por Luís Inácio Oliveira, poeta e autor de forasteiro rastro (7Letras, 2012)
Desde que o poeta perdeu sua aura no meio do trânsito e passou a perambular como um simples mortal pelas ruas da cidade, a poesia se aproximou com tal intimidade das coisas mais prosaicas – e das “pessoas nos abrigos nos ônibus e nos carros” – que precisou inventar formas capazes de abrigar o que de desconcertante e revelador pode haver no mais prosaico. O prosaico, que até então era o contrário do poético, recebeu o influxo metamorfoseador da poesia e abriu fronteiras e margens.
Desde que Walt Whitman liberou o verso para atender às pulsações do corpo e acolher “os mistérios do mundo”, o verbo se fez carne e habitou entre os homens e mulheres de incontáveis gerações que atravessavam todo dia a barca do Brooklyn. O verso estava livre para se deter nas pequenas histórias desses homens e mulheres do breve e louco século XX. Estava aberto o caminho para as investidas poéticas em tom de uivo de Allen Ginsberg, quase uma espécie de poesia como prosa liberta que se dedicava a grafar as histórias subterrâneas não contadas do sonho norte-americano. Um caminho que conheceu encruzilhadas e bifurcações, pois dos mesmos restos fracassados do sonho americano o poeta-contista Raymond Carver recolheu a sua poesia de contador de histórias tão miúdas quanto alumbradas.
Não é por acaso que Whitman, Ginsberg e Carver despontem vez por outra nesse novo livro de poemas de Fernando Abreu. São quase seus companheiros de viagem. Aliás, uma das epígrafes do livro é de Carver e a afinidade dos dois poetas é revelada ao final num belo polaroide poético. FAbreu retoma, reinventa, desdobra o caminho aberto. São flagrantes atravessados pela tensão entre poesia e prosa que o poeta arranca do mais comezinho desses dias – esses são os dias que ele nos faz ver sob outra luz, com sua poesia decididamente não-pura, misturada ao prosaico, ora afetuosa, ora implacável com os “estranhos presentes” que o tempo presente lhe oferece.
O percurso poético de FAbreu não deixa de sugerir um deslocamento por esses caminhos. Dos poemas curtos do seu Relatos do escambau, rápidos e certeiros como uma piada ou um nocaute, ele se lançou de peito aberto numa aventura de fôlego pelo poema mais longo que, com seu tom reflexivo mas inquieto, beira, algumas vezes, a prosa poética, a mesma poesia atritada à prosa da linhagem de seus companheiros Whitman, Ginsberg e Carver. Mas FAbreu injeta nas veias da sua poesia enamorada pela prosa uma energia ágil de capoeirista – e a história desse sangue ele conta num dos poemas do livro.
Pois me parece que nesse seu Esses são os dias o poema se aventura mais arrojado ainda pelas fronteiras e margens já abertas ou ainda inexploradas. A ousadia do poeta reside não só no ímpeto de confrontar-se consigo mesmo e com o seu tempo, mas de fazê-lo pela mobilização poética do mais prosaico desses dias que também são os nossos. O poeta talvez queira converter-se também numa espécie de contador de histórias ao mesmo tempo humilde e ousado e relatar ainda os escambaus e os escombros do tempo presente mas não menos as belas e estranhas dissonâncias que nele irrompem. É uma poesia que tem em mira precisamente essas dissonâncias e não se conforma enquanto não as acolhe em sua forma e em seu ritmo. Como fazer isso, ela sabe bem – a ponta de ironia não dispensa a delicadeza e o fio de melancolia não se perde do riso e da irresignação.
O prosaico que desperta a atenção do poeta e ao qual ele quer dar voz na sua dissonância é o avesso do sucesso do velho galã que vende agora água de coco e sanduíche natural na praia. Ou então o prosaico se encarna nas “passantes nada baudelarianas”, “mulheres maduras” que trazem “o pássaro da juventude dentro delas engaiolado (…) mas vivo” – um dos momentos delicados e, no entanto, de grande intensidade lírica, quando o olhar cúmplice do poeta pousa sobre essas mulheres e nos impede de perdê-las de vista, como numa “clareira” que se abre “entre o tédio e o pânico”.
Mesmo o mais banal (ou o mais boçal) dos nossos tempos não passa despercebido a esse olhar poético. Um olhar que pode ser também delicadamente demolidor. Sobretudo quando ele rasga a facilidade dos slogans, comandos e avatares que proliferam à nossa volta. Quando penetra no deserto insaciável dos haters ou no lamento dos poetas de Miami – e o riso do poeta se faz ouvir lá no fundo com uma sobriedade fatal. A mesma sobriedade que desmonta o corpo (e a alma) neoliberal da executiva, “para quem a solidez a textura e a luz do corpo são parte de um investimento”.
Esse triste império da antiutopia é o exato oposto da poesia. É o que bradam as “narrativas poéticas” de FAbreu, os seus mais novos relatos do escambau. Sem a pretensão de serem lidos como manifestos, esses poemas insinuam, com sua desconcertante sobriedade prosaica, uma forma frágil e explosiva de resistência que a poesia pratica. Pois o poeta nunca deixou de “sonhar com três luas/ nascendo em um final de tarde”. Ele sempre espera “por esse momento de pasmo e maravilha”. Eis a sua luta.