Por Wanda Monteiro
Sem nenhuma pretensão de discorrer sobre questões teóricas no campo das letras, essa fala -e digo que é uma fala – pois que esta, reflete um diálogo textual com este livro, que me arrebatou de forma física e orgânica a me lançar para o centro de suas imagens e, desse centro, fazer a escuta da voz poética de Demetrios Galvão, deixo, aqui, as impressões de uma leitura afetiva de quem escreve para quem escreve.
Devo antes, ressaltar que as palavras em itálico e negrito são versos que compõe os poemas deste REABTAR e, sobre os quais, tomei para mim a licença poética de incorporá-los ao texto que lhe apresenta.
Antes, devo citar Octavio Paz em excerto de seu texto A nova analogia: poesia e tecnologia:
‘’…
Os atos e as palavras dos homens são feitos de tempo, são tempo: são um para isto ou aquilo, seja qual for a realidade que o isso ou o aquilo designem, sem excluir sequer o nada. O tempo é o depositário do sentido. O poeta diz que o que o tempo diz, mesmo quando o contradiz: nomeia o transcorrer, faz da sucessão palavra. A imagem do mundo se dobra na ideia do tempo e esta se desdobra no poema.
…”
Se o que habitamos é o espaço e o espaço habita o tempo, somos, portanto, habitantes do tempo. Imbuída dessa ideia e sentimento, debrucei meus olhos sobre o livro. Este livro, em seus mais misteriosos desdobramentos no poema, nos convida a transver o espaço e o tempo e nos (co)move a reabitar um novo e metafísico mundo.
Este REABITAR de primorosa poesia oferece poemas reinando em contínua corrente, onde imagens e mensagens tendem a fundir-se umas nas outras, num fluxo de pensamento cujo leito salta da página para atingir a mente do leitor. É um livro prenhe de dizeres que nos remetem para outras descobertas – para outros caminhos, num sucedâneo de linguagens poéticas. Ele diz dos invisíveis enraizados em escombros e, em alumbramentos, irrompe a luz para além da matéria como quem roga um interlúdio, um sono talvez, para o cansaço do que há na realia.
Nesse campo, clareira de imagens e orações milagreiras cultivadas pela linguagem poética de um REABITAR, fazemos um percurso de visão e escuta e ao reabitar a casca corpórea do pensamento, nos sobressaltamos com os sentidos aflorados de quem após ouvir a oração dos mortos, ainda pode ouvir a natureza sussurrar um vento pacífico e pousar os olhos em nascentes. É nesse campo imaginário do poeta – possivelmente, um lugar que deus nem conheça – vasto de clarividentes esperanças a desafiar a morte e, de generosas e acolhedoras sombras de uma possível felicidade, que o leitor sente-se (co)movido a conhecer.
Ressalto, o poema reabitar 2 nos remete à máxima de La Rochefoucaut que descerra a cortina ao falar “ A felicidade está no gosto e não nas coisas; e é por ter o que se ama que se ama e não por ter o que outros acham amável “ .
1
a esperança
desafia a gravidade
e levanta os mortos
reanima os segredos da casa
com o toque do invisível
perturbamos
os domínios da morte
com nossa felicidade.
Demétrios Galvão insemina o poema com a semelhante identidade invertida que constitui a máxima de La Rochefoucaut, trazendo-a à tona quando, na contrafação dos signos, provoca o leitor com a força da de sua antítese e de sua universal significação.
Lembrei dessa máxima, citada por Roland Barthes em seu O Grau Zero da Escritura, ao mesmo tempo que lembrei de uma de suas reflexões acerca de sua abordagem sobre a escrita poética, onde diz: ( … ) Cada palavra poética constitui assim um objeto inesperado, uma caixa de pandora de onde escapam todas as virtualidades da linguagem (…). Essas referências me levam, fatalmente, a dizer que nesse Reabitar proposto pelo autor, estamos diante de objetos inesperados – de caixas de pandora à espera das virtualidades de sua linguagem.
A singularidade da linguagem poética cultivada nesse REABITAR nos provoca inesperadas enlevações e profundidades. Não é apenas a potência e a beleza dos versos que podem provocar espanto e medrar o fluxo sereno do leitor sobre a riqueza textual, mas é, sobretudo, o que a formulação de suas palavras, eivadas de significação, são capazes de produzir. São formulações que podem trazer à tona a memória úmida em suas reminiscências, provocar a busca de um lugar indizível onde a palavra não chega, fazer a travessia que avança sobre a mortalidade e prolonga a finitude, levar ao salto do visível para o invisível, e buscar o alívio dos males, ao nos luzir , versando: o afeto salva a vida dos homens.
Nessas travessias o poeta aceita os enigmas do tempo, festeja o silêncio, não nega a morte, mas, não se entrega a ela. Pois que diante e dentro desse REABITAR _ onde ideias e imagens afetam o leitor _ acometendo-o por um potente sentimento: não se pode morrer facilmente.
George Steiner , em seu livro Gramaticas da Criação, diz que um gênero literário pode ser revigorado quando um mestre da linguagem dá o seu salto quântico. Creio que o poeta Demetrios Galvão, de leito de sua mestria, conseguiu dar esse salto quântico quando e onde:
lá onde os bichos são cegos
e a linguagem é um ruído,
uma faísca no escuro das águas.
Wanda Monteiro, escritora amazônida, que nasceu nas aguas do rio Amazonas, é autora das obras: O Beijo da Chuva, 2008, Ed Amazônia ; ANVERSO, 2011, Ed Amazônia; Duas Mulheres Entardecendo (parceria com Maria Helena Lattini), 2015, Ed Tempo; Aquatempo, 2016, Ed Literacidade e A Liturgia do Tempo e outros silêncios, 2019, Ed Patuá.