa

que se acende
e rebrilha:

água-viva.


Via Láctea

Noite de março insular.
Úmidas rajadas
de luz.

Os vultos dos barcos
brancos oscilam:
pequeno arquipélago.

Velho vento sul
atrasa
o relógio da igreja

e alguém pensa
enquanto pesca
no mistério que há
no silêncio.

Pedaços de reboco da lua
Despencam e ressoam no oceano.

Os cães nativos sonham
sob canoas emborcadas, lembram
a lenta avalanche
do crepúsculo.

Lagoas nas dunas agora:
são olhos acesos.
O coração, um bairro
quieto.

As ondas aqui
se quebram ao revés,
severas, tranquilas,

e entre elas três ilhas escuras
sob o sambaqui de estrelas.


Oniros

Em algum lugar ao norte de Medúsia,
onde não há música, exilada inocência
na sólida paisagem que a visão
hipnotiza sob a ponte: a farsa
de nosso futuro. Com olhos lacrimejantes,
trovões trincam o céu de nossos afetos,
tremem a catedral de sentidos. Um corte.
Fomos contratados para um trabalho
Insondável: instalar estas cercas elétricas.
Agora conversamos entre dispositivos
em algum resort de Bornéu ou da Normandia
com a senha Albert a tiracolo.
O estranho veterano se detém
diante da vitrine
de uma praia de diamantes.
Há uma nave no céu.
Ecos de explosões na Galeria Steinway,
Aroma de algas vermelhas e tóxicas,
câmeras de monitoramento, sabotagem.
Marionetes macabras sorriem enquanto afundam
na areia movediça dos dias.
Há um franchising de sonho aberto 24 horas
e uma chance apenas de tocar e tatear
a Terra para sempre prometida,
antes que a paisagem se estilhace
e vire um hotel feito tão só de ruínas
e habitado só por anjos.

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