Escutando o “Diário da Encruza” de Ricardo Aleixo

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Por Jorge Augusto*

Após ser finalista do prêmio Jabuti, com seu belíssimo “Extraquadro” (Impressões de Minas e Lira, 2021), o multiartista e intelectual, Ricardo Aleixo, emplaca em sequência outro livro de poemas poderoso. Trata-se do “Diário da Encruza” (Organismo/Lira, 2022), semifinalista do prêmio Oceanos 2023. A evocação da encruzilhada não é novidade na obra do poeta que desde “A Roda do mundo”, de 1996, publicado em parceria com Edmilson de Almeida Pereira, já havia investido no repertório textual negro de base africana, para compor os orikis que integram a obra.

Porém, é a primeira vez que a encruzilhada é a porta de entrada para um de seus livros. E dizemos isso não apenas em referência a palavra estampada na capa, mas, sobretudo, pela encruzilhada critico-teórica posta desde o título. De um lado o “Diário”, espaço estruturado de maneira linear, de começo e fim, amostra importante do modo como a cultura euro-ocidental organizou sua relação com o tempo; do outro a “encruza”, signo da multiplicidade espaço-temporal que constitui o fundamento epistêmico dos saberes tradicionais negro-africanos repostos no Brasil, designando, portanto, uma temporalidade múltipla e espiralar, conforme define Leda Maria Martins.

Nesse sentido, o diário é mais uma dessas engenharias materiais nas quais a cultura ocidental busca levar ao nível individual sua forma cultural do tempo, como são também, a agenda, o calendário de geladeira, o relógio de pulso etc.. Essa maquinaria não corresponde propriamente a formas de localizar o sujeito no tempo, apenas, mas de informá-lo e situá-lo em determinada cultura. É por isso que quando Aleixo submete a estrutura textual do diário ao funcionamento múltiplo da encruzilhada, não está simplesmente expondo duas experiências temporais diversas, mas está pondo em paralelo dois regimes epistêmicos distintos.

Os modos cotidianos de se inscrever no tempo, como o diário que anota o acontecido, e a agenda que registra o que se pretende fazer, são formas de individualizar a experiência ocidental do tempo. Essa constatação, óbvia e redundante, é trazida aqui para ilustrar o quanto esse conjunto de dispositivos que investem na dimensão individualizante da experiência temporal foram fundamentais para a própria criação da ideia de indivíduo/sujeito moderno, tal qual a conhecemos hoje. Isso implica dizer que a multiplicidade temporal da encruzilhada não pode ser reduzida a uma forma distinta deste mesmo indivíduo viver o tempo, antes é ela mesma uma forma de refundar a ideia de indivíduo. Por isso que no “Diário da encruza” esse sujeito aparece revirado, ele mesmo encruzilhado e múltiplo como no poema: ‘Pessoa-muitas’: “ê mundo/ me dê licença/ que eu vim aqui/ aprender/ a ser/ pessoa-céu /pessoa-ave/pessoa-oceano”, ou em ‘Somos’: “somos/um/quilombo/móvel/porque/dentro/do outro/somos”. Esse sujeito múltiplo é, então, efeito ontológico e ético da encruzilhada.

Desse modo, a palavra “diário” já aparece na capa do livro em ruinas, seu escombro semântico não tem força para continuar designando a mesma coisa. Não é o diário de uma pessoa; não obedece mais a função de registrar acontecimentos na lógica linear. Suprimida a sua função temporal resta ao diário sua dimensão espacial, e seu último sentido ordinário: caderno de anotações de coisas, fatos, acontecimentos importantes. Pois, não se anota tudo num diário, mas aquilo que se entende vital, aquilo que, entre tudo que ocorreu com a pessoa, é mais significativo. Mas como já dito, nesse diário não se grafa a experiência individual, então o que se grafa nele? A experiência negra na afrodiáspora.

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É esse um dos principais funcionamentos do ‘gênero diário’ na literatura negro-brasileira, eles não registram, nunca, apenas a experiência individual de um sujeito, mas a condição da vida de um povo a qual pertence aquele que fala, é assim em “Diário do hospício” de Lima Barreto, ou em “Diário de Bitita” de Carolina Maria de Jesus, e também nesse “Diário da Encruza” de Ricardo Aleixo, porém neste não sobra quase nada da forma diário, diluída e espremida, o que se anota em suas páginas é algo que se conta sobre a encruzilhada, mas como já dissemos, não se trata de uma história, talvez uma genealógia. Então, o que se grafa nela não são acontecimentos, mas formas da cultura negro-brasileira, postas em relação intensiva com o campo literário. Dito de outro modo, como normalmente é quando se trata de poesia, não é o que se diz o centro desse diário, mas como se diz. Não se trata, pois, de narrar a encruzilhada, mas de performar as múltiplas formas que ela se materializa, enquanto texto, na cultura nacional.

E como o “Diário da encruza” faz isso? Ele investe na reza, no samba, no oriki, ou seja, em gêneros textuais negros, para informar o campo literário sobre a experiência negra nesse país. É como se Ricardo Aleixo, dissesse a nós: “narrar para não morrer”, para nós negros, só é possível se narrarmos a partir do nosso lugar epistêmico, dizendo ao campo literário brasileiro, que a partir das noções de tempo, de sujeito, de espaço, de língua, que estruturam a cultura negra, não pretendemos rasurar apenas os gêneros tradicionais da literatura, mas o mundo que eles criam e ou sustentam.

Assim, podemos dizer, sem ressalva, que o postulado afropessimista, defendido por Frank B. Wilderson III,  sobre a necessidade do fim desse mundo tal como ele é, ou seja, sua destruição, começa pela quebra do monopólio sobre as formas de imaginá-lo, dito de outro modo, as formas textuais negras e indígenas precisam ocupar o campo literário, expandindo o conceito de ficção, de literário e de texto, e dessa maneira fornecendo bases para a destruição do mundo antinegro, ao mesmo tempo que traz novas bases para a fundação de outro em seu lugar. O “Diário da encruza” anuncia dessa maneira que narrar o mundo, representa-lo, pode até ser um atributo da palavra, mas sua fabulação, sua destruição e fundação é um atributo das formas.

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Nesse sentido podemos dizer que o “Diário da encruza” é um breve diário de formas textuais negras, essa afirmação é intensificada pelo fato dos três gêneros que protagonizam a aparição da cultura negra no livro, serem de realização ordinária e massiva na população brasileira: provérbio, reza e samba. Não há brasileiro branco ou preto que nunca tenha se deparado com formas textuais como: “De norte/ a sul/de leste/a oeste/quem me guia/e me protege/é o ferreiro/divino/é o guerreiro/celeste”; como também não tem mãe que nunca tenha repreendido e ensinado seu filho alguma coisa por meio de uma estrutura textual como essa: “só existe trilha/na floresta porque/nem toda semente/vira árvore”. Essa é uma das linhas de forças do livro de Ricardo Aleixo, as aparições desses textos são marcadas por sua dimensão diária, cotidiana, ordinária, são gêneros que constituem formas textuais comuns de nossa comunicação, demonstrando que na literatura nacional, não é possível excluir a presença negra, o que equivaleria excluir a si mesmo,  trata-se de recalcar, esconder uma parte de si, dissimular sua existência e impedi-la de aparecer.

Esse aspecto ganha maior relevância no livro por meio do diálogo com o samba. Ricardo Aleixo é musico, além de tantas outras atividades que desempenha no campo da arte, conhecido por seu diálogo intenso com a música experimental, neste “Diário” o poeta se volta para formas populares da canção, usando estruturas rítmicas e técnicas compositivas do samba. Dentre elas destacamos a presença de refrões, pequenas partes carregadas de musicalidade, que torna quase impossível ler o poema fora do ritmo da canção, como no citado “Tempo de viajar”, mas também em “Meu refúgio por enquanto”, quando o poeta usa concomitantemente a repetição e o refrão parar produzir um efeito característico do samba, que Sodré chamou de “resposta social”, a saber: o sambista compunha apenas a primeira parte da letra, deixando a segunda para ser completada pelo público, como em “Toda vez que eu chego em casa a barata da vizinha tá na minha cama/diz aí leitor o que cê vai fazer”.

Acontece assim no poema: “eu vim de lá/ eu vim de lá/eu vim de lá/de lá pra cá”, a referência intertextual, com a canção de Dona Ivone Lara, guarda uma engenharia sofisticada. Se é verdade que o poema perde a dimensão de improviso, isso também ocorreu com boa parte dos sambas, graças a transformações que o mercado fonográfico impingiu aos compositores, como aponta o mesmo Muniz Sodré em “Samba o dono do corpo”. A complementariedade e o improviso são substituídos por uma interação controlada, pois a música precisava ser comercializada como um produto acabado. Mas há nesse poema de Aleixo uma pegadinha, o complemento não aleatório vai impor ao leitor um jogo de pertencimento, à medida que ele completa automaticamente “pequenininho/alguém me avisou/ pra pisar nesse chão devagarinho”, estabelece uma proximidade, um reconhecimento não da canção e sua letra, mas do universo cultural negro brasileiro, do samba e tantas de suas demais expressões, há exposição de um vínculo semiótico entre a cultura negra e a literatura brasileira. É como se o autor dissesse ao seu leitor desavisado, “tá vendo que você sabe do que eu estou falando”, e leitor, certamente, branco é aqui metonímia do campo crítico da literatura brasileira, que deve por sua vez ouvir: “tá vendo que isso aqui te constitui inalienavelmente, e você não pode continuar fingindo que não conhece”?

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A música atravessa o livro em várias outras dimensões, seja nomeando poemas como em “Samba de Rizoma”, seja em homenagens como a feita à Itamar Assumpção em “o que eu escuto”. Mas é na estrutura compositiva do poema que a presença do samba e da música integram de maneira decisiva esse “Diário da Encruza”, como em “tarata ratata”, texto que homenageia Clementina de Jesus e Carolina Maria. Este é o último poema do livro, e não à toa ele põe em diálogo muito do que estamos aqui falando, duas mulheres negras referências em suas linguagens artísticas, o samba e a literatura, ambas investindo no repertório cultural negro como caminho de suas produções estéticas. O “Diário da encruza” parece querer terminar onde tudo recomeça, no samba, do recôncavo e do morro, da Bahia e do Rio, um gesto de retomada e de refundação? quem sabe num futuro próximo, o “Diário da encruza” seja também um dos diários de uma nação que se refunda no refrão de um samba, na lição de um provérbio, ou na multiplicidade do oriki. Oxalá que sim!  

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Jorge Augustopoeta e professor, soteropolitano do bairro da Liberdade. É doutor em literatura e Cultura – UFBA. Docente da UESB e do Instituto Federal Baiano, compõe a direção do Neabi/Itb. Coordena os grupos de pesquisa Perifa/ IF Baiano e Rasuras/UFBA. Publicou, “O mapa de casa”, Círculo de poema e Editora Fósforo/2023 e organizou o livro “Contemporaneidades Periféricas”, Segundo Selo/2018. Edita a revista de literatura brasileira contemporânea: organismo.

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