15 Pedaços de Sossélla (2018-2021)

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Por Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari

Sérgio Rubens Sossélla foi um poeta, crítico e magistrado nascido em Curitiba, em 1942. Certamente foi um dos poetas mais produtivos do Brasil, tendo mais de 300 publicações em vida, a maioria editada pelo próprio autor. Se aposentou em 1986 e logo em seguida construiu a Vila Rosa Maria, biblioteca com mais de 25 mil livros, seu último refúgio, onde se dedicou à poesia e literatura integralmente até o fim de sua vida, em 2003.

No dia 18 de novembro de 2018 completou 15 anos sem Sossélla. Fizemos o primeiro episódio (Sim, ele passou por aqui) em homenagem a esse dia, e só depois resolvemos fazer uma série de 15 videopoemas, tentando dar uma visão geral da obra poética dele, com um olhar um pouco biográfico – que é praticamente indissociável de sua obra –, chamada 15 pedaços de Sossélla. Agora ela chega ao fim, com o poema “não norarei amanhã”, que talvez seja o poema mais significativo de sua vida, e o maior, por isso deixamos por último. Esse poema passou no FEMUP (Festival de Música e Poesia, de Paranavaí/PR) de 1986, que foi quando e onde Sossélla conheceu Rosa Maria.

Grande parte das imagens usadas para a produção dos episódios foram tomadas em Paranavaí, e a maioria dessas, em sua biblioteca. Seu filho, Sérgio Augusto Cardoso Sossélla, o interpretou em alguns episódios.

Não os consideramos como videopoemas convencionais. Eles são como um espelho distorcido da obra retratada, ou um excerto retrabalhado, ou ainda o aprofundamento de uma ou mais faixas de interpretação. Sendo assim, vídeos de interpretação, mas, além disso, também de crítica e de tradução (mas não uma tradução literal (como, ao nosso ver, fazem nos videopoemas convencionais): seria algo mais próximo do que Haroldo de Campos chama de transcriação: “recriação, ou tradução paralela, autônoma porém recíproca.”)

Ninguém volta pra casa e Melhor assim, 5º e 6º episódios, respectivamente, participaram do 5º Timeline BH (Festival Internacional de Video Arte), de Belo Horizonte. Ninguém volta pra casa, também foi exibido na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes e no Videoformes 2020 (Art vidéo et cultures numériques), de Clermond-Ferrand, na França.

A série teve um intervalo entre julho de 2019 e junho de 2020, quando voltou com o 8º episódio e uma modificação do que vinha tendo até então, que era a leitura dos poemas sendo feitas por nós dois (um, excepcionalmente, feita pelo Vinícius Comoti, que também estuda a obra do Sossélla). Nessa, digamos, segunda parte, selecionamos vários poemas e deixamos à escolha dos poetas convidados a ler, e eles foram: Ricardo Domeneck, Djami Sezostre, Patrícia Lino, Sergio Maciel, Rodrigo Tadeu Gonçalves, Dirceu Villa, Francesca Cricelli e Guilherme Gontijo Flores.

Esse trabalho nos dá muita alegria. Foi um percurso longo e às vezes árduo, mas que valeu cada momento. Hoje a gente percebe que o interesse na obra do Sossélla aumentou, e continua crescendo. Que venha o filme!

Seguem os vídeos do projeto juntamente com os poemas.

1: Sim, ele passou por aqui (nov, 2018), 2’21”, leitura de Gregório Camilo:

SIM, ELE PASSOU POR AQUI

então o cowboy abruptamente envelheceu
(desde menino trazia os olhos de um cão chutado pelo destino)
nem mais com as crianças da rua ele brincava (como costumava)
e nas raras vezes em que surgiu (arqueado e tropeçando)
a mão vazia desenhava saques lentos para um alvo que não existia
monologando só passagens da sua infância
(¿saberia que por ser quem era sairia miseravelmente derrotado pelas vitórias que fizera?)

assim rapidamente ele morreu
levando na garganta mugidos estrangulados
vermelhos e largos vergões na alma trincada
sinais de tiros e marcas de punhais no frágil corpo atormentado

morreu ele rapidamente assim
pedindo ao deus misericordioso jamais nascesse de novo
tão sozinho e abandonado que até a sua sombra não lhe acompanhava

sim
ele passou por aqui
(aldeia dos canibais)
alongando o quanto pode a amargura da permanência
além dos próprios limites suportáveis da existência
e foi embora para nunca mais

mas todas as noites
o seu fantasma alucinado
teima em repassar aí em frente
(naquele veloz corcel invisível)
deixando uma grossa nuvem de poeira e de remorso para nós

(produção: Catatau Filmes / roteiro, direção e fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio, leitura e montagem: Gregório Camilo)


2: Meus mortos (dez, 2018), 32″, leitura de Fernanda Magalhães Ferrari:

MEUS MORTOS

indefesos
não suporto olhar meus mortos

suas pupilas dilatadas anoitecendo visitas
para aquela horizontalidade de mãos postas

não suporto olhar meus mortos
indefesos

(produção: Catatau Filmes / direção, cinegrafia, áudio e montagem: Gregório Camilo / direção de fotografia e leitura: Fernanda Magalhães Ferrari / ator: Sérgio Augusto Sossélla)


3: O dia de amanhã (jan, 2019), 25″, leitura de Vinícius Comoti:

O DIA DE AMANHÃ

minha mãe me ensinou
o dia de amanhã
ninguém sabe
o dia de amanhã

(produção: Catatau Filmes / direção e direção de fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / direção de áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Vinícius Comoti)


4: Exercício nº 110 (fev, 2019), 1’07”, leitura de Gregório Camilo:

EXERCÍCIO nº 110

inclinou-se para o lago
e perguntou

existe alguém
mais não-eu do que eu?

a voz
grudada no penhasco
(rouca e louca)
respondeu

eu
eu
eu

(produção: Catatau Filmes / direção: Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari / direção de fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio, leitura e montagem: Gregório Camilo / ator: Sérgio Augusto Sossélla)


5: Ninguém volta pra casa (mar, 2019), 2’21”, leitura de Gregório Camilo:

NINGUÉM VOLTA PRA CASA

quando adoideço e me rôo
quando me congelo e derreto
é a minha casa que vejo se anoiteço

de casa a gente sai mas não volta
porque vai topar com a mãe morta de tanto chorar
de casa a gente sai mas não volta
porque ¿quem aguenta ver o pai velhinho a sangrar?
de casa a gente sai mas não volta
porque a memória de você-menino irá lhe estranhar
de casa a gente sai mas não volta
porque nem a sua sombra poderá com você se encontrar
de casa a gente sai mas não volta
porque a bruxa não desgruda e as casas mudam de lugar
de casa a gente sai mas não volta
porque gastamos nossas asas e findamos por enferrujar
de casa a gente sai mas não volta

sonhei que eu voltava pra casa
de costas
mais morto do que vivo
ainda mais torto e sem juízo
de costas
mas voltava pra minha casa

a mãe morta (eu sei)
cuidará de mim perguntando
se parece comigo aquele que veio
pra embalar minha ausência no colo gasto
pra beijar saudades com seus lábios mortos

ninguém volta (o mesmo) pra casa
mas agora nem comigo mais eu me esbarro

vou desenterrar
a casa meu pai e a mãe
e assim nós três ficaremos
juntos pra sempre outra vez

(produção: Catatau Filmes / direção, fotografia, leitura e edição de áudio: Gregório Camilo / direção de áudio: Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari / montagem: Fernanda Magalhães Ferrari)


6: Melhor assim (abr, 2019), 35″, leitura de Sérgio Rubens Sossélla:

MELHOR ASSIM

aqui em longs peak ou no meio do mato
curto integralmente este meu anonimato

(produção: Catatau Filmes / montagem e áudio: Gregório Camilo / filmagem e cor: Fernanda Magalhães Ferrari / leitura: Sérgio Rubens Sossélla)


7: “se reuniram as noites…” (jul, 2019), 1’21”, leitura de Gregório Camilo:

se reuniram as noites
e combinaram:
só os nossos profundos conhecedores
aqueles que nos madrugam e nos alongam
sabedores dos hálitos perfumes e ressonares
moradias despertares
e de cada uma de nós os mínimos ajeitares
detectarão o estilo comum incomum
da jovem irmã a quem homenageamos.

(produção: Catatau Filmes / filmagem, leitura, montagem e desenho de áudio: Gregório Camilo / cor: Fernanda Magalhães Ferrari)


8: Aqui não é Noa-Noa (jun, 2020), 2’09”, leitura de Ricardo Domeneck:

AQUI NÃO É NOA-NOA

ela nem me procura
aqui não é noa-noa
mas a minha sepultura
(tire o cavalo da chuva
confesso que ainda não morri)
lá os bares não fecham jamais
¿não deu na globo? ¿não deu na globo?
e as memoráveis cicatrizes bebem no mesmo copo
(quando nasci os ciprestes já se retorciam)
lá os bares não fecham jamais
porque ela pode aparecer e insistir
ao sam que toque uma vez mais
estou me rasgando para o passe do sócrates
cinture (de novo) o cálice com amargo e cinzano doce
estou me rasgando para a maiêutica peripatética
me recuso a sair daqui sem ouvir pelo menos jalousie
cinture o cálice meu amigo cinture o cálice de amargor
aplainei a quilha da embarcação
agora me vou (antes da partilha)
vi e revi esse filme
(o cara morre no curso de um flashback interminável)
sabei-me onde mas me vou
(aqui não é noa-noa)
se ela chegar diga que me fui
para os bares que não fecham jamais

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia e cor: Fernanda Magalhães Ferrari / cinegrafia: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / edição de som e montagem: Gregório Camilo / leitura: Ricardo Domeneck)


9: Nós, gagos de babel, bab amos versos, jorge de lima (jul, 2020), 2’28”, leitura de Djami Sezostre:

NÓS, GAGOS DE BABEL, BAB AMOS VERSOS, JORGE DE LIMA

nós, gagos de babel, bab amos versos
sós, gagos de babel, babamos versos
nós, gags o de babel, babamos versos
sós, gagos de babel, babamos versos
nós, gagos de bel ba, babamos versos
só sâ, gagos de babel, babamos versos
nós, gagos de baabel, babamos versos
sós, gos ga de babel, babamos versos
nós, gagos dde babel, babamos versos
ssós, gagos de babel, babamos versos
nnós, gagos de babel, babamos versos
sós, gagos de babel, babamos versóss
nós, gagos de babel, gabamos ver sos
sós, magos de babel, baga mos versos
nós, gagos de babel, babamos versos, jorge de lima
sós e nós, gagos de babel, babamos, versos

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / edição de som e montagem: Gregório Camilo / leitura: Djami Sezostre)


10: Um poema cresce o outro (jul, 2020), 4’00”, leitura de Patrícia Lino:

UM POEMA CRESCE O OUTRO
(alphonsus de guimaraens filho e mauro mota)

queres dizer,
na parede da sala,
queres gritar,
essa porta de vidro,
boca sem boca,
ou somente a parede
voz dissipada,
e essa porta fingida?
queres que eu te ouça,
diante dela fica
queres que abrigue
o duplo cara a cara.
teu sufocado,
torna-se, ao mesmo tempo,
duro lamento
prisioneiro e testemunha
que a noite traz,
dessa prisão perpétua,
que a vida traz,
desse exílio no espelho
que a morte traz,
irônico, liberto
queres, e hesito,
de não ser o que era.
queres, e fico
quem vai ao próprio encontro
diante da porta
de cada vez é outro
sempre fechada,
no cristal da boêmia
diante da porta,
e na moldura de ouro.
rondando a vida,
é a autocompanhia
rondando a noite,
nessa peça da casa,
rondando a morte,
exígua, todavia,
sem nada ter
mais que a incerteza
mais profunda e habitada.
do que me dizes,
quem bate do outro lado
do que me gritas
dessa porta? quem chama?
mesmo sem boca,
que substância mora
mesmo sem voz
no cristal e no estanho?

o espelho
queres

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia e cor: Fernanda Magalhães Ferrari / câmera, áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Patrícia Lino)


11: Ainda escreverei uma biblioteca (ago, 2020), 2’39”, leitura de Sergio Maciel:

AINDA ESCREVEREI UMA ENCICLOPÉDIA

para gregor sebba, professor de economia e estatística
visitado por paulo mendes campos na manchete em 12.10.1968
a morte espancou as duas mulheres que atenderam o inominado ser
e houve um conflito de ritmo e linguagem coloquial
quando rainer maria rilke ajudou a lavar o cadáver desconhecido
naquele ambiente repassado de solidão e tristeza.
assim se fez o desejado impacto poético
na velha pensão de madeira à margem do caminho.
entrevistada, a mãezinha de glauber rocha afirmou:
não tenho medo de publicar isso no jornal:
meu filho morreu de brasil.
assim se fez o desejado impacto informativo
neste país desgastado, entorpecido pela indiferença rasteira
e ninho da mais sórdida corrupção neonazistinha.
enquanto isso, o estouvado e incompetente cineasta sérgio Rezende
joga figurinhas no bafo em cima do muro interesseiro
querendo tirar partido fácil a favor e contrariamente posicionado.
assim se fez o desejado impacto autopromocionista
inclusive às custas de euclides da cunha
que chegou a canudos com o conflito já terminado.

como se a monstruosidade reagisse (soubesse escrever):
sou a favor das noites estreladas
e admiro o personagem vincent van gogh
mas não comungo suas ideias.

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Sergio Maciel)

12: Curta-metragem (ago, 2020), 1’58”, leitura de Rodrigo Tadeu Gonçalves:

CURTA-METRAGEM

ele era o irmão da solidão
(nasceu e viveu num sonho meu)
conquanto corajoso e independente nunca foi visto realmente
esbordoando nos saloons ou atocaiado pela madrugada
na doma de potros xucros ou virando mesas de pano verde
num estouro de boiada ou atirando em bandidos na estrada
rente à árvore dos enforcados ou a galope nos corcéis
embora houvesse tentado ser
um pouco amado nos bordéis
e não aos olhos alheios duelou para valer
sempre contra si mesmo
até sacar ligeiro
(primeiro e por derradeiro)
deixou mínimas lembranças que o vento varreu
além de algumas anotações escritas na epiderme
(crescendo e amargando num sonho seu)
e uma desbotada fotografia onde ele aparece
tomando coca-cola atrás de um copo de uísque
(¿quem acredita? crer às vezes é o de menos)
pois mesmo a inscrição tumular ficou destruída
mas poderia dizer

aqui jaz o inonimado
esteve morto
muito antes de morrer

afinal o que eu sei de sua vida à margem
(tão sentida e fundamente ferida)
são as sombras legadas pelo último cowboy
nas sobras de um curta-metragem
carbonizado num sonho meu

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Rodrigo Tadeu Gonçalves)


13: Opus pus (set, 2020), 3’48”, leitura de Dirceu Villa:

OPUS PUS

cédula bancária de vinte milhões de marcos
1923 e os bancos amarrotados

1938: a alemanha podre
e seus (dos outros) mil milhões de marcos:
– miquerinos, quéfren e quéops estão no papo dessas lombrigas

1945: urge comprar os campos concentracionários
com aqueles mil milhões de marcos
e outras duas coisas excelentes: fazer criação de moscas e tomar no cu

cheirando repolho estragado se deslumbram:
– os porcarias, nem pagamos o que devemos e só saímos lucrando
em casa própria à vontade
é mentira sermos falidos espirituais

agora ¡vamos tomar todas as cervejas do mundo!
e passar o resto da vida arrotando

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Dirceu Villa / ator: Tom Camilo-Ferrari)


14: Água (jan. 2021), 2’22” leitura de Francesca Cricelli:

ÁGUA

os meus amigos no telhado de casa:
– suba aqui, sossélla, venha ver que água mais diferente.
fui pela escada móvel de madeira, lateral.
– dá medo –, acrescentaram.
eles haviam colhido um estranho líquido, passe a expressão
num enorme plástico claro, mais ou menos espesso, compacto.
o que cobre a minha máquina de escrever em tipos graúdos.
água crespa, selvagem, viva, amálgama, parada, folhuda.
peguei nela com a mão direita, de leve
um mínimo punhado devolvido na hora.
me lembrei de piotr kapitsa, da água pesada.
¿de onde caíra?
emocionado, eu a batizei de newtônia.
antes de voltar ao chão o transe terminara.

(produção: Catatau Filmes / direção: Fernanda Magalhães Ferrari e Gregório Camilo / fotografia: Fernanda Magalhães Ferrari / áudio e montagem: Gregório Camilo / leitura: Francesca Cricelli / “ator”: Gregório Camilo)


15: Não norarei amanhã (fev, 2021), 10’52”, leitura de Guilherme Gontijo Flores:

NÃO NORAREI AMANHÃ

i)
a voz que disse
no princípio era o verbo
transferiu-se do gênesis
e me espera no apocalipse

(minhas mãos vazias que o digam)
ii)
?você quer aprender a conjugar verbos?
então olhe fixamente as sombras
estas sombras dos meus olhos
e ouça as passadas que dei
nas calçadas das cidades
e veja as suas pedras
solidárias para a saudade
caminhando noite e dia e noite
sozinha

(minhas mãos vazias que o digam)

iii)
a gramática da vida
me ensinou a conjugação
de um verbo obsoleto
que tentei conjugar
em mais de um tempo
sem saber que ele flexiona bastante
mas é inconjugável no futuro
e inconquistável no presente

(minhas mãos vazias que o digam)

iv)
àquela época
eu clamava e exclamava
dançando na chuva
eu noro
eu norei
eu norava
eu noraria
eu norarei
eu norando
que eu nore
se eu norasse
para os lírios das praças
para as crianças dos becos
para os animais das nuvens
para os anjos das avenidas
para as almas nas vidraças
para as rosas dos semáforos
para os demônios dos parques
para os ceguinhos nos jardins
e a todos os deuses de costas

(minhas mãos vazias que o digam)

v)
norar é um verbo muito abundante
você pode afirmar norarei amanhã
ou que eleonorou por um instante
mas na verdade não recolhe quase nada
porque o seu estar é um estar ausente

(minhas mãos vazias que o digam)

vi)
norar é um verbo anômalo
na formação e na conjugação
sinonimiza restos de rostos
guias espirituais arrasados
sonhos de noites indormidas
plantações de ciprestes para os pré-suicidas
atrasados nas esquinas

(minhas mãos vazias que o digam)

vii)
norar é um verbo
sem álbum fotográfico
sem retratos na carteira
sem bilhetes cartas telegramas postais
memorandum de desencontros rememorados

(minhas mãos vazias que o digam)

viii)
norar é um verbo extraordinariamente
irregular
que rima fácil separações invencíveis
crepúsculos com eclipses lunares
epilepsias com maresias
elipses vocabulares
ciprestes dobrados pelo vento em agonia

(minhas mãos vazias que o digam)

ix)
o verbo norar é impessoal
(não comporta sujeito concebível
modernamente chamado sujeito zero)

(minhas mãos vazias que o digam)

x)
o verbo norar é onipessoal
porque tem todas as pessoas
tirante a primeira do singular tu noras ele nora
tirante a primeira do plural vós norais eles noram
nós noraremos (sem mim)

(minhas mãos vazias que o digam)

xi)
o verbo norar é opaco
não reflete a inclusão de sujeitos
eu-ela
operando em comprimentos de onda opostos

(minhas mãos vazias que o digam)

xii)
o verbo norar é memorizável
desde que você madrugue passes
jogos de cintura modos tempos flexões
e assim ficará no mínimo da minha altura

(minhas mãos vazias que o digam)

xiii)
o verbo norar é um berçário vazio
oxida criancinhas jamais nascidas

(minhas mãos vazias que o digam)

xiv)
o verbo norar é um exato incerto
o verbo norar é um transe desperto
o verbo norar é o meu coração aberto
o verbo norar é uma alunissagem perto
o verno norar é uma visagem no deserto

(minhas mãos vazias que o digam)

xv)
o verbo norar é um filme de cowboy
você começa sozinho
e no seu final você está no fim
sozinho

(minhas mãos vazias que o digam)

xvi)
o verbo norar é erótico
eu norei tão próximo da himensidade
eu norei tão próximo do imensurável

(minhas mãos vazias que o digam)

xvii)
o verbo norar é uma miragem
quando ela sumiu deixou a sua imagem
sem mim

(minhas mãos vazias que o digam)

xviii)
o verbo norar é uma ferida antiga
só se ela eleonorasse teria me cicatrizado

(minhas mãos vazias que o digam)

xix)
o verbo norar e o paraíso
mantém ligações insuspeitáveis
lá este poema causaria ataques de riso

(minhas mãos vazias que o digam)

xx)
o verbo norar é infernal
queima a sua alma e você nunca
nunca mais será o mesmo homem

(minhas mãos vazias que o digam)

xxi)
o verbo norar é reencarnacional
?por que ele meu deus e não outro?
a vida tem razões que a própria razão etc.

(minhas mãos vazias que o digam)

xxii)
o verbo norar é geograficamente localizável
e pode interligar pontos extremos
fareham e oconto
normam wells e edam
mount selinda e palembang
curitiba e assis chateaubriand

(minhas mãos vazias que o digam)

xxiii)
o verbo norar é de musicalidade enorme
tornando insuportavelmente audíveis
john conlee em busted
merle haggard em rainbow stew
emmylou harris em beneath still waters

(minhas mãos vazias que o digam)

xxiv)
o verbo norar é prismático
o verbo norar é epigramático
o verbo norar é enigmático

(minhas mãos vazias que o digam)

xxv)
o verbo norar é uma profecia
quando menino minha mãe morta me dizia
ninguém sabe o dia de amanhã

(minhas mãos vazias que o digam)

xxvi)
o verbo norar é um louco
a correr atrás das suas pernas
amputadas

(minhas mãos vazias que o digam)

xxvii)
daí procurei por mim
(ao sair procurando nora)
nos teatros e nos necrotérios
nos sacrários e nos lupanares
nos luminosos e nos calendários
nos achados e perdidos do metrô
nos martirológios e nos hinários
nas ciganas e nas leitoras de tarô
depois me pendurei nas paredes do bar ocidente
e voltei estropiado de noa-noa com estas mãos
com estas mãos
vazias

xxviii)
este é o último poema
em que noro e eleonoro
agora nem que ela nore
eu a eleonoraria
pois mesmo que nora
de abrupto eleonorasse
toparia com meus cotovelos de platina apodrecida
mirando e remirando estas mãos inutilmente cansadas
no fundo
mais fundo
de qualquer bar de esquina

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