Drama – 3 Poemas de Clarisse Lyra

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Clarisse Lyra nasceu em Feira de Santana, Bahia, em 1988. Pesquisa literatura, revisa textos e escreve poemas.


MICRODEFINIÇÃO DA PERSONAGEM, SE A PERSONAGEM FOSSE SE DEFINIR

Continuo aqui
levando a vida que escolhi e escolho levar
a cada dia que levanta.
A cada dia queimo tudo o que tenho
para queimar e acordo à uma da tarde
com os olhos cheios de fumaça.
Tenho dois pares de sapato
e cinco conjuntos de pijama.
Gasto meu dinheiro com extravagâncias
como o aluguel de uma casa com masmorra
onde ponho a minha cama.
Na rua onde moro
e onde viveu o poeta Castro Alves
me abordam como a uma prostituta.
Não estou em busca de nada.
Meus pés são firmes e largos
minha pele é extremamente suave
desconfio com facilidade
fico muito tempo quieta
não relaxo nunca.


EM QUE ESTAVA PENSANDO A PERSONAGEM ENQUANTO PERMANECIA PARADA

Você acha que as coisas que eu escrevo
são besteiras pretensiosas
de uma menina
pretensiosa? Não sei,
me veio essa ideia agora.
De que as coisas que eu escrevo
são besteiras pretensiosas
de uma menina pretensiosa.
Queria saber o que você acha.
Talvez se você falasse
eu pudesse ter confiança.
Se você falasse
eu poderia
ter confiança.
É difícil confiar
no que faço
porque tudo o que faço
acho extraordinário.
Então preciso que me diga.
Gostaria de saber
o que você acha.

(o pensamento continua com um leve desvio)

Eu só penso em poesia.
Me dei conta disso esta semana.
Então resolvi escrever sobre outra coisa
qualquer coisa que não seja poesia.
Há dois meses estive na casa de minha mãe.
Ela tem uma planta grande que não sei o nome.
Parece uma comigo-ninguém-pode
mas os talos são mais grossos
e as folhas, mais escuras.
Muitas delas estavam com as pontas queimadas de sol.
Isso me incomoda muito.
Peguei uma faca e fui cortando uma a uma.
Agora, ao voltar, desta vez de vez
embora não saiba por quanto tempo
vejo que a planta está cheia de botões de flores brancas
uns botões fechados e compridos que não sei se vão se abrir.
Alguém diria:
Sim, a poda fortalece as plantas
favorece a absorção da luz
e equilibra a distribuição dos nutrientes.
Eu, não.
Quando algo assim acontece, penso
e não conto para ninguém:
Tenho mesmo o dedo verde.

(para onde foi então o pensamento)

Minha mãe acredita muito
no poder das palavras.
Ela mandou fazer uma
almofada para a cachorra
pediu para escrever:
Felisberta,
você é especial!
Ela chama a almofada
de você-é-especial.
Quando a cachorra
está agitada
ela fala:
Cadê você-é-especial?
Vá pegar, vá.
E a cachorra pega
e as duas ficam brincando
de jogar e pegar
você-é-especial.
Quando eu estou
muito calada
minha mãe fala:
Conversa com ela, K.
Eu faço um carinho na cachorra
e digo coisas como:
Oi, meu amor.
Vai ficar tudo bem.
Vai ficar tudo bem.


O QUE A PERSONAGEM ENUNCIOU EM VOZ ALTA AO FINAL DO ESPETÁCULO

Gosto muito da história do telefonema.
É tarde da noite,
Hilda Hilst disca um número.
Atende
Lygia Fagundes Telles.
Hilda diz:
Lygia, a alma
é imortal.
Responde Lygia:
Eu sei, Hilda.
Despedem-se, desligam.
Se uma das duas tivesse feito
qualquer pergunta,
a comunhão desapareceria
para dar lugar ao entendimento.
A babel se reinstalaria:
o fim da magia e o começo
dos percalços.

1 comentário em “Drama – 3 Poemas de Clarisse Lyra”

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