O rancor não é um sentimento puro. O rancor não nasce como rancor. O rancor nasce como algum sentimento e quando ele dá errado vira rancor. O rancor é ódio de quem não matou, é amor de quem não engoliu. O rancor é a falha dos outros sentimentos. É a política do que deu errado. O rancor arranca até o senso de justiça. O rancor arranca.
Maria Giulia Pinheiro
“RãCô – Entranhas como atos políticos” é um projeto que interatua poesia falada, música experimental e performance. Foi idealizado por Maria Giulia Pinheiro e Marcus Groza, numa busca por responder artisticamente a certo “envenenamento psicológico”, nos termos de Maria Rita Kehl, acolhendo na criação alguns afetos mal quistos.
O álbum RãCô está disponível nas plataformas digitais articula canções, poesia falada e o arrancar de rancores.
Ficha Técnica:
Maria Giulia Pinheiro – voz e poemas
Rui Barossi – baixo acústico, tuba, voz e composição
Marco Antonio Machado – guitarra, voz e composição
Natacha Maurer – samplers, efeitos e composição
Luciana Cello – violoncello e voz
Marcus Groza – voz, poemas e composição
Produção musical – Rui Barossi
Produção Executiva e Design – Ana Gabriela Abraão
Assistência de produção – Luciana Cello
Luteria experimental – Cadoz Sanchez
Maria Giulia Pinheiro:
Criar o RãCô foi um processo longo de rir, antes de tudo, de nós, dos nossos rancores, das nossas desordens, das nossas violências e passivo-agressividades. No processo do riso, engasgamos com a moral do outro, daquilo que nós não conseguimos lidar. As feiuras dos mal-digeridos. Tenho medo do conforto, da certeza. Ainda mais agora, em que nossas sombras dançam desgovernadas nas posições do poder. Saber me assusta. Soa como condescendente aceitar o outro como errado e eu como detentora de qualquer aspiração a uma pureza moral. RãCô nasce da vontade de aceitar o desconforto, o incômodo, as nossas piores partes e a dúvida. Estranhar as entranhas como atos políticos na vontade de buscar a paixão, o pathos, o erro.
RãCô é uma experiência sinestésica de Beleza. Uma hiena raivosa que visa a convencer as carniças a se cozinharem sozinhas. Quando o corpo desaparece, a carne vira verbo e só nos resta o ruído. RãCô é também uma experiência de sedução. Ouça de olhos fechados.
Marco Antônio Machado:
Desde 2015, como compositor e cancionista, já tenho parceria com o Marcus Groza e, nesse ínterim, aprendemos muito sobre as confluências de forças entre as sonoridades e textualidades. Afinal, “é de atrito entre os pés e o chão que eu tiro a minha música, mas é do atrito de pés dançando”. No RãCô, a coisa foi elevada à décima potência. Os textos e vocalidade da Maria Giulia Pinheiro (Magiu), a contundência sonora da Natacha Maurer e a expressividade musical da Luciana Cello e do Rui Barossi deram forma a uma câmara de ecos para o porvir de sons inimagináveis, agora audíveis, é só escutar o álbum!
No meu processo criativo fizemos uma série de exercícios de “contaminação”, de modo a mover os músicos com os textos, os poetas com as paisagens sonoras etc. Então eu pedi para que cada colega enviasse uma melodia, cantarolando mesmo, livre para eu transformar em material. A Magiu gravou um áudio cantando uma melodia meio insana (ela depois contou que fez como que “desenhando sobre papel-manteiga”, gravou enquanto escutava nos fones uma canção) e eu fiquei horas transcrevendo aqui numa partitura! No final, usei mesmo as últimas três notinhas que ela cantou, e que deram origem ao tema melódico da canção “Ciúme ou Sífilis”, com texto da própria Maria Giulia Pinheiro. Por outro lado, na composição de “Poética” eu roubo materiais musicais da sonata de Waldstein, de Beethoven, com letra de um poema do Marcus.
Outro momento emocionante foi passar uma tarde quente em um apto com o Marcus e a Natacha “executando” o Totem do RãCô – escultura/instrumento desenvolvido por Cadós Sanchez – ora ficava encantado com a vivacidade visual, ora com os gestos agressivos que o objeto impunha, ora com os sons sinistros e inesperados…
Também foi muito legal gravar com o Rui em São Paulo, organizar as partituras, ensaiar com a Lu. Sobretudo, foi um alento no meio da pandemia ir para uma chácara no meio do nada e passar o dia gravando e tocando com os amigos.
Natacha Maurer:
O processo de criação das trilhas para o RãCõ foi surpreendente de vários modos. Fui convidada por Marcus Groza em 2019, porém o desenvolvimento do projeto se concentrou em 2020. Por conta da pandemia de COVID-19. Pela primeira vez nos vimos impossibilitados de compor e improvisar presencialmente, o que fomentou meu rancor de redes sociais e reuniões online! Não penso som e ruído de modo individual, por isso, no desenvolvimento das trilhas chamei Marcelo Muniz (com quem desenvolvo trabalhos de luteria experimental e práticas de improvisação e composição) para possibilitar trocas relacionadas a ruído e interações. Durante o processo, interagimos também a partir de áudios enviados por outros participantes do projeto, como Rui Barossi e Marco Antônio Machado. As trocas ocorriam em vias de mão dupla: ora nós enviávamos trilhas compostas a partir de instrumentos desenvolvidos por nós para Marco e para Rui, ora Rui e Marco nos enviaram composições nas quais trabalhamos posteriormente.
Marcus Groza:
Desde a ideia germinal que veio numa conversa com a Magiu em 2016, RãCô dialoga com um mal-estar que se encontra na macro e na micropolítica. Um infantilismo moral, onde nos vemos apartados da nossa “potência de agir”. Uma fermentação afetiva claramente herdeira de uma dominação paternalista-populista: as pessoas elegem diferentes figuras de salvadores e bodes expiatórios, sempre perpassado por uma aura miraculosa e tanto mais ineficaz quando miraculosa. É algo muito arraigado na formação como país, sabemos, mas a sensação é que desde 2016 isso vem explodindo na nossa cara de um modo absurdo, e o tempo lento em que vimos cozinhando o RãCô acho que é bem sintomático.
Quando digo explodir na cara penso no tíbico (também chamado kefir de água). Uma vez temperei fermentado desse bichinho com chá de hibisco. Eu sabia que não era recomendável deixar fermentando numa garrafa de vidro, mas pensei: “ah, não vou esquecer”. E como é óbvio: esqueci. Os cacos arremessados na explosão não causaram mais que um susto. O que chamou atenção foi o estouro não ter acontecido num começo de tarde, num horário mais quente do dia e de maior atividade dos tíbicos, mas na madrugada.
Acho que o rancor tem a ver com isso: algo que misturamos como uma poção, agrupando coisas as mais diversas, e esquecemos num canto fermentando. Só que chega uma hora aquilo vaza, eviscera, explode. Aqui mesmo ou lá na frente. Às vezes no colo de quem nada tinham a ver com o ranço-poção “original”. Rancor é um fermentado que se excedeu e não funciona mais como catalisador no metabolismo, como o lactobacilo num iogurte, é um azedume imprestável. Tomando isso como metáfora, eu diria que esse ranço está muito disseminado, de formas bem distintas, mas presente em todo o espectro político.
Pra mim RãCô é roxo e tateia de quatro em direção de transmudar veneno em veneno, porque não é síntese, não é coalizão.
Comento isso do fermentado porque diz não apenas sobre o nosso tema dos afetos amargos-turvos, por assim dizer. Mas também é algo que define um pouco o processo, pelo caráter emulsivo da proposta de aglomerar música/arte sonora e poesia falada. E a questão de criar durante a pandemia pesou a mão na levedura. Em encontros virtuais, semanalmente articulamos propostas de emulsão criativa, como gosto de chamar. Por exemplo, eu pegava uma composição feita pela Natacha e pelo Rui e tentava pensar o poema falado que poderia se encaixar com o afeto que a composição me trazia, ou um texto da Maria Giulia ia para o Marco Antônio musicar… Assim, surgiram as canções e peças sonoras com poesia falada que compõem o álbum. Nele está concentrado mais ou menos metade do material sonoro produzido. Teremos também dois videoartes a serem lançados agora no início de 2022, em que aparecem não apenas as composições presentes no álbum.
Acho que cabe comentar ainda que, além de textos meus e da Maria Giulia, são oralizados no álbum trechos de “Ódio Sagrado” do Cruz e Souza e “Desmaiar, atrever-se, ficar furioso”, do Lope de Vega.