Por Paulo Caetano, professor da Unimontes.
A constituição de si é um processo lento e difuso, por vezes doloroso. Diversos vetores incidem sobre o homem (e dele partem – e/ou ali implodem) para formar esse ser convulso. Sobre isso versa o livro do poeta e professor paulo tassa[1], doutorando em Literatura pela Universidade de Coimbra. O leitor que tem o volume em mãos poderá ver instigantes sugestões imagéticas relativas à processualidade que é a constituição de si.
“Amanhã-eu”, “em-devir” e “homem-buscado” são alguns dos substantivos compostos que o poeta e tradutor de Manhuaçu (MG) concebeu para sugerir o andamento errático e transformador que se dá nessa composição. Guimarães Rosa e Gilles Deleuze talvez entram na fatura dessa concepção: Rosa pela inventividade dos neologismos compostos; Deleuze pela síntese da imagem em movimento, imagem-processo. Tais substantivos compostos sugerem que não é possível existir numa unidade.
Em o homem à espera de si mesmo, ecoa a noção de identidade trabalhada por Stuart Hall: o sujeito pós-moderno é construção histórico-social, assume diferentes vieses, a depender da circunstância; é contraditório, múltiplo. Antes dele, teria havido o sujeito cartesiano, típico dos séculos XVI, XVII e XVIII, o qual consistia numa figura soberana, livre das tradições e do divino. Tal figura é seguida pelo sujeito sociológico, influenciado pela complexificação da sociedade e mais projetado no “coletivismo” em detrimento do eu. Relativismo, miríade de opções e estímulos, revisão de verdades – estes são alguns dos elementos que, neste livro, atuam numa pulverização do eu contemporâneo, um ser múltiplo, cambiante, processual.
O livro de tassa é, assim, avesso a essencialismos. Como em Heráclito, o rio que corre é testemunha e partícipe da transformação. E a voz poética, por sua vez, oscila entre Narciso (que fala de si, ainda que alegue falar de um referido homem) e Sísifo (que (se) empurra, pedra irregular, ladeira-acima, ladeira-abaixo). Afinal, “o homem que sai da cama / não é o mesmo que a ela retorna”. Nesse sentido, é impossível passar incólume pelo entorno do sujeito – o qual poderia ser um epítome para as “três espirais de mal-estar: o desejo, o afeto e o instinto”. Um corpo vazado por tantos vetores não poderia manter um trajeto linear: é uma sinuosidade em si e vive tendo a noite como um “estado de espírito” – esse homem, indivíduo sexualizado no masculino, existe no “palimpsesto do fracasso”, desenvolvendo-se como camadas espectrais, próprias de si (redundância necessária), tão rarefeitas quanto dúbias, tão assertivas quanto contraditórias, trazendo consigo o “profano e o presente”, sobrepondo em si mesmo instâncias que questionam tempo e essência. Há um oxímoro no homem à espera, pois ele fulgura como um halo contínuo e recursivo, uma tautologia disfarçada de progressão em tropeços. Benjaminia e borgeamente, esse grande poema apresenta a ruína circular de um homem que ousa usar da retórica num incidente (a existência?), fazendo vencer o básico, num negaceio de anacronia: o pão que sonha o trigo. Assim, a origem é sonho de algo que já existe, ainda que como ruína num antidestino.
Por fim, vale mencionar que o “poema contínuo” que constitui O homem à espera de si mesmo é fruto também de um severo confinamento pelo qual passou o poeta no momento da pandemia do vírus Covid-19. Morando sozinho, num apartamento bem pequeno, numa cidade conhecida pelo estudo e dispersão, como é Coimbra, paulo tassa precisou lidar com as dores desse contexto. O governo português bancou a quarentena com mão firme. Ainda que ela fosse necessária, tal obrigatoriedade por vezes não resolve internamente demandas que figuras afetivas e cosmopolitas, como paulo tassa, têm: abraçar amigos, namorar, ir a uma exposição, ver um filme no cinema etc. A lógica da necessidade sanitária atenua somente em parte algumas dessas necessidades do corpo e do espírito. Ficar consigo nesse contexto colabora com uma reflexão introspectiva, mas também pode colaborar com o aumento do desassossego. Viver, com frequência, é pungente; é processo cujas fases trazem novidades. Tais fases se dão no corpo e no entorno (um vírus no ar).
A experiência humana em o homem à espera de si mesmo é atriz (ator?) e palco desse vírus real. Felizmente há vacina contra ele, o que tende a minimizar seus impactos. Para além disso, há desdobramentos simbólicos do patógeno, como mostrou Susan Sontag: a doença não é “só” aquilo que de biológico ela tem; costuma dela brotar uma carga ficcional que pode vir como preconceito e vir também como algo que o corpo somatiza, desdobrando-se em outras vicissitudes (como a ansiedade). Assim, o impacto desse “espirro de uma gripe inventada” é aquilo que há de real (o biológico) e aquilo que o corpo torna real (a somatização), numa tomada de sentido dos fenômenos como linguagem, halos fisiológicos e inconscientes que se encontram na inflamação do corpo e do texto. O verso de paulo tassa sutilmente escamoteia o tom pessoano, por aludir àquilo que finge sentir o que de fato (se) sente: um espasmo decorrente de uma autobiografia que se pretende ficcional, mas que é fisiológica e explosiva como o referido espirro de um vírus real. Frente a isso, o leitor que tem o privilégio de ler esse volume poderá ver um trabalho poético com a linguagem, uma poesia na qual a formação sonda, via escrita, como o corpo se dá, como ele irrompe em si e no entorno – ou em função deste.
[1] O uso de minúsculas no nome – e em toda a sua obra escrita – atende a uma preferência do próprio escritor.