Diário/O dominó preto de Florbela Espanca

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por Gabriela Silva

Publicado em 2019, Diário/O dominó preto de Florbela Espanca, pelas Edições Esgotadas de Lisboa, com o apoio do CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias/ Gabinete de Estudos de Gênero, compõe as Obras Completas da poeta, com organização e fixação crítica dos textos de Fabio Mario da Silva.

O estudioso em “Critérios de Edição e Fixação dos Textos”, apresenta-nos aspectos importantes para a leitura do diário e dos contos. O texto diarístico, “segue uma linha temporal de 11 de janeiro a 2 de dezembr de 1930” (SILVA,2019, p. 11), terminando assim, próximo a data de falecimento de Florbela.

O diário encontrado pelo terceiro marido de Florbela, Mário Lage, foi publicado em 1981 com prefácio de Natália Correia, sob o título de Diário do último ano, seguido de um poema sem título. De acordo com Fabio Mario, nesta edição de 2019, foram realizadadas atualizações da ortografia, acentuação e pontuação, correções e paginação.

Quanto aos contos de O dominó preto, já na introdução, tomamos conhecimento de que nos últimos tempos de vida, depois da publicação de Charneca em Flor, Florbela havia se dedicado a escrita desta obra, porém, devido a morte de Apeles Espanca, em 1927, desistiu do projeto. Quando foram publicados, em 1982, os escritos já estavam em domínio público.

Em “A construção da persona no Diário de Florbela”, Isa Margarida Vitória Severino apresenta-nos possíveis percepções da construção do eu e das interlocuções com outros sujeitos, numa tentativa de construção identitária. Existem considerações poéticas na construção desse “eu”, de Florbela, que constituem auto-figurações, a fusão com outros sujeitos (retratos, aproximações filosóficas, imagens poéticas e reverberações da escrita da poesia), numa descoberta de si mesma e do mundo, como no mito da caverna, de Platão. A pesquisadora lembra-nos que Natália Correia se apoia nos ecos da obra poética de Florbela, evicenciando, muitas vezes, um caráter supérfluo. Aponta-nos Isa Severino:

A relação do eu lírico com o «outro» assim como a temática da dispersão e o desdobramento da personalidade inserem Florbela numa curiosa proximidade com a estética modernista e, de modo mais particular, com Mário de Sá-Carneiro, revelando ser uma escritora em linha com a Modernidade, como assinalou Nuno Júdice. (2019, p. 44)

Portanto, a partir das palavras de Isa, podemos perceber que o diário mostra ao leitor nuances da personalidade da poeta, a partir de acontecimentos cotidianos, das suas publicações, escritas e visões de mundo. Recorda, ainda, Maria Lúcia Dal Farra que reconhece ter Florbela Espanca indo além do questionamento da condição feminina no seu momento histórico, mostrando na sua escrita as fragilidades enquanto traços específicos de uma identidade orgulhosa de si.  Esse “eu diarístico” oscila entre um eu poderoso, “magnânimo,  ciente das suas potencialidades” (SEVERINO, 2019, p. 48), para um eu herói e um eu voltado para a mesquinhez, ou seja, muito mais humano.

De acordo com Isa,

No decorrer das escassas páginas que enformam o seu Diário, Florbela revela um agudizado sentimento narcísico, reiterado pelo seu desmedido orgulho: «tenho orgulho, um incomensurável orgulho em mim» (6 de setembro). Faculta-nos um retrato megalómano onde este «eu» heroicizado se exulta, como se pode observar pelo deítico «eu» grafado em carateres maiúsculos, demarcando na escrita e na linguagem a sua individualidade, «Eu sou Eu» (19 de fevereiro), ao mesmo tempo em que tal especificidade lhe garante o estatuto de uma eterna isolada. (SEVERINO, 2019, p. 48)

Tudo o que está no diário se ocupa de um sentimento diferente de Florbela:. “A escrita autobiográfica, como se sabe, almeja a interpretação dos acontecimentos, a resposta para uma procura que se centra no conhecimento do «eu».”(2019, p. 49). A infelicidade da ausência dos filhos, o sentimento melancólico e saudodista, a escrita poética, o amor suas sombras e encantos, comoções do cotidiano com a morte, a solidão, as paisagens e os sonhos são dispersados pelos fragmentos, numa busca pelo sentido da vida e o seu alcance na poesia:

 Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir – todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.

Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros… Talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto. (ESPANCA, 2019, p. 57)

Permeado de frases poéticas, muitas vezes aforísticas que complementam a aura filosófica dos fragmentos, o diário de Florbela é um texto no qual se delineia a alma da poeta, rastros de desejo e de ansiedade, espaço de auto-ficção e conhecimento: “Se os outros me não conhecem, eu conheço-me, e tenho orgulho, um incomensurável orgulho em mim.” (ESPANCA, 2019, p. 68).

Quanto aos contos de O dominó preto, Fabio Mario da Silva, em “Algumas facetas femininas. Uma leitura dos contos de O dominó preto, de Florbela Espanca”, aponta para a leitura das representações e figurações do feminino que se apresentam nos contos florbelianos. Desde As máscaras do destino, de acordo com o pesquisador, é notável a necessidade de dar protagonismo às mulheres, o que Florbela faz ao desenvolver diferentes tipos de personagens femininas. Através de peculiaridades dos universos masculino e feminino, a autora explora nuances de comportamento, situações clichês, relações sociais e aspectos que compõem o cenário da época ambientada pela autora.

São evidentes características de um texto simbolista, em que os sentidos enunciam movimentos e ambientes. As descrições dos lugares, dos movimentos das personagens, dos costumes e das questões de gênero, associam-se às pulsões de amor e morte, latentes em cada narrativa e nas reviravoltas sofridas por essas personagens. Assim como na poesia, há linhas determinantes de emoções, sensações e sentimentos: o medo da morte e da solidão, a aura finissecular, a melancolia, as paixões inesperadas e intensas, o desejo e a ânsia pela aventura amorosa estão em todos os contos.

Diz-nos Fabio Mario:

Em suma, apesar de Florbela insistir em algumas representações do que seriam os comportamentos do homem e da mulher na sociedade, não os torna fixos, visto que essa padronização dos estereótipos de género, visa, cremos, indiretamente ou não, demonstrar a complexidade das relações sociais entre os enamorados, distinguindo até, como vimos, as atitudes referentes a espaços campesinos ou citadinos. (SILVA, 2019, p. 8)

Revisitando importantes críticos da obra de Florbela, Fabio aponta-nos para conclusões e ideias acerca das representações, interpretações, rupturas e complexidades sociais construídas nos contos.

Em “Mulher de Perdição” temos a história de João Eduardo e as mulheres que constituem a sua história, representações de mistério, de sentimentos controversos e também complementares, desejo e curiosidade que acabam por ser os alicerces da aura de mistério e encantamento em torno de Reine Drupré. Misturam-se na fábula, as características de Helena, a jovem com quem José Eduardo deve se casar e a figura da bailarina e atriz francesa, com ares de Salomé, personagem tão particularmente associada ao simbolismo e ao decadentismo, delineando nudez, sedução e morte.

A figura da poetisa, num espectro autobiográfico, está em “À margem de um soneto”. Incide sobre a personagem protagonista a visão da poetisa como um indivíduo de mistério e portador do segredo da criação. Irmã da dor e da melancolia, metáfora que encontramos com grande fluidez na poesia florbeliana, aparece neste conto, nas descrições do fazer poético da personagem e na forma como o marido a define: “– Como você é dolorosa! Dir-lhe-ia bem o nome de irmãzinhadas Dores. Nos seus olhos parece caber toda a tristeza deste mundo, a sua boca é já um belo verso doloroso e a sua voz é aprópria dor em música…”(ESPANCA, 2019, p. 128). Multiplicam-se mulheres de personalidades diferentes, personagens de outras narrativas, a textura das pétalas de camélias, a musicalidade que permeia os ambientes e o aroma de uma constante primavera, cenário do conto. Há um tanto de Salomé, de amantes sedutoras e também de alma sofrida, desencontros e temores que rondam as almas, tudo que acaba por formar a aura da própria poetisa.

“O dominó preto”, conto que dá nome ao conjunto de narrativas, é a história de um homem apaixonado, Joaquim, por uma mulher misteirosa, Maria, que lhe provoca os mais fortes desejos. Segue-a nas ruas, admira-lhe na distância, numa impossibilidade regida por diferenças quanto ao amor e a vida social. O encontro marcardo, a não presença da amada, indicam o caminho para o suicídio numa noite de carnaval e espera.

A narrativa de “Amor de outrora” conta a história de Cristina de Morais e Manuel de Almeida, namorados na juventude e que se encontram muitos anos depois. Manuel já é um médico, casado e pai de um filho, Tonecas. O reencontro acaba por mostrar que ainda existia um amor vivo e repleto de proximidades e semelhanças de alma – recordações, sentimentos e sensações voltam a se manisfestar. Tudo, no entanto, acaba por desmanchar-se como o papel na água.

Em “O crime do pinhal do cego” é narrada a história do assassinato de Francisco e a descoberta de Rosa sobre a vida paralela do marido. É nas palavras de Rita que ela conhece a verdade e acaba por saber que o falecido marido tinha um filho. Também “O regresso do filho”, sabemos sobre o destino de Justino, filho de Gabriel, considerado morto em terras de do interior. Anos mais tarde, retorna, vestido com trapos, um andarilho perdido nas dores e na memória dos tempos difíceis. O pai envelhecido esperava o retorno do filho, visto que pensava que não tivesse morto, mas acabou por sucumbir pela espera e amargura, não o reconhecendo quando ele regressa à casa.

O conjunto de textos da obra mostra-nos faces diversas de Florbela Espanca: os fragmentos do diário mostram-nos a essência da personalidade da poetisa, reconstituindo nas próprias palavras de Florbela as vivências, dores e sentimentos. Os contos, por sua vez, mostram a vertente narrativa da produção florbeliana, reiterando a qualidade temática, a representação dos medos e sentimentos que atormentam a própria autora como o desamor, a solidão, o fazer poético, o medo do abandono e a morte. Em alguns dos contos são perceptíveis aspectos do simbolismo e do decadentismo, expressos através de figurações e analogias diversas. Diário/ O dominó preto de Florbela Espanca, é, portanto, um importante e singular material para a leitura e compreensão da obra de Florbela, um dos mais importantes nomes femininos da Literatura Portuguesa do século XX e que ainda hoje é objeto de atenção e pesquisa por inúmeros estudiosos tanto portugueses e brasileiros, como de outras nacionalidades.

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