Garatujas Selvagens: a Poesia Vigorosa de José Inácio Vieira de Melo

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Raquel Naveira*

Acompanho o trabalho do poeta e jornalista José Inácio Vieira de Melo (1968) há muitos anos. Ele, alagoano, radicado na Bahia; eu, em terras de Mato Grosso do Sul. Naturezas agreste e de cerrado nos cercam. Nosso ponto de encontro: São Paulo, a urbe; Casa das Rosas e saraus poéticos. E sempre a amizade e a admiração alimentadas por trocas de cartas e de livros e, hoje, pelas mídias sociais. Tive o prazer de ser convidada para o seu programa no Instagram “Poesia na Boca da Noite”. Visito constantemente esse sítio virtual, onde ele está sempre à vontade, com seu chapéu branco, cantarolando músicas, conversando, recolhendo versos de poetas espalhados por todo o Brasil. 

Enviou-me seu novo livro de poemas Garatujas Selvagens (Cajazeiras/PB: Arribaçã). Capa de cores fortes prenunciando o tom vigoroso de José Inácio. Belo projeto gráfico: poemas agrupados em partes temáticas, títulos e epígrafes sugestivas em branco sobre folhas negras.

“Rabiscos Rupestres” traz a figura do poeta artífice, que lida com minérios, joias, diamantes, de onde “brotam versos vivos, sorrisos suados, lágrimas talhadas.” O poeta que rabisca poesia nas pedras e tem sonhos surreais (“Há um tigre dentro do relógio.”). Que bebe, lê e ouve o canto dos livros nas águas da linguagem, em busca de autoconhecimento. Declara: “Sou o estrangeiro sem bússola.”

Em “Lonjuras”, percebe o cheiro da Primavera na caatinga, o movimento dos bosques, a Terra girando. Acostumado ao sertão, sabe olhar ao longe, avaliar lonjuras.

“Cartografia do Medo” é, na verdade, enfrentamento corajoso do medo. Desabafa: “Se eu for fazer um mapa do medo/ meu cavalo nunca mais vai sair do lugar, Por isso vivo no desembesto.” Típico de José Inácio: cavalgar em corcéis negros como um centauro, por paragens dispersas.

“Rota Infinita” é puro Amor. O amor cuja rota é infinita; que, quando chega, só nos resta segui-lo. Fascinante como mil abelhas e seus voos elétricos.

“Retratos” traz poemas dedicados a amigos poetas, músicos, escritores, como Rubens Jardim, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Raimundo Fagner, Heitor Villa-Lobos e outros. São instantâneos de generosidade, de quem se alegra com a companhia de almas afins. Aliás, “Instantâneos” é a parte que se segue: poemas curtos, concisos de três versos, sobre o tempo, os raios, os silêncios, as noites, as trilhas abertas no universo.

Comovente essa “Panorâmica da Mães”. Mãe: casa, raiz, útero. José Inácio afirma: “As mães são as mais loucas coisas: criam os filhos, cercando-os.” Mães alteradas, cheias de intuições e sétimos sentidos. A mãe-vaca cuja sina é “dar de mamar e dar de mamar.” Segue-se a homenagem à sua mãe, Inácia, uma “menina de 70 anos”, que relembra a infância distante, com os dramas que a feriram como espadas de dor.

O poeta conclui com os “Autorretratos”. Como Frida Khalo pintava a si mesma, entre os cactos do México, pressente a finitude e confessa: “Meu retrato três por quatro tem o traço do passado”; “um relato tão presente”; “o futuro quando muito rima com rugas”.

Na travessia da vida, o poeta diz à brisa: “traz tua água aos meus lábios, molha meu corpo com tua fresquidão, traz para mim toda felicidade possível”. A felicidade possível: sentir-se só e preencher a solidão com poesia.

José Inácio Vieira de Melo: poeta de altíssima voltagem, impetuoso, que escreve garatujas selvagens pelas rochas. Ele nos entrega seus desenhos rupestres para que descubramos segredos, fissuras, derramamentos de sangue, marcas da vida e do tempo.


Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária e Mestre em Comunicação e Letras. Autora de vários livros de poemas, ensaios, romances e infanto-juvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Letras do Brasil, à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.

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