Arqueologia Mórbida da Cidade – 6 Poemas de Sidnei Olívio

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Sidnei Olívio nasceu em São José do Rio Preto (SP). Autor de 11 livros de poesia e prosa poética, publicou ebooks de poesia infantil em português e inglês. Publicações ainda em várias revistas, jornais literários e científicos (zoopoesia). Participou em 23 coletâneas, sendo os principais Leituras de Brasil, 2001, Ed. da UNESP; Petali d’Infinito, Accademia Internazionale Il Convivio, Itália, 2002 e “Mapa Cultural Paulista”, Lisboa, Portugal, 2002.


Onde o sol não chega

Pouco a pouco a memória se despedaça
sucumbindo ao acaso dos dias.

Por mais suspeitas que sejam
as palavras têm o teor do registro
e a história é algo a se firmar
perene sobre os subterrâneos do passado.

Resgatar dos escombros as tintas
e tragédias não evaporadas.
Cavar as profundidades de todos os esquecidos
esse exército insólito de cadáveres
que resistiram em cada esquina
em cada tarde suspeita
como um mero passante
costurando o pavor da madrugada.

Trágicos heróis emoldurando o devir melancólico
dos deuses do futuro. Trágicos heróis.
A vida é a breve luz de uma vela
sobre a lápide do destino.


Abismos são caminhos sem volta

1.

Todos os caminhos forjaram esquinas
embaraço e medo no embalo
do próprio sonho.

Quando a realidade bateu à porta
pela fresta notei a noite passada
como um manto escuro sobre a cidade.

Grilos quedaram silentes.
Estrelas evaporaram
no dado feitio da ciência

esticando em seus braços
o abraço da morte
na solidão dos jardins encovados.

2.
Um girassol despetalado
malmequer a manhã
: liberto o unicórnio
a pastar sob nuvens.

Tudo o que a vista alcança
é zona de guerra.

Meu peito é pura ânsia e dissonância.
Não pactuo mais com a palavra
que recria ilusão de futuro.

(A poesia no entanto
se abastece das cinzas e voa
feito um balão).


Plana geografia dos acidentes

Bem aqui nesta esquina o desejo
e a dúvida da ventura. A geografia plana
dos acidentes na plena urgência das horas.

Aqui é onde eu sempre te espero
entre as paisagens de concreto e os sinais
intermitentes na rotina insana dos dias
sobre os escombros da cidade.

Aqui nesta precisa esquina
desse prolongado instante
alguma coisa em mim ainda resiste
além dos desfeitos planos.

A promessa concretizada nas palavras escritas
a ferro e fogo nas linhas contínuas das minhas mãos
e no vinco sorridente do teu rosto
serenando a renúncia.


O mundo é a essência do silêncio

Ver pela janela a gênese do mundo
no trânsito quase imperceptível das estações
acumuladas. As horas apressadas pelo relógio. As coisas
que não podem ser mudadas. A sombra
antecipando a despedida. Postes da rua
iluminando a solidão difusa. A arqueologia
mórbida da cidade expandida em fórmulas. As pessoas
em suas aflições cotidianas. Em sua mesmice aprisionada.
Em seus desejos de futuro impossível. Eu sigo
meu trajeto de nunca chegar. Os lugares
que perpasso são fendas de imprecisas soluções. Estou
cada vez mais preso na voz emudecida (palavras
que em vão rascunham o poema sem alvorada).


O que subitamente não desperta

A tarde se inclina escura sob o uivo
do vento entremeando os prédios
como um lamento. Um sopro
de tristeza e abandono.

Há um desejo incerto no incesto
do dia que contagia a noite (um corpo só
e seus segredos).

O tempo se perdeu nos vestígios
da sua presença. Inocência de um abril
à volta do que nunca fomos.

(Ela partiu na manhã
quando as janelas se abrem enfim
em áspera resposta
aos desabitados sentimentos).


Peço conselho às flores

A volta insistente ao mesmo lugar
buscando encontrá-la.

Em vestes baixas
dando comida aos gatos.
Regando o jardim branco de rosas

(No mesmo lugar
onde o vento fala.
Onde os sonhos têm olhos e asas.)

A volta insistente ao mesmo lugar
buscando encontrá-la.

Em pelos à mostra.
Dando incentivo ao gesto
ao pleno do desejo que restou.

(Uma frase se desfolha
sobre os ombros da saudade.
Peço conselho às flores.)

A volta insistente ao mesmo lugar
buscando encontrá-la.

Em êxtase aparente.
A beber motivo ardente
queimando corpo escasso.

(Sem nenhum embaraço
deito sobre cada memória
como um lapso de existência.)

A volta insistente ao mesmo lugar
buscando encontrá-la.

Mas ela nunca estava.
Como estaria se fora sempre
uma figura feito o lugar emoldurada?

2 comentários em “Arqueologia Mórbida da Cidade – 6 Poemas de Sidnei Olívio”

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