Por Tanussi Cardoso*
‘Mínima lâmina”, do poeta Carlos André, me pegou de jeito. Estou maravilhado. Custei a acreditar ser obra de um estreante, devido a sua perfeição técnica e formal. Há muito não me emocionava tão positivamente, sentindo certo espanto prazeroso, com um livro de poemas. É, de fato, o melhor trabalho poético, de um autor iniciante, que li nos últimos tempos.
O poeta o dividiu em três partes (cronos, coisas e sara), sendo todo escrito em minúsculas, talvez para remeter ao diminutivo do título, “mínima”. Praticamente sem pontuação, dá ao leitor a chance de respirar onde melhor entender, tornando-o uma espécie de coautor. E sem titular as poesias, permite uma visão única e homogênea do livro, sobretudo, porque suas divisões não são estanques ou blindadas, de alguma maneira se conectando, interligando-se umas às outras, ainda que formalmente, oferecendo a oportunidade de o conjunto ser lido como um grande e único poema.
“Cronos” é o campo da memória, da família, dos amigos, dos personagens do bairro, do espaço afetivo da geografia dos locais, dos “caminhos”, e da história das pessoas. A poesia do tempo imorredouro.
“Coisas” destaca a essência delicada da matéria, os animais, as “coisas” do dia-a-dia, a simplicidade existente nos mínimos objetos, nas plantas, nas flores, nas sutilezas existentes na natureza. A poesia do cotidiano.
“Sara” é ambíguo: pode ser o nome de alguém ou remeter ao verbo “sarar”, no sentido de que precisamos nos curar, da alma, do físico, e nos transformar em seres melhores. Mas é, principalmente, o espaço do desejo, do sexo, da paixão, onde Sara, não mencionada em nenhum dos poemas, simboliza, sintetiza e faz significar o nome de todas as mulheres possíveis. A poesia do amor.
Há várias vozes em Carlos André, sendo uma das principais o sentido da memória e da família, num lirismo ecoando a Drummond: nada acontecia em nepomuceno \ mesmo o galo às quatro horas \ o leite mugindo na porta \ deus passeando nas carroças \ eram extensões fugazes \ da mesma calma (e)terna hora. Igualmente, há o flerte com Breton e o surrealismo; e, também, com a poesia independente ou marginal, dos anos 60-70.
Com poemas sintéticos, substantivos, onde o silêncio se insinua na construção da respiração dos versos, muitas vezes herméticos, mas repletos de emoção contida, “Mínima Lâmina” é pleno de máxima poesia. Como a música de Satie, repleta de vazios e ecos dissonantes: sou uma morte \ que a vida examina \ mima \ que mina dentro \ e um dia explode \ sou um monte de águas.
São versos estranhos, quebrados, sem a lógica racional a que estamos acostumados, cifrados, quase fechados em si mesmos, onde o leitor precisa tentar entender as entrelinhas, como no sensacional poema dedicado ao grande Roberto Piva: quando roberto piva morrer \ haverá uma inundação \ uma nova ausência \ a falência de uma multinacional \ um coro de elefantes n’áfrica \ ninguém mais morrerá nesse instante \ um exército enfim se renderá.
Outros, com efeitos excelentes: “oh \ noite \ qual o cetro em teu canto¿” Ou ainda: “o que escrevo \ pelas mãos de meu pai¿” E esse: “o pássaro voa é dentro da gente”.
E a simplicidade triste, bela e lírica de: queria ser um rei \ só pra mandar chamarem o mestre de capela \ e dizer \ componha uma música \ para a manhã de amanhã \ que estarei triste.
“Mínima Lâmina” é apaixonante, com grandes destaques formais, principalmente, a utilização da página, com o branco podendo significar o silêncio – o respirar do poema. O autor faz o espaço entre os versos ser tão importante quanto esses, ou melhor, ser uma continuidade intrínseca à própria poesia. Há que se ler, assim, esse vazio; há que se preencher esse vácuo. Essa respiração, digamos, fragmentada, dá novo sentido ou nega o sentido inicial, num jogo de mostra-e-esconde com o leitor. Como se o poema se mantivesse suspenso no ar, com suas palavras livres e soltas. Assim, seus versos podem soar como música, um jazz livre de sotaque, belo e amoroso: o amor, baby, \ é só um solo do coltrane \ o amor não é pedra \ acontece no teu corpo \ em tua ida para o inferno.
Também podem ser trágicos, já que o poeta “cegaria um pássaro” pela amada, como afirma nesse verso de lâmina nada mínima. Ou podem imaginar um ar surreal de dúvida amorosa e irônica: você veio do espelho \ do meio dum janeiro \ agarrada na chuva? \ você veio de tlön \ dum milharal \ de dentro da luva? \ você veio num porsche \ correndo de ti \ de dentro da gruta? \ você nunca veio?
Há deliciosos poemas metalinguísticos: sento para escrever o poema \ para que aconteça \ esta tarde de sol \ para o vinho do corpo \ para o pouco que inventa \ o poema \ uma adaga \ dentro de cada poema \ sento.
Em algum lugar, em algum mistério, os seus textos tocam fundo o emocional do leitor. Na verdade, sua lâmina afiada, aguda, cortante, faz de Carlos André um lírico assumido: “esperar-te \ como a porta abrindo \ nascesse uma flor”; ou: “emprego todo o meu talento \ neste evento \ te ver acordar”. E ainda ser enfático, no certeiro: viver é triste, amor: \ romance, \ estrada. viver é essa jogada \ da qual se espera silente \ o resultado. cilada.
E se para Carlos André, “livros são caminhos”, também para ele a poesia é o caminho do estranhamento, de ir ao encontro do mistério desconhecido que a palavra permite, do verso aparentemente desconexo; enfim, segue a direção essencial da beleza.
Em sua poesia, o grito se faz silêncio, sussurro, e toda retórica é inútil. Carlos André é um grande talento que já nasce pronto, com seus versos melancolicamente emotivos e humanos.
Tanussi Cardoso, poeta, jornalista, contista, crítico, tradutor e letrista.
Grato, Acrobata!
Uma honra ter escrito o texto para esse belo livro e para esse brilhante poeta. Que tenham o sucesso que merecem. Parabéns ao autor e à Revista Acrobata.