8 Poemas de Sérgio Mondragón (México – 1935)

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Tradução e apresentação por Nuno Gonçalves*

Nota da tradução: Sergio Mondragón é um dos mais importantes poetas mexicanos. Nasceu na cidade de Cuernavaca, Morelos, no ano de 1935. Dirigiu junto à estadunidense Margareth Randall a revista “El corno emplumado” que se consolidou como um importante meio de difusão do turbilhão de ideias que marcaram os debates estéticos, políticos, filosóficos e religiosos dos anos sessenta. Ensinou literatura, praticou o jornalismo e recebeu o Prêmio Xavier Villaurrutia no ano de 2010 pela edição do livro “Hojarasca”. Sua poesia é atravessada por múltiplas águas: o budismo, as tradições pré-hispânicas, a devoção à natureza, o erotismo e a busca por uma ampliação sensorial são algumas delas. Tomei conhecimento de sua poética apenas quando de minha estadia no México. As traduções aqui publicadas são livres exercícios nascidas de uma profunda admiração a este exímio poeta de Tenochtitlán e de certo incômodo ante a quase total ausência de traduções de seus poemas à língua portuguesa. Todos os defeitos da tradução são meus, todos os méritos são da magia solar que seus poemas irradiam.

Nuno G., Toróró, 10 de agosto de 2020.


MECANISMOS DA POESIA

Ouço que alguém chamou “bico de pardal”
a essa parte recôndita da mulher: seu clitóris;
uma ocorrência feliz,
invenção de um pseudônimo sensível e sedutor,
algo que ao ser enunciado
faz sorrir às mulheres.

(a semelhança é assombrosa:
o deslocamento intelectual desse adminículo de
carne
fragrante e cavernoso
até um bico que trina
é o mesmo
que nos faz ver nas ondas
imagens de nossas vidas:
guerreiras do profundo
que lutam até morrer desfeitas na areia:
modos de proceder da poesia
para treinar-se na eloquência sem palavras).

“Bico de pardal”: indefeso, carnudo,
ávido, eficiente,
feito para se colocar nos lábios
com delicadeza,
como ao beijar no bico a uma ave
que se tem presa e trêmula entre as mãos.


NOSSOS CORPOS UMA PISTA

Minha língua pronta para se escorrer entre tuas pernas
tuas pernas atrozes
meus dedos hábeis para penetrar todos teus orifícios
teus orifícios poços nos quais bebo sem saciar-me
minha unha para arranhar a corda da alma
meus dedos que te irritam com insistência ao vermelho vivo
meus dentes que te roem
minhas mãos que percorrem selvagens precipícios
enquanto ranges enquanto te desfazes arqueias
teus seios montanhas propicias à meditação
tuas costas planície feita para perder-me
a selvagem desolação de meu nariz cheirando
teu suco teu óleo teu vinagre
o cheiro de teu breu cru

tua boca que sangra
teu mamilo que se torna de ferro entre meus lábios
teus lábios enormes onde guardo meu segredo de carne
tua entrada obscura negra e vermelha
carne aberta em direção ao mistério
da terra e a água
(uma criatura de lodo nadando na nata do teu sexo)
teu ventre que faz ondas praias nas quais canto
tua cintura teu umbigo cisterna das pérolas
tuas axilas pastagens onde sorvo sem olhos
teus joelhos de ar
tuas nádegas de ar
teus arquejos de peixe teus rugidos de leoa
teus olhos em branco
a água salgada do teu corpo
nossos corpos fontes de prazer e de tormento
o abraço que nos quebra tuas garras nas minhas costas
minha queda de bruços sobre a cal acessa minha língua
na tua orelha teu estertor de ave que morre voando

tudo isto para encontrar o princípio da alma


O OUTONO EM TEU CORPO

Um poema sem nome escapa de tua blusa
e chega suavemente até minhas mãos:
um poema é tua saia que balança com o vento
o outono que rumina com ternura
nas fontes sagradas do teu corpo:
um poema que discorre persistente
sem principio nem fim:
imagens que brotam do pensamento
palavras escritas em teu rosto
amor ninado pelas eras


PAISAGEM CUBISTA

Quero despertar numa cama de erva
com o joelho quero acariciar
o interior de uma flor amarela
em seguida beber de um córrego muito claro
e caminhar em direção ao sol;
quero viver no sol e esquecer do tempo
que meu olho e meu ouvido aprendam
uma linguagem sem roupa nem medo;
quero no meu nariz o hálito do sol
respirar ali legionárias criaturas
aladas e leves
que me renovem por dentro e por fora…


MANDALA

Quero deslizar pelas tuas mãos e teu pescoço
como um molusco
quero tuas pernas ao redor de minha cintura
quero tocar dentro do teu corpo
aspirar tua respiração como uma fumaça visionária
perder o equilíbrio entre teus braços

quero tocar tuas virilhas e teus cabelos e teus músculos outra vez
quero entrar no teu corpo como se entra na praia
em uma noite sem lua com a razão extraviada
quero me perder inteiro no campo do teu ser
desfalecer junto a ti

correr em teus pensamentos

no conhecimento de ti

ganhar o conhecimento

quero a ânfora de tua água
o receptáculo de teus devaneios espirituais e
corpóreos
o cheiro da tua carne
a palavra tudo nos teus olhos em branco

quero subir ao ser no barco do teu corpo
te sustentar suspensa sobre os alcantilados
sobre os desfiladeiros horrendos de tuas palavras sem
sentido

quero que o sol reflita no oco de tuas mãos
que em teu corpo empapado em teus sucos imortais
o mar se ponha a sonhar enquanto desfaz ondas frescas


A POESIA DO SOL

A louca poesia tem o chapéu do sol
a louca poesia tem o manto da chuva
a louca poesia tem as sandálias do mar
e nos estende seus fios dourados
e floresce como uma resposta a todas as perguntas

a louca poesia baixa as escadas do céu
trepa às árvores da manhã
cochila nas pestanas dos que nascem
dos que mergulham a luz do meio-dia
dos que aram e oram

a louca poesia tem os cabelos molhados
dorme pela noite
avança pelo dia
se detêm
aspira as flores e viaja com as nuvens

a louca poesia habita meu cotovelo
teu pé
habita teus peitos alegres
a louca poesia emana do centro do sol
escorre por tuas laterais
emana também do teu cabelo
emana de teus dedos
estala nas ameias de meus olhos
a poesia está louca por nós
para olhá-la só temos que traçar o quádruplo
conjuro:
norte sul leste oeste
e vê-la cair como chuva
ouvi-la cantar como o vento que passa
vê-la enrolar-se nas virilhas da tarde

a poesia está louca por nós e nos presenteia o verão
um verão que desfila lento
junto a suas irmãs as estações

a louca poesia


LABIRINTO

Não basta
olhar
é necessário colocar em movimento
os sonhos do cavalo marinho
da memória
os suntuosos palácios
sonhados esta madrugada
não basta
escrever o poema
é necessário submergir na concentração
do varrer
do amar do olhar o chifre de uma formiga
é possível então precipitar a correr
de frente em direção ao mistério
contido
numa taça de chá;
o poema logo se organiza
a máquina para e a paisagem começa a cantar
desliza-se a mão pelo lombo do vento
um novo grito no bosque se inaugura
um novo canto goteja em direção ao asfalto
meu cão reza de joelhos
meu moinhozinho de orações trepida com o vento
já tudo é uma feira de cabeça para baixo
como uma virgem perseguida nos corredores do
labirinto
o místico labirinto
de uma vara e uma caixa de resina
em que guardo meu poema
o dobro
e o coloco nas estantes da cabeça
enquanto sais à rua
e andas como entre os livros da biblioteca
como entre a lembrança do poema que tramas
enquanto repetes a si
não basta olhar
é necessário


PARA ELA

És o monte mais alto que conheço
o abismo mais fundo
a umidade mais viva
a herança menos esperada

És o vislumbrado apenas
o que grita quando o mar desesperado
se joga sobre as rochas

És a rosa de carne
os botões de âmbar
as uvas na boca

És a verdadeira realidade
que toda a noite vela
junto ao distante e o albatroz

És o verbo ser na boca de poetas
o salmão reverberante que remonta a terra

O teu cabe
no parapeito do universo
num rincão da minha testa
no fundo de meus bolsos rasgados…


*Nuno Gonçalves (Pernambuco, 1980). Nasci em Recife, mas sou cearense. Publiquei os livros de poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das onças. Recebi o Prêmio Ideal de Literatura com o conto O caminho da novena e com o poema O canto do anjo vermelho. Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC & doutor em Estudios Latinoamericanos pela UNAM. Sou professor de história da América na UFRB, mas o que importa mesmo é que sou pai de Marialice.

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