Nuno Gonçalves (Pernambuco, 1977). Nasci em Recife, mas sou cearense. Publiquei os livros de poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das onças. Recebi o Prêmio Ideal de Literatura com o conto O caminho da novena e com o poema O canto do anjo vermelho. Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC & doutor em Estudios Latinoamericanos pela UNAM. Sou professor de história da América na UFRB, mas o que importa mesmo é que sou pai de Marialice.
Domingo de ramos ou segundo cântico ao sol do entardecer.
Para Janaína & Ian, a memória.
Miguel, o futuro. Larissa, o agora.
O Velho, caminho dos feiticeiros e
Maria Alice, o Sempre e o Além.
Quando eu nasci,
tudo que eu amava já estava morto.
Quando eu nasci,
o rio que eu amava já estava vermelho de sangue.
Quando eu nasci,
o túmulo de azulejos azuis já aguardava as coxas brancas e o olhar de minha mãe.
Quando eu nasci,
projéteis de aço sobrevoavam os ares de Belém em direção ao peito de meu pai.
Quando eu nasci,
meu avô trôpego bêbado e velho já caminhava em direção à morte.
Quando eu nasci,
tudo que eu mais amava já se encontrava morto há muito tempo.
Havia entre as nuvens, um vácuo.
E na poltrona de trás do avião: uma evangélica.
Foi o suficiente para atingirmos o estado máximo de pânico.
Como quem goza, ela orava:
gemia gemia e gemia.
Sem saber que à frente, sem nenhum temor
, do vácuo ou da morte,
havia um menino – azul e encouraçado como um pântano perdido.
Entre as nuvens e o vácuo. Entre a evangélica e o gemido.
Entre o azul e a couraça. Havia um menino.
Que antes de qualquer verdade conhecera a mentira.
Que antes de qualquer verdade conhecera um mar de mentiras.
Que antes de qualquer sombra de verdade vivera imerso num aquário de mentiras.
Os peixes eram de mentira.
Os fantasmas eram de mentira.
A única coisa verdadeira eram os mortos.
Com suas vestes, seus olhares esguios e seus passos de calmaria e tempestade.
Subindo as escadas do casarão.
Subindo a árvore no quintal.
E sentando, ao fim da tarde, na calçada.
Esperando o vento de nome Aracati.
Para refrescar o calor de estar morto.
Ela gozava e orava e gemia.
Como se o avião fosse realmente cair.
Ou como se isso fizesse qualquer diferença na vida de qualquer um de nós.
Sem lhe importar que na poltrona da frente havia alguém.
Ela apenas gozava e orava e gemia.
Sem saber que o seu gozo a sua reza e seus gemidos eram em vão.
Sem saber que o seu medo, o avião, as nuvens e o vácuo eram também mentiras.
Ó morte! Vós que quando palmilha minhas estreitas cegas vértebras
acende vaga-lumes ao largo do percurso
fertiliza e floresce sangue e solo antes puro pasto.
Ó morte! Vós que da guerra conhece casa sussurro.
Que sabe à espreita de todo e qualquer mistério.
E que entende que só na justiça pode habitar plenamente qualquer paz.
Ó morte! Em vós depositada
– como arca imperecível
ou cântico selvagem de onça sertaneja –
aquela estadia no silêncio ensurdecedor
aquela estadia no semblante da noite do terror.
Ó morte! neste excesso de vida que me trazes
acolhe-me como açoite, vulto e bendição
faz relampejar cada signo que povoa meu caminho
e torna exato o peso e o volume de cada um dos meus passos
em direção ao impecável, ao turvo, ao implacável.
Livrai-me, ó morte, da incorruptível Vestal.
Livrai-me, ó morte, da sucessão espetacular de miríades de miragens.
Suplico vossa proteção ante o altar magnífico onde rito e experiência se fundem.
Onde a memória age como ácido sobre o esqueleto da história.
Onde a memória trava trágica batalha contra a impávida, fulgurante e altaneira Vestal.
Onde os vômitos e as náuseas borram as acinzentadas linhas do esquecimento.
Onde o simples pressentimento do impalpável desvanece toda arquitetura colossal.
Onde se gesta o sol do amanhecer e o sol do entardecer.
Onde a impossibilidade do sublime se transfigura em desejável recusa.
Ó morte! Não fostes vós que me ensinastes que
o fenômeno de lucidez e transbordamento nomeado pelos cristãos ressurreição
é mais antigo que o próprio Cristo?
Ó morte! Não fostes vós que embalado me levastes
ao seio primitivo das pagãs línguas onde com ardor e veneração
pronunciava-se idêntica lucidez e transbordamento?
Ó morte! Habito esta distância.
Esta indissolúvel fronteira entre indecifráveis margens de irreconhecíveis linguagens:
Aí, depositadas, seguem minhas estreitas cegas vísceras
meu aboio de compaixão e desespero
minha sórdida crença de que ao farejar todos os fogos
poderei tornar-me algum dia cristalinas águas.
Atotô – em estado de reverência e exuberância.
Atotô – em estado de plenitude e solidão.
Senhora da Lama rogai por nós que recorremos a vós.
Senhora da Lama – aceitai em sacrifício e devoção tudo o que não aconteceu.
Senhora da Lama – ofertai-me a voz capaz de dizer o que não pode ser dito.
Depois de tudo restou o menino azul como um pântano perdido.
Narrando ao vento uma estranha biografia desprovida de acontecimentos.
Uma história de sementes e pássaros e onças e feitiços.
Uma história de sonhos, caleidoscópios, rios e destinos.
Uma encruzilhada alçada à condição de dicionário.
Onde cura e estilhaços são sinônimos.
Onde violência e acalanto caminham juntos, mãos atadas.
Onde reticências e oceanos estão aprisionados no mesmo verbete: cárcere e infância.
Infância e cárcere: promessas e esperanças, frágeis ossos de um passado
que nos aguarda com um punhal aceso às mãos.
Flores a Tempo. + flores a Tempo. Todas as flores a Tempo.
(uma vez mais o antigo sangrar dos joelhos por excesso de chão: + Tempo)
Arvoredos e sertões: cílios espraiados no horizonte.
Infância e cárcere: bendito chão fêmea de pedra & plumas.
Larissa – teu nome-espuma ardendo entre minhas coxas.
A memória do Velho, ainda menino – quase-cangaceiro/todo coragem.
Em seu cavalo – seria o mesmo dos meus tantos sonhos?
Seria aquele que tive que abandonar para receber o uivo da liberdade?
Já é sábado de aleluia.
Infância e cárcere: bendito céu macho de asas mineralizadas & cristais de magma.
Descanso minha insone e frenética cabeça em delicadas águas de aluvião.
Enquanto Aracati toma as rédeas dos cavalos que galopam à imaginação:
hímen fraturado, anatomia atômica, onírica radiação.
no Azul Amarelo Ouro Esverdeado de lodo e limbo,
a morte,
e nela, pulsando como um coração desgovernado
todas as vidas e faíscas e serpentes que lhe servem de raízes, alicerce e sustentação.
Hermenegildo cruza mais uma vez a paisagem rumo a Cordisburgo.
A quaresma se extingue como uma vela de parafina reciclada.
Perdão e santidade não são lugares aos quais se chega.
Não são terra firme onde se ancoram âncoras.
Antes de tudo são unhas roídas.
Inventário de delírios. Carne convulsa. Inusitado repertório de trêmulas compulsões.
E a certeza de que tudo o que respira será um dia luz e estrela.
Até o mais oblíquo, o mais dissimulado.
Hermenegildo em seu alforje carrega o submisso e o submerso.
Galopa com fé e sofreguidão.
Cordisburgo segue distante:
é só um pálido fragmento da memória da imensidão.
Os ameríndios sabem: ressurreição nomeia um evento posterior aos apocalipses.
Assim a pronunciam, com ardor e veneração.
Utopia, Hermenegildo, Cordisburgo, Ressurreição:
pálidos fragmentos da memória da imensidão…
nuno g. / Desterro/Toróró,
08 a 17 de abril de 2023.
Grande Nuno. Saudade imensa meu irmão! Vida longa pra você e Alice, dia desses no veremos novamente. Grande abraço, obrigado por compartilhar a poesia. Abraço meu de Vagna, Raul e Caio.