Cantigas do Luaréu – 5 Poemas de Claudio Daniel

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Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “A recepção da poesia japonesa em Portugal”. Concluiu o pós-doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Curador de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colaborou na revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019), Fuyú (2020), Marabô Obatalá (2020), entre outros títulos.


URUPIARA

Para Jorge Amâncio

você pensa que é moça linda
cabelos-de-ouro-
brilhoso-só-ouro
coxas brunidas
e olhos
ensafirados
no azul-ninfeia-
das-águas-
do-rio
ela-moça-de-ouro-azul-e-safira
mas isso é logro
meu mano
a moça que mora
nos fundos do rio
não é moça-de-
pele-clara-
de-sol
nem moça-de-
pele-azul-
das-águas-
do-rio
nem moça
não é:
essa é a cobra verde
ele-ela-mulher-
demônio
ipupiara, urupiara
fantasma
que mora
nos fundos
do rio
ele-ela-come-olhos
dos pescadores
que pescam
nas águas
do rio
ele-ela-come-pés
das lavadeiras
que labutam
nas águas
do rio
ele-ela-come-olhos-
narizes-mãos-
pirocas-e pés-
daqueles que vêm
para perto
do rio
ele-ela-bebe-sangue
dos piás
ele-ela-bebe-sangue
das cunhãs
mãe d’água é moça bonita?
isso é logro, meu mano
fique longe
da lapinha:
ele-ela-cobra-verde
tem um-dois-
três-quatro-
infindos braços
— homem-peixe-
mulher-demônio
e tem fome sem fim


UIRAPURU

Para Edir Pina de Barros

I

pássaro
preto
e vermelho
de papo
amarelo
músico-
das-matas-
e-mágoas
quando canta
só ele canta
todas as aves
se calam
para ouvi-lo
canto-que-
não-é-canto
de pássaro-
que-não-é
pássaro
em noite-
que-não-é-
noite.

II

ave-que-
já-foi-gente
guirapuru
no lá atrás
de antigamente
aquele-que-
amou
a-mais-bela-
do-que-a-noite
estrelada-
aquele-que-
já-foi-gente
e amou
a-mais-bela
do-que-a-lua-
perolada –
ela-a-filha-
do-cacique
ela-a-filha-
da-armadilha-
em amor-de-
amor.

III

diz a lenda
que o pai
da índia linda
velho turrão
aquele-que-
caminha-com-
o-bastão
disse não
e não
o pai
da índia linda
velho turrão
aquele-que-é
mais-ruim-
do-que-a-
cria-do-cão
disse não
e não
e o jovem
afogado
na tristeza
em doeira
de doer
rogou a tupã
que o mudasse
em pássaro
de olhos
escuros
ara-puru
ira-puru
vira-puru

IV

tupã
mudou o índio
em ave preta
e vermelha
de papo
amarelo
e olhos
escuros
papa-uirã
pássaro-
de-fandango
seu canto
é lamento
de amor
mal curado
ara-puru
ira-puru
seu canto
é lamento
de amor
infeliz
vira-puru
uirapuru!


CUCA

ela vem
num pé-
de-vento
quando
a lua
amarelece
lá no céu
ela, velha
papona
mulher-
jacaré
senhora-
dragão
ela vem
num pé-
de-vento
maga magra
megera
com capa
e capuz
entra
pela janela
no escuro
da negridão
e quer levar
o menino
para assar
no seu fogão
e quer levar
o menino
para o jantar
no casarão
ele será a boia
para o bucho
da bruxa
o cozido
no caldeirão
por isso
cuidado
com a cuca
quicuca-ticuca
corica-corumba
cuidado
com a senhora-
dragão
dorme, menino
que a cuca
vem pegar!
por isso
dorme, menino
que a cuca
vem pegar!
ela, a velha
de manopla
e cabeçorra
a feíssima
de peitos
caídos
até o umbigo
e dentilhões
terríveis
terríveis
terríveis


SACI

pretinho de carapuça vermelha
filhote da lua
da meia-noite
o saci, o saci
onde está o saci?
ele-o-preto-perneta
espanta o porco-
espinho
ele-o-preto-perneta
espanta o porco-
do-mato
o saci, o saci
onde está o saci?
atazana
a ratazana
atormenta
a saracura
ele-o-pretume-amarume
que grunhe
nas gretas
no escuro do mato
o saci, o saci
onde está o saci?
ele-o-pererê-negrinho
piá-capiau-
encantado
bebe cachaça
na boca do gargalo
ele-o-fanho-
dengoso-
fumarento
solta bafos
de fumaça
pelo cachimbo
de barro
filhote da lua
da meia-noite
o saci, o saci
onde está o saci?
ele-que-come
taturana
quando sente fome
ele-que-come
maitaca
e tataranha-rata
quando sente fome
o saci, o saci
onde está o saci?
não está lá
não está aqui
nem ali-lá-acolá
pé aqui, pé ali,
pé lá e acolá
pula aqui, pula ali,
ele-o-pererê-negrinho
o saci, o saci
onde está o saci?


CURUPIRA

Para Sérgio Medeiros

nem-eu-nem-tu-nem-não-ninguém
escute
o-mutum-de-
assobio
no verde-escuro-
da-mato –
nem-não-
ninguém
assim diziam as avós
velhas cunhãs
– pode ser o curupira
corumi, iurocô
ele-o-de-pés-
ao-contrário
ele-o-anão-orelhudo
frio-frio-arrepio
no verde-escuro-
da-mato
– você fuja, se o ver
– você fuja, se ouvir
o assobio
do anão cabeludo
que mora ali
no verde-escuro-
da-mato
frio-frio-arrepio
piás, cuidado!
você não crê
descrê?
pergunte ao homem da meia-noite
você não crê
descrê?
pergunte à mulher do meio-dia
quem é aquele
do urro-assobio
com cabelos-
de-fogo-fátuo
quem escuta
os gritos roucos
dele, endoidece
no amalucar-se.
nem-eu-nem-tu-nem-não-ninguém
não-nem-
escute-
o-mutum-de-assobio
no verde-escuro-
da-mato:
pode ser ele
o mentiroso
pode ser ele
o caralhudo
o que assobia
e dança sorrindo
com o machado
feito de casco
de jabuti
– ele o que gosta
de pinga, fumo
de rolo e moças
novas, lua nova
– ele-o-de-pés-
ao-contrário
que espalha
pistas falsas
e faz o viajante
perder sua rota
por isso, piás
cuidado!
nem-eu-nem-tu-nem-não-ninguém
escute
o-mutum-de-
assobio
no verde-escuro-
da-mato.

1 comentário em “Cantigas do Luaréu – 5 Poemas de Claudio Daniel”

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