Por Regina Azevedo, poeta e pesquisadora
Quando Bianca me contou sobre este breve ato de descascar laranjas e me convidou para escrever um posfácio, ela também falou da nossa experiência em comum com o luto, e, mais ainda, dessa experiência impulsionando nossa escrita. Antevi que não apenas gostaria do livro, mas me emocionaria. Só não imaginei que seria tanto.
O livro é composto por quatro partes e, além dos poemas, conta com fotografias de família e documentos (como folhas de jornal e imagens do Google). Passeando entre temas, estilos e construindo uma poética muito particular, Bianca nos apresenta um apanhado de textos muito preciosos, carregados de memória e beleza, e um eu poético próprio, inventivo e corajoso (diante do mundo, diante de si, diante do desconhecido, diante do que se sente).
Na primeira parte do livro, intitulada “descontinuidade de mohorovičić”, a poeta fala sobre a perda do pai. Leio, sinto e penso no que Beatriz Sarlo ensinou: o gesto de lembrar nos permite presentificar um acontecimento, dando-lhe uma nova temporalidade. Isso significa dizer, entre outras coisas, que lembrar é trazer o passado ao presente, recriando-o e recobrindo-o de significados. O que Bianca Monteiro Garcia faz aqui vai além disso, ao construir um eu poético que não apenas olha o passado, mas o faz com cuidado, coragem e devoção.
A ausência é um dos motores para a escrita. É esse o abismo por si só: não apenas o que (quem) falta, mas o que (quem) fica. No primeiro poema do livro, “pai,”:
desde que partiu
me vejo incapaz de
encarar
espelhos
desvio os olhos ao
perceber que vesti teu rosto
Envolto pelo vazio, acompanhado e permeado por ele, esse eu poético se debruça sobre a palavra, sobre a perda.
Nesse exercício, talvez fosse fácil cair na armadilha de estar “inerte entre o passado e o passado”, afundando nesse tempo outro, ou mesmo se afogando. Ao contrário, o texto não se perde da/na linguagem, mas se vale dela para transformar história e sentimento em elaboração estética – e até em dor compartilhada, se considerarmos a experiência nossa, de leitores. E não é preciso que eu diga que isso não é algo banal. Ao contrário, é o que nos torna mais humanos e até o que nos salva em alguns momentos.
Muito embora escrever poesia e olhar o passado sejam gestos comparáveis a regar plantas mortas, sem essas duas ações não teríamos a imagem bonita que é, justamente, a de alguém indo à casa do falecido pai para cuidar do que ficou, mesmo que isto esteja morto. Muitas vezes, voltar ao passado se assemelha mesmo a andar no escuro, outra imagem que a poeta traz. E justamente por isso é que a coragem é necessária. A coragem de encarar o abismo, mesmo que esse seja o maior medo. A coragem de encarar a finitude, mesmo que nenhum de nós goste dela.
O pai morre e é preciso cumprir protocolos, checklists, rituais, vender as suas roupas on-line. A poeta quer lembrar do pai descascando laranja. No poema “descontinuidade de mohorovičić”, um dos mais bonitos do livro, vemos a rotina existente sendo interrompida pela morte. Se a vida e o afeto são descontinuados, se “o movimento de rotação da laranja–laranja” é pausado, o tempo não cessa de acelerar, a Terra não desvia seu curso. Em desequilíbrio, incapaz, o eu poético se vê justamente no lugar que antes temia. E então, o que esse abismo esconde? O que o escuro reserva? Qual a marca que a perda nos deixa? O que fica de um pai que se vai?
Essa descontinuidade está presente em outros poemas, por vezes de forma sutil: o futuro do pretérito se torna marca desse tempo que não existiu, do que não foi possível viver, em “tempestade a qualquer hora”:
você teria aos 63 o tempo
um neto ou uma neta
caíque ou iara
gargalhadas laranja-terra
tardes de bicicleta e anil
todas as etapas em replay
Os poemas desse “capítulo” inicial chamam atenção para o que normalmente é tido como banal, acessório, trivial, mas que, na verdade, é potência pura, como o breve ato de descascar laranjas. Olhando o passado como quem aprende a andar no escuro, talvez a lição seja a do poema: a laranja é a perfeita metonímia da experiência conjunta entre pai e filha; o ritual de descascar laranjas é o que permite não só que a menina se interesse por ciências (e passe de ano), mas que aprenda com seu pai a beleza da vida, que está mesmo por aí: ver um planeta numa laranja, entender que detalhe é ouro.
Essa visão muito atenta aos detalhes, que enxerga na simplicidade a maior potência das coisas, estará presente ainda ao final do livro, no poema “simulacro & simulação”, revelando o que talvez seja uma característica central da obra poética de Bianca Monteiro Garcia e, a meu ver, um de seus maiores brilhos:
o amor também está
em desenhar coelhos e patos
com a sombra das mãos
na madrugada mais fria do ano
o teto aceso por um vagalume
e os edredons intactos
enquanto os dedos dançam sob a pele
Os poemas da segunda parte, intitulada “crosta”, são dedicados à avó. E é aqui que a outra poeta, a que escreve este posfácio, se desmancha. A dor expressa nesses poemas é também minha. Mas não fujo dela, assim como Bianca não fugiu, assim como não foge o eu poético. Aceitamos sentir, na vida e na literatura, talvez porque os sentimentos não podem ser passados na peneira. A dor existe, assim
como o afeto, o calor do toque, enfim, a vida:
teu rosto adormecido e sereno
me faz esquecer do coma induzido
e me traz alívio
as agulhas que fisgam teu braço
o tubo que leva oxigênio à tua boca
não incomodam
você não sente
o calor da minha mão
A dor da perda, mais uma vez, não impede a escrita, não paralisa. O poema humaniza, agiganta:
arlette era vista como mulher miúda
[…]
45 anos e três gerações depois
inúmeras cicatrizes ilustram
um mapa em suas pernas
dizem que seu corpo de agora é frágil
que não aguenta um resfriado
esquecem que este mesmo corpo
sustentou no dorso
o peso de um mercado
Eu poético e poeta se confundem, talvez por isso eu também os confunda, algumas vezes, ao longo deste texto. Bianca escolhe a intimidade, a proximidade, e a aposta emociona. Assim como nos poemas endereçados ao pai, a simplicidade tem lugar central nos textos para a avó. Isso não torna o texto um objeto unicamente pessoal, individual. Quem lê também é tomado pelos pequenos hábitos rotineiros, os gestos que passariam despercebidos não fosse o amor e a memória de uma neta, como
o hábito quase religioso
de trocar a data do calendário ao final do dia
o apego aos chinelos deixados no pé da cama
A avó de Bianca se torna a minha avó, a sua. Eis a mágica dos poemas.
Em “núcleo”, terceira parte do livro, o internamento em um hospital psiquiátrico é tema central. Os poemas são carregados de uma inventividade muito própria e se valem da enumeração de forma interessante, como em “recomendações de veteranas”:
participe de todas as atividades
não tire sonecas à tarde
não pule refeições
fique menos tempo possível deitada
não peça s.o.s
não questione
feche os olhos sempre que puder
mas fique acordada
não denuncie
aguarde a próxima embarcação
tenha disciplina
caso queira alta
Assim se retorna às permissões do lugar, como em “regras da casa”, que trata do oposto, a proibição:
não é permitido
brincos e piercings
roupas casuais
cadarços no tênis
[…]
banho após as 19h
guardar biscoitos
pra comer fora do horário do lanche
A atmosfera do ambiente, bem como o tom da experiência, é abordada com um ar tragicômico por vezes, como (talvez) não podia ser diferente num
teste de resistência
sentada na área comum
encarando a tv de braços cruzados
esperei por uma hora
a consulta do dia
segui todas as recomendações
das veteranas
e as regras
da casa
a médica apareceu
sentou ao meu lado
fez duas ou três perguntas
e encerrou a consulta
pergunto quando vou sair dali
a médica aponta:
quando desaparecer essa ruga da sua testa
O recurso enumerativo parece contribuir para a ideia de que a complexidade, aqui representada pelo ser humano e sua saúde mental, é tratada com banalidade ou desdém, como se fosse algo fácil, prático e rápido (um checklist, uma bula). Além disso, a urgência e a rapidez dessa sociedade estão presentes na forma dos textos, algo bem contemporâneo. Vejamos o poema “triagem”:
para queda brusca de libido e apatia de sobra:
oxalato de escitalopram
o coringa do hospital psiquiátrico:
sertralina e quetiapina
Ou, ainda, o poema “escanteio”:
o enfermeiro plantonista
no seu intervalo gosta de ir ao pátio
chuta a bola contra a parede
a psicóloga residente produz uma atividade em campo
observa e comenta na mesa das loucas:
olha o que o márcio tá fazendo
hahaha
acho que ele precisa de internação
tá batendo bem não
Vale um destaque para os textos que se voltam a experiências mais subjetivas dentro desse universo, como “oxalato de escitalopram”, dedicado à Ana C.; “birdman no quarto-forte”, dedicado ao avô materno; e “71 flores no edredom”, dedicado à Margaret Atwood.
Já na quarta e última parte do livro, “núcleo”, vemos uma guinada ainda mais subjetiva, pode-se dizer até lírica, como nos últimos versos de “treinamento de hemisférios”:
lá fora o céu ocre despeja em cólicas
uma chuva torrencial de atraso
guardo hoje o binóculo entre meus sapatos
Nesse “capítulo”, o eu poético é afetado mais evidentemente pelo mundo à sua volta, “no apocalipse das vacas magras”, “enquanto não chega o dia depois do fim do mundo”. Da clausura do hospital à clausura da pandemia, o novo espaço poético ganha pessoas mascaradas, álcool 70, distância, até algum cerceamento, mas não se torna de modo algum asséptico, inodoro ou inerte – para usar uma palavra lá do início.
Se a doença está ainda presente, é de outra forma: o eu poético se torna sujeito agente e há mais espaço para a subjetividade, para o íntimo. O poema “hipocondria” traz uma enumeração medicamentosa que contrasta com o tom da parte anterior, com a mudança desse sujeito de paciente para agente (o caráter hipocondríaco não desumaniza, não incapacita – é também alguma potência):
cresci rodeada de plantas de plástico
não me lembro de arnica em machucados
a mesa da cozinha
sempre costurada por uma mini-farmácia
nimesulida paracetamol privina
hoje teimo fazer sabonetes de argila
e vitaminas de banana com linhaça
A experiência contemporânea ganha cena uma vez mais em “gatilhos para melancolia”, um poema que, mesmo lido baixinho, é carregado de sons e significados:
domingo à noite
pagode no churrasco
véspera de natal
barulho dos trilhos do trem
comunicado da supervia
lâmpada amarela de rua
o som das hélices do ventilador
jogo de futebol na tv
barulho do carrinho de supermercado
anime
faustão
silvio santos
a voz do brasil às nove
vinheta do supercine
plantão da globo
jornalismo da record
panelaço
No último poema do livro, intitulado “a performance”, a poeta escreve:
não há potes de ouro
língua também é corpo
e outro dia me lembraram
não há troféu na linha de chegada
O leitor, por outro lado, ao chegar até ali, celebra o caminho percorrido e este é o seu troféu: um livro bonito e necessário.