DO ATLÂNTICO – Como se faz pontes…
Criar caminhos de diálogos entre Brasil e África sempre esteve em pauta no cenário literário brasileiro. Seria perverso olvidar que os primeiros escritos produzidos por brasileiros /as tiveram a presença da África como parte inegável de nós mesmos. Todavia, a maneira como foi poetizado ou narrado o continente, o ethos populacional, o fluxo diaspórico e as heranças aqui deixadas sofreu intermitentes desvalorizações, uma vez que a historiografia literária que se consolidara renegou a segundo plano quaisquer produções que expressassem a formação do Brasil, evidenciando a presença, a fala e a escrita negras com sua altivez e bravura.
Isso não quer dizer que não houve reações. A presença de Luís Gama, Maria Firmina dos Reis, Lino Guedes, Cruz e Sousa e Lima Barreto, por exemplo, mesmo escrevendo sob condições cerceantes, foram imprescindíveis para demover a uniformidade elitista, branca e masculina que predominava na literatura brasileira.
Por outro aspecto, no período consolidado da literatura brasileira, inúmeras iniciativas se concretizaram de maneira alvissareira, contribuindo para que leitores africanos conhecessem a literatura brasileira e vice-versa. Podemos registrar como exemplo uma das iniciativas importantes de intercâmbio, trocas de cartas, de livros, enfim, de experiências literárias entre autores brasileiros e de países africanos de língua portuguesa. Salim Miguel[1], empenhado nesta tarefa, já revelava em suas páginas publicações de textos de autores africanos por volta das décadas 40 e 50.
Essa revista sobreviveu com zelo e artimanhas de resistência ao evidenciar autores africanos, em tempos sóbrios, marcados pelo obscurantismo de Salazar. Influenciou sobremaneira o fortalecimento do diálogo literário entre Brasil e Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, entre outros. O moçambicano Augusto dos Santos Abrandes, em 1952, mostra a satisfação de sua familiaridade com os escritos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Raul Bopp e Cecília Meireles (MIGUEL, 2005) e não se pode esquecer o quanto, na atualidade, persistem elos semeadores entre autores/as africanos /as e brasileiros/as.
Novas iniciativas surgiram de forma relevante, com mais fôlego nos domínios dos ensaios e artigos científicos no meio acadêmico. A junção de vozes forja um diálogo revigorante por meio de experiências individuais e coletivas de autores (as) atravessando o Atlântico e também o Índico.
Este empenho se realiza agora nesta Antologia Poética BRASIL – MOÇAMBIQUE, organizada por Marleide Lins de Albuquerque e Ernesto Moamba, com a curadoria – Brasil –assinada por Assunção Sousa e Elio Ferreira, com propósito de reestabelecer “o diálogo poético e cultural”, evidenciando a produção poética, tanto antiga quanto contemporânea dos dois países que se irmanam. Tais perspectivas, do ponto de vista das escolhas aqui efetuadas, sabemos ser passíveis de controvérsias e fragilidades. Essas se firmam, porém, sobre três pilares: 1 – Possibilidade do diálogo poético contemporâneo – vasto e profundo – entre autores e autoras do Brasil, na tentativa de evidenciar produções irradiadoras que expressam o trabalho consciencioso da palavra enquanto experiência estética; 2 – Produções que revelam diferenças de pontos de vista sobre o Brasil de ontem e de hoje, agregando as diversas formas de poetizá-lo, seja por meio do encanto, do tônus desafiante ou da teimosia da palavra que não se permite domar por dispositivo de censura ou quaisquer forma de intimidação; 3 – Vigor estético na interação com a palavra vida, a revelar o modus vivendi das nações Brasil e Moçambique. Por isso, vige reacender leituras de autores como Cruz e Souza, Lima Barreto, Mário de Andrade, Luís Gama, Solano Trindade, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Ruth Guimarães, Carlos de Assumpção e muitos/as outros/as, nossos/as mais velhos/as; conhecer e propagar as mais novas vozes da nossa literatura brasileira, precisamente a afro-brasileira, numa incessante desmedida da medida pronta, contrapondo-nos ao hegemônico no propagar da descolonização da escrita. Essas novas vozes poéticas contemporâneas rompem com as antigas formas cristalizadas do saber e do encarceramento da palavra.
Desse modo, esta Antologia, que agora chega a várias mãos e ultrapassa oceanos, faz parte da busca de redimensionar, forjar outras pontes cujas bases estão fincadas na palavra empenhada, na palavra construtora de signos de resistência, na palavra desobediente, indomável, crítica, que gira para desorganizar e provocar, construir outros mundos poéticos, na urgente necessidade de transmutar dores, tristezas, sofrimentos, irracionalidades políticas, estraçalhar a tentativa histórica do silenciamento e de imobilidade que cerceia brasileiros e brasileiras e juntarmo-nos na luta com a esperança de melhores tempos vindouros.
Assunção Sousa e Elio Ferreira, Curadoria – Brasil / Marleide Lins de Albuquerque, Organização – Brasil
[1] MIGUEL, Salim (org.). Cartas d’África e alguma poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
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DO ÍNDICO – Palavras que se irmanam…
Não é sempre que se tem o privilégio de escrever um texto ou uma nota descritiva e/ou literária sobre uma obra poética construída, literalmente, por autoras e autores renomados e contemporâneos que habitam o território em que a língua portuguesa predomina desde a sua descoberta, confesso. A sorte do adágio como navio marítimo atracou no litoral do meu Oceano Índico e invadiu a minha imaginação. Como é sabido, não é hábito entre os fazedores da palavra aceitar que um autor da minha tenra idade e que ainda caminha nos cais de ferro da puberdade das letras esteja a frente de um projecto de grandiosa relevância cultural/histórica.
Aliás, quando recebi o convite da editora Avant Gard Edições, representada por Marleide Lins, organizadora da parte referente ao Brasil, para juntos embarcarmos neste desafio, de unir cinquenta escritores desses dois países que irmanam e identificam linguisticamente, seja pela cultura, cor ou realidade da sua gente, a princípio, achei desafiador, pois não sabia ao certo quem convidar ou o que os organizadores têm normalmente feito para tornar o projecto um elo de interesse entre o leitor e os possíveis apreciadores, mas, como estava destinado, resolvi assumir a sentença, mesmo sabendo o quão difícil seria penetrar no interior de uma antologia originalmente inédita com textos, na sua maioria, expressivos sobre os valores culturais da nossa sociedade. A Antologia Poética Brasil – Moçambique, como descreve o próprio nome, trata-se de uma coletânea que une dois países separados geograficamente por oceanos e ligados pela cultura e língua, considerando que, há anos, existe uma relação de irmandade entre ambos. A iniciativa nasce para responder vários questionamentos ligados a cronologia literária e relação entre os escritores/as brasileiros/as e moçambicanos/as que aqui e hoje desfilam os seus riquíssimos textos, esculpidos de mãos marcadas de cicatrizes resultantes de muitas lutas ao longo da história secular.
Uma das passagens importantes a se destacar neste projecto, como organizador, é o processo selectivo dos intervenientes, que me foi bastante difícil de lidar, já que temos bons poetas e com qualidade invejável no enredo literário. Sabe-se que, num projecto desta dimensão, existem regras a serem respeitadas e com muito cuidado. Por isso, corre-se sempre o risco de deixar uns e viajar com alguns, não por desmerecer, mas para responder à demanda do regulamento. Outro ponto que merece ser observado é que nesta obra podemos encontrar e ler poetas de todas as gerações, sem ou com obras publicadas, de modo a mostrar o quão o processo de produção literária não estabelece fronteiras, afinal cada escritor/a tem a sua identidade e originalidade na sua escrita, o que nos leva a compreender o modo como no Brasil e em Moçambique se evoluiu no tocante à centralidade de textos e autores nos respectivos sistemas literários. Importará lembrarmos alguns dos momentos fundamentais em termos das respectivas histórias literárias e igualmente os condicionalismos que presidiram desde sempre a esse efeito selectivo. Tais pressupostos são de toda a ordem: cronológicos, temáticos, ideológicos, linguísticos, literários, entre outros.
De qualquer modo e, para concluir, podemos referir que parece evidente que a possibilidade de uma escrita literária em Moçambique, baseada numa das línguas nativas dos seus utentes seria, eventualmente, o procedimento natural a preferir, na medida em que congregaria o pensamento e o sentimento mais íntimo e profundo de africanidade, em conjugação com uma visão mais global dos seus autores/as, sobre a sociedade em que vivem e sobre a sua integração no mundo. Por esse e outros motivos, considero esta obra um tesouro para os nossos futuros e potenciais leitores. E, para não me alongar, quero endereçar os meus agradecimentos a Marleide Lins pela oportunidade e, igualmente, a todos os autores que acreditaram e aceitaram o convite para enriquecer a nossa tão esperada obra.
Ernesto Moamba (Filho D’Africa), Organização – Moçambique