Lisa Alves (1981) é escritora e artista visual. Escreve para a revista literária La Ninfa Eco (Oxford, UK), coedita a Liberoamerica (transoceânica). Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Portugal, Moçambique, Inglaterra e Estados Unidos. Tem poemas publicados em onze antologias lançadas no Brasil, Argentina, Uruguai, Espanha e País Basco. Dirigiu os curtas Sou Indesejável (2018) e Depois do Sétimo Dia (2020), além de trabalhos que estão emconstrução e conectam literatura e audiovisual como: Quando tudo for possível (Mirada, 2020) e Alguém insiste em existir (La Ninfa Eco, 2020). É integrante do coletivo de mulheres do audiovisual Anarchas. Teve trabalhos de videoarte exibidos em festivais no Brasil e no exterior. É autora de Arame Farpado, 2ª. Edição (Penalux, 2018).
Quando Tudo for Possível
ou uma Declaração
Para Píton
“A noite chegou. Após muitas horas de intensa movimentação
e raciocínio atento, assumimos a posição horizontal e embarcamos
numa radical viagem de alteração de consciência.”
“O oráculo da noite” Sidarta Ribeiro
Inverno (parte I)
I
penso em nosso silêncio
penso em cada uma de um lado
penso no que não podemos
penso em enganos e sorte
penso em sons e cheiros
e nas folhas de outono que nunca existiram aqui
penso em você fumando enquanto olha pela janela
penso que essa não seria você
penso que talvez seja eu aqui
matando a ansiedade em cada trago
penso nos quartos
no primeiro
no segundo
penso na Lapa
na Baía de Guanabara
e na palavra amor
mas prefiro escrever Roma
(pois dói menos
e inverter as coisas
talvez seja uma espécie de fé)
penso em nossas caminhadas
por um Rio de Janeiro
que você desconhecia
ou talvez tenha esquecido
ou talvez nenhuma coisa ou outra
pensar em você é confuso
pensar em você é caminhar na escuridão
pensar em você é tocar em mãos que ainda não existem
penso quando você disse que voltou a gostar daqui
penso no que eu deixei de dizer:
“Então fique! Fique para sempre nesse sonho.”
mas você ainda não existe
e “pra sempre” é um
poema destinado aos mortos
penso na barca como despedida
e você indo antes da hora
antes do nosso combinado
antes mesmo de você existir
e eu muda
e você cantarolando
♫ O Estrangeiro ♪ do Caetano na cabeça
penso na personagem
penso em reescrever sem o grito
penso em desenhar sem o insulto
penso na “merda” e substituo por “madre”
penso no que você falou
sobre eu não poder salvar ninguém
então volto a escrever “merda”
mas prefiro “socorro”
pois não posso, meu bem
simplesmente aceitei
as coisas que não posso
penso
apago o cigarro
registro a chuva de peixes
e fecho a janela sozinha.
“♫ “Mas era ao mesmo tempo bela e banguela
a Guanabara/ Em que se passara passa
passará o raro pesadelo”♫
Primavera (parte II)
I
Todas as noites ouço tua voz soprar
soprar algo estrangeiro
e finjo que são antigas narrativas
sobre as estações que já passaram
ou como a primavera pode ser destruída em um golpe
ou como o tempo do amanhã pode ser agora
El tiempo no existe
e é isso que você tenta dizer
mas teu sussurro é uma esfinge
e não entendo se é para ir ou recuar
En la Patagonia, el tiempo no existe.
ou é apenas um temor pelas palavras mais simples
ou a necessidade por novas palavras
Mujer, mi nombre es
Todas as noites é minha mão e tua mão
que se amaram muito antes de inventarem
que tudo começa depois do primeiro beijo
ou que o beijo é uma função de bocas
ou que duas mulheres simplesmente não podem
Dos mujeres se comieron durante diez mil años.
Duas mulheres simplesmente não podem
não podem voltar para casa de mãos dadas
e dar conta de uma lista de filmes para assistir
até que não haja mais estações para elas
Quiero amar tus ojos
Quiero tus dedos dentro de mi boca
Quiero destruirme cada noche dentro de ti
e que está tudo bem se tudo acabar um dia
desde que elas possam assistir o fim enquanto
deslizam os dedos em cada linha nova
que nasce no rosto uma da outra
¿Te gustan los tomates verdes fritos, mi amor.
Todas as noites ouço tua voz soprar
Mira la primavera en nuestra cama.
II
Ontem passei pela Lapa
e nos vi comprando tabaco
e nos vi no meio daquela multidão
e nos vi pulando de bar em bar
na tentativa de prolongar o tempo
El tiempo no existe
Tentei avisar sobre setembro
mas algo não estava no lugar
elas não tinham a menor ideia
daquela primeira primavera
Mira la primavera:
merda, madre, dream
e eu não tinha a menor intenção de estragar
Fue solo un sueño, mi amor.