A matemágica de menos ainda, de Ana Elisa Ribeiro

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por Ana Paula Dacota, poeta e mestra em Estudos de Linguagens pelo POSLING/CEFET-MG.

Menos Ainda (2022) da poeta Ana Elisa Ribeiro foi lançado na livraria Jenipapo, em Belo Horizonte, no dia 22 de outubro de 2022, pela editora Impressões de Minas, conhecida por ser uma editora-gráfica ou um laboratório de edição. Fazendo uma análise numerológica da data, temos: 2+2+1+0+2+0+2+2=11. Daí que 1+1=2. Portanto sob os auspícios do número 2, temos que:  “O número 2 é, segundo as leis da numerologia, aquele que traz o equilíbrio a uma realidade dual e de contrastes. É o que está permanentemente em busca da harmonia, da concórdia e da paz e, por isso, está ligado à qualidade da diplomacia, da empatia, da paciência e de tudo o que é delicado.”

Quer acredite em numerologia ou não, estas características permeiam o trabalho poético que se apresenta neste volume encapado pela cor índigo-blue. Delicadeza e empatia resumem o que o leitor irá encontrar. O constante trabalho inovador na materialidade do objeto livro, marca maior dos editores Wallison Gontijo e Elza Silveira, proporciona aos leitores, neste projeto editorial, para o deleite dos sinestésicos, uma capa texturizada, toda sulcada por sinais de menos e soluções surpreendentes. As orelhas, além de abrigarem tradicionalmente os paratextos – um de apresentação na primeira orelha, um excerto do posfácio escrito por Patrícia Lavelle, poeta e professora da PUC-RJ, e o outro com a minibio da autora –  traz na segunda orelha um “bolso”, que eu chamaria de “orelha marsupial”, pois trata-se de uma dobra que carrega duas pequenas surpresas: a “ficha do hotel onde se hospeda a poeta” e a “carteira de trabalho” da poeta. Trata-se de duas dobraduras nas quais a autora brinca com seu status, assumindo-se como poeta, em sua profissão/ocupação e colocando os motivos de “afastamento do trabalho” de 2004 a 2018, com sarcasmo e ironia jorrando nas FAQ.

Da textura dos sinais de menos, à “orelha marsupial”, temos aqui uma capa cheia de referências, não só ao concretismo, cujo poeta maior, Augusto de Campos, colocaria em xeque se a materialidade do livro seria uma questão para a poesia ou se a poesia seria uma questão para a materialidade do livro como forma de arte, juntamente com os outros representantes da poesia concreta, mas nota-se também a subversão, como o sinal de menos invertido, > que acaba virando um símbolo de < maior – lembra de aprender isso no primário? A professora sempre ensinava que era a boca do jacaré aberta – além do que, na matemágica, a soma de menos com menos que dá mais. As dobraduras, também dois objetos anexos ao livro, lembra a experimentação como uma extensão do livro, um “puxadinho”, como manifesto em formato de cartaz, de protesto.

Sobre o miolo e os poemas: as escritoras-leitoras com certeza se encontram ou se encontrarão nos versos que reverberam os percalços no caminhar, na carreira de escritora, no se debater com a escrita; muitos poemas metalinguísticos sobre a sina de escrever, trabalhar, ensinar, publicar, disputar espaços, viver, sobreviver, morrer na praia, renascer. “Corrida de obstáculos”, p. 14, é um dos que mostram o esforço e a labuta: “Nestes caminhos cheios de agudezas / pontilhados com os espasmos / do meu esforço silenciado, / abri picadas / com as pontas das canetas”. Esse poema remete à luta de escrever e a cor da fonte, azul, remete à escrita com as canetas Bic, que provavelmente devem ter acompanhado a autora, assim como todos nós. Os leitores, independentemente de sexo ou orientação sexual, que a acompanham nas redes sociais (ou de outros carnavais!) entenderão os desafios velados ou não que Ana Elisa vem tratando em suas lives, em seus grupos de estudos, em seu trabalho como professora, acadêmica, sobretudo abrindo o caminho para discussões sobre o feminismo no meio literário. Está tudo aqui, poeticamente trabalhado com acuidade linguística aliado aos recursos de diagramação, que tornam a leitura muito confortável. Com humor e toques irônicos em “Coach da escritora moderna”, p. 24, ela dá seus “toques” para as escritoras serem bem-sucedidas.  Não satisfeita, ela retoma o tema na p. 61 com “Coach da escritora moderna (reloaded)”. Tapa na cara quando ela trata dos editores, logo ali, no início, nas páginas 10 e 11. O poema-quase-título, p. 44: “Afinal, menos ainda” mescla poesia e prosa, seria então “proesia” arremessando dardos em 8 estrofes, sendo que número 8 deitado, símbolo do infinito, renova o estoque de questões que nos abalam e nos impulsiona a nos rebelar usando a arte e a beleza como armas. Uma boa fonte (Source Serif) no papel Pólen Bold 90g garantem a confortável legibilidade enquanto se processa a leitura. Para quem trabalha a materialidade, essa fonte se adequa à proposta e ao conjunto, trazendo também uma contribuição sobre o porquê da escolha, e eu sou sempre muito grata quando no colofão vem esta informação nos livros, pois sou fascinada por fontes, e este é mais um assunto que corro a pesquisar. Portanto esse tipo, Source Serif, criado por Frank Grießhammer, foi inspirado nas formas de Pierre Simon Fournier, um tipógrafo do século XVIII cuja principal realização foi a de “criar um sistema de medição padronizado que revolucionaria para sempre a indústria da tipografia”. Logo, esta fonte pode até ter sido escolhida ao acaso – o que duvido – incorporando ao conjunto da obra essa marca de estar ligada à medição, logo, aos sinais matemáticos (ou matemágicos).

Com apenas duas belas e singelas ilustrações de Wallison Gontijo – que além de editor também é um artista visual – me agrada muito as mãos que modelam o barro na página 47, remetendo aos versos de Drummond: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo” – cujo aniversário de 120 anos celebramos este ano. Importante também fazer a conexão do título desta obra, menos ainda, comoutras obras, principalmente aque remete aos versos finais de “Poema-orelha”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro A vida passada a limpo: “e a poesia mais rica / é um sinal de menos”, de 1959, que segundo Júlio Castañon Guimarães, sofreu sucessivas reedições até ser — não se sabe bem o porquê — subtraído da obra drummondiana. Segue o poema:

Esta é a orelha do livro
por onde o poeta escuta
se dele falam mal
ou se o amam.
Uma orelha ou uma boca
sequiosa de palavras?
São oito livros velhos
e mais um livro novo
de um poeta inda mais velho
que a vida que viveu
e contudo o provoca
a viver sempre e nunca.
Oito livros que o tempo
empurra para longe
de mim
mais um livro sem tempo
em que o poeta se contempla
e se diz boa-tarde
(ensaio de boa-noite,
variante de bom-dia,
que tudo é o vasto dia
em seus compartimentos
nem sempre respiráveis
e todos habitados
enfim).
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos:
e a poesia mais rica
é um sinal de menos.

É interessante notar a presença do número 8 nestes versos drummondianos, as questões metalinguísticas, de ser poeta e de escrever, vivendo entre “o vivido e o inventado”, trazendo sombras da poesia portuguesa com pitadas de Fernando Pessoa, e cujo título, Poema-orelha, tratando da orelha do livro, as quais, neste menos ainda apresenta arquitetura tão singular. Ademais temos o mistério que envolve o poema que ao longo de sua história sofreu sucessivas reedições até “desaparecer” da obra publicada de CDA, parecendo cumprir uma profecia autodeterminada de subtrações consecutivas, já enunciada nos versos finais, até seu desaparecimento.

Outra obra contemporânea com a qual podemos estabelecer ligações é o livro Sinal de menos (1989), de Carlos Ávila, um dos expoentes da poesia concretista, publicado pela Tipografia de Ouro Preto, por Guilherme Mansur. Na poesia modernista, o “menos será mais”, assim como no concretismo. A escrita concisa de um poeta que escreve “menos” será como a estrela-guia na constelação do movimento da poesia concreta, intitulando, inclusive, um dos trabalhos de Augusto de Campos, Poetamenos, um dos pilares da revolução estético-poética instaurada pelo grupo Noigrandres de São Paulo. “O pobre contra o rico. O menos contra o mais” (CAMPOS, 2006, p. 226).

Talvez menos ainda seja a resposta de Ana ao painel concretista e às reverberações literárias que veem do solo e subsolo da poesia mineira, pois se escavarmos mais com certeza encontraremos ainda mais conexões. Quanto ao outro desenho, da página 67, fechando o volume, retratando a imagem de uma mulher, provavelmente a autora, cabelos ao vento, dentro de uma página, de mochila nas costas, miniaturizada, pode-se apreender que, de costas para o interlocutor, como que olhando para o porvir da escrita, sem se oferecer frontalmente, mãos no bolso, tem uma atitude rock and roll do tipo: “Não preciso provar mais nada pra ninguém”, representando a postura de uma autora que se assume como é, sem buscar validações externas, inspirando outras mulheres. menos ainda, de forma sensível, apresenta versos calcados no real, nesse real que é reciclado por meio da poesia (ou da proesia), algo que provém das vivências de Ana, tão verdadeiras, que nos chega cortando e rasgando os véus das meias-verdades ou das mentiras que às vezes contamos para nós mesmos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. A vida passada a limpo — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ÁVILA, Carlos. sinal de menos. Ouro Preto: Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1984.
Britannica – https://www.britannica.com/biography/Pierre-Simon-Fournier Acesso em 21/12/2022 às 13:56
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006.
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Os materiais do poema: isto às vezes é aquilo em CDA.
In: Escritos: revista da Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui
Barbosa, ano 1, n. 1, p. 173-222, 2007.
Vogue: https://www.vogue.pt/numerologia-o-que-dizem-os-numeros#:~:text=O%20n%C3%BAmero%202%20%C3%A9%2C%20segundo,tudo%20o%20que%20%C3%A9%20delicado. Acesso em: 21/12/2022 às 13:01
Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Source_Serif Acesso em 21/12/2022 às 13:45

Livro: menos ainda // Gênero: poesia
Autora: Ana Elisa Ribeiro
Editora: Impressões de Minas, 2022.


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