Por Floriano Martins
NOTA DE EDIÇÃO: A primeira parte deste texto foi originalmente escrita para a revista Poesia Sempre (Rio de Janeiro), em 2011. A segunda parte é uma entrevista realizada no mesmo ano e incluída na Agulha Revista de Cultura. A parte 3 é o diálogo mantido entre Floriano Martins e Viviane de Santana Paulo logo após a escrita a quatro mãos do livro Em silêncio (2013).
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1. Em 2011 tivemos a publicação de um novo livro de Viviane de Santana Paulo: Depois do canto do gurinhatã (Rio de Janeiro: Editora Multifoco). Antes ela havia publicado Passeio ao longo do Reno (2002) e Estrangeiro de mim (2005), porém ambos na Alemanha, onde reside há quase 2o anos. Em 2007, Viviane de Santana Paulo foi incluída em uma Antología de poesía brasileña, publicada na Espanha (Madrid: Huerga y Hierro), e em 2009 tem finalmente poemas seus publicados no Brasil, em um volume coletivo intitulado Roteiro de poesia brasileira: poetas da década de 2000 (São Paulo: Global Editora). Antes disto seu nome já circulava como ensaísta, em textos publicados na Agulha Revista de Cultura. Poeta culta, sem que esta cultura se converta em entrave de seus dons poéticos, de um sentido mágico de experimentação de linguagens, Viviane de Santana Paulo trabalha agora na preparação de uma antologia de poetas vivos alemães, para uma editora mexicana.
A publicação de Depois do canto do gurinhatã assume particular conotação por ser a sua estreia em seu próprio país. Além disto, este é um daqueles livros cuja leitura nos toma de uma maneira que não a conseguimos deixar de lado. Nenhum poema ou mesmo verso pode ficar para o momento seguinte. Vale experimentar. Trata-se de uma condição magnética da linguagem utilizada por Viviane de Santana Paulo (São Paulo, 1966). Não à toa a poeta mescla seu canto ao do gurinhatã, a ave que canta muito, sem medo de adentrar o canto de todas as demais. Assim ela o faz, não por tática de imitação, mas antes de assimilação. E o ímã de seu canto esplende exatamente por essa razão, a intensidade com que se identifica com o que há de mais urgente na condição humana. Seus jogos de linguagem – afinal a linguagem não subtrai o lúdico – estimulam os sentidos, são perspicazes na leitura do efêmero, do transitório, do banal, das zonas de insegurança que tornam a humanidade um sinal ainda de transcendência de toda a matéria ordinária que a caracteriza. É bonito ouvi-la com essa convicção de que o homem cabe bem em seu mundo, de que a entranhável magia é resultado de escavações na carne do cotidiano.
É poeta de nítida linhagem surrealista, consciente da exigência ulterior do próprio movimento, de sua constante atualização. Como ela mesma trata de referir em uma de nossas conversas: “Procuro mesclar uma ponta de verossimilhança ao enleio onírico, entre as metáforas aparentemente desconexas. É preciso inserir algo novo no surrealismo de hoje que, a meu ver, não pode ser o mesmo do início do século passado. As circunstâncias, a história, as ideias mudaram, outras fontes de associações, novas reflexões e estilísticas surgiram. O surrealismo de hoje precisa trabalhar as reflexões e inquietações inerentes aos tempos atuais.” Cabe ainda, a este propósito, pinçar passagem do texto de contracapa de Depois do canto do gurinhatã, assinado por Menalton Braff: “O surrealismo de Viviane de Santana Paulo incorpora figuras memoráveis e as pausas e expectativas são criadas pelo simples espaçamento das palavras entre si, dinamizando assim os sentidos com as combinações novas”.
Contrária à lírica evasiva de seu tempo – quase diria alienada, não fosse o desgaste deste adjetivo – a poesia em Viviane de Santana Paulo traz para o convívio de seu verbo a ferrugem, a acidez, a angústia, na mesma proporção em que a alegria de viver, o milharal da memória, a flor do orgasmo. Faz de suas páginas o lugar de encontro de todas as perspectivas do humano. Não cultua os trocadilhos gratuitos de seus pares, não se exime de conferir realidade a cada imagem debulhada, nem expia culpas com seu discurso. Ao revelar o excesso que há no interior de cada cena, acentuando-lhe os vícios, os quadrantes vazios, cuida também de esvaziar as habitações de toda e qualquer tática de subterfúgios. O mundo, na poesia de Viviane de Santana Paulo, existe para ser habitado, com expansivo sentido de entrega. E o faz com um contagiante êxtase de felicidade, como se recebesse com irrevogável alegria uma tarefa do destino, igual a seu parente alado, o gurinhatã, o pássaro que é todos os pássaros.
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>> ENTREVISTA <<
2.
FM | Há quase duas décadas vives na Alemanha. De que modo esta ausência física do Brasil atua em tua convivência estética com a tradição lírica brasileira? Tua formação como poeta está naturalmente influída pela residência alemã. Quais aspectos em particular foram mais evidentes em sua cultura que te ajudaram a esboçar e definir uma visão de mundo?
VSP | Viver no exterior nos possibilita ver e julgar muitos aspectos do país natal através de um ângulo mais abrangente. Não raro somos induzidos a tomar uma posição política nas conversações com amigos. Um brasileiro que vive no exterior é levado, em determinadas situações, a representar o seu país. Somos mediadores da cultura brasileira. Tal condição nos induz a refletir sobre as nossas raízes. O que talvez não fizéssemos, não desta forma crítica e profunda, se tivéssemos sempre vivendo no país natal. Por outro lado, perdemos a capacidade de julgar algumas mudanças e normas, que variam na sociedade conforme o seu desenvolvimento, porque não estamos acompanhando este desenvolvimento de perto. Mas na criação, além do espaço geográfico, é o espaço imagético que conta, e este espaço é apolítico e apátrida. É indiscutível que as experiências vividas no mundo real influenciam o autor. Como minha infância e adolescência foram vividas no Brasil e, para repetir uma citação de Ingeborg Bachmann: “sem que o escritor tenha consciência são os anos da infância seu verdadeiro capital… o que vem depois, e que até pode ser considerado muito mais interessante, em nada acrescenta, estranhamente, apenas que, anos mais tarde é que se começa a entender o que se viu com o primeiro olhar”, considero as raízes da minha literatura arraigadas na cultura brasileira, mesmo porque escrevo em português, entretanto, o que veio depois, que é a cultura europeia, especificamente a alemã, acrescentou sim, muito, na minha criação e visão de mundo. Esta influência me fez definir melhor o meu estilo e me tornou mais consciente sobre as questões da identidade. Procuro resgatar as minhas raízes e ao mesmo tempo absorver as influências europeias. Mas a poesia é um gênero complexo. Pega-se uma lembrança da infância, uma cena do cotidiano, uma imagem de São Paulo ou Berlim ou de alguma cidade a qual visitamos, Barcelona, Algarve, Sertãozinho, pega-se um grão de terra da caatinga, da areia do Saara, uma folha de coqueiro, um floco de neve, uma pedra do Reno, uma concha quebrada da praia de Búzios, pega-se impressões, ou apenas um estado de espírito, faz-se experimentos com as palavras e cria-se um poema. Ele nasce do subconsciente e associa uma coisa à outra, mescla as impressões, as imagens, independentemente da nacionalidade. Interessante mencionar aqui que há muitos escritores que não vivem ou não viveram em seu país natal. Saramago viveu na Espanha; Clarice Lispector viveu muitos anos no exterior; Guimarães Rosa também, inclusive escreveu Grandes Sertões: Veredas em Hamburgo; J. M. Coetzee vive na Austrália; Adonis, o poeta sírio-libanês, vive na França.
FM | Quando preparei uma antologia da poesia boliviana, em minhas pesquisas descobri um poeta nascido na Bolívia e que posteriormente passou a maior parte de sua vida em Minas Gerais. Seu nome é Wilson Rocha (1921-2005). De alguma maneira este poeta acabou esquecido, seja como brasileiro ou como boliviano. A tua produção literária (poemas, narrativa, ensaios) se mantém em português, de maneira que não habitas a cena literária alemã. No entanto, a tua longa ausência do Brasil talvez constitua um obstáculo para a recepção de tua obra como a de uma escritora brasileira. Acaso tens esta sensação?
VSP | Sem dúvida, trata-se de um obstáculo. Infelizmente ainda há muito de provinciano no cenário intelectual brasileiro, e não digo da parte dos leitores, mas dos editores e críticos. Se houvesse uma crítica mais autêntica e consciente de sua função (orientar os leitores para uma boa leitura, uma leitura crítica, na qual se extrai a essência do livro e não uma crítica baseada em favores para amigos escritores ou de jornalistas escritores em que apenas se elogia um livro de forma superficial, oca). Se houvesse uma crítica que abrisse novos caminhos, novas fontes de leitura, ao invés de se acomodar falando somente bem ou mal de um livro. Se não houvesse uma enxurrada de preconceitos neste meio, o panorama da literatura brasileira seria muito mais diversificado e rico. Às vezes penso que as editoras só publicam livros de jornalistas, porque estes já possuem um pé na mídia para facilitar a divulgação do livro e da venda. No caso dos poetas, eles devem ser os tradutores da casa, as editoras só publicam os poetas que estão empregados como tradutores na própria editora. Assim fica difícil dar chance para um autor original fora deste meio. Infelizmente não existe nenhum Maurice Nadeau brasileiro. Mas estes preconceitos não se encontram somente no Brasil, no resto da América Latina não é muito diferente. Wilson Rocha teve o azar de ir para o Brasil e não para a Espanha. Se tivesse ido para a Espanha, teria publicado os seus livros lá, teria sido inserido no mercado internacional e adquirido o devido respeito. O Brasil não sabe reconhecer muitas coisas valorosas de sua própria cultura. Esta sempre foi uma lamentável dificuldade que o Brasil possui. E ironicamente é inumerável tudo aquilo que ele possui de culturalmente rico que é tratado com indiferença. A Espanha incentiva os autores hispano-americanos. A França os autores africanos. Nos Estados Unidos uma brasileira chamada Frances de Pontes Peebles, escreveu um romance em inglês, The seamstress, que foi traduzido para o espanhol e alemão, e está obtendo considerável sucesso. Comparam-na com García Márquez e Isabel Allende. Mas o Brasil será o último a tomar nota disso. A Alemanha incentiva os autores árabes e persas, como Rafik Schami e Navid Kermani, que são bem conceituados. Entretanto, quem escreve em uma língua estrangeira que não seja o inglês ou francês, não tem chance na Alemanha. Por outro lado, se Navid Kermani e Rafik Schami escrevessem numa destas línguas já teriam alcançado reconhecimento internacional. Acontece que o alemão e o português não são um idioma internacional, como o espanhol, o inglês e o francês.
FM | Considerando infância e adolescência vividas no Brasil, portanto a fonte mágica de onde se originam afinidades estéticas e visão de mundo, quais aquelas recorrências positivas que foram pouco a pouco definindo as tuas contas, o teu colar existencial?
VSP | Bom, são muitas, mas mencionarei apenas algumas. Em casa tínhamos uma modesta biblioteca onde havia a enciclopédia Abril, livros da mitologia grega e egípcia, e a coleção do Círculo do Livro, uma coleção de contos de fadas com lindíssimas ilustrações. Eu amava esses livros. E as férias na praia, no litoral próximo a Peruíbe, em meio à mata Atlântica. O mar me fascina, pensei que não conseguiria viver longe dele. O ruído estrondoso das tempestades com os clarões dos relâmpagos (as tempestades alemãs não são barulhentas, embora a mudança do clima esteja gerando fortes tempestades também na Alemanha) e o por do sol. Morávamos em um sobrado em São Paulo, e quando do quintal eu via o vermelho do sol, corria para o meu quarto para admirar o crepúsculo da janela. Aos poucos o céu foi sendo coberto pelos prédios enormes. Não existe mais o avermelhado, abóbora, rosa, roxo do crepúsculo, agora as cores foram esmaecidas pela poluição. Outra imagem que ficou na minha memória, mas que não é positiva, são os mendigos no Viaduto do Chá. Eu tinha que atravessar aquele viaduto para ir trabalhar em um escritório no centro. Todos os dias passando por aquelas pessoas no chão: mães, crianças, velhos, doentes, famintos, imundos, as crianças de rua abandonadas. Até hoje me dói muito ver tal coisa. Eu precisava descobrir que isso não é normal, que se trata de um problema social e não que a Humanidade é assim, injusta e indiferente. Também por este motivo queria conhecer outro país. Viajei por muitas cidades brasileiras, mas como minha família vive em São Paulo, sempre visito esta cidade. São Paulo está presente em muitos dos meus poemas urbanos.
FM | Algo que me encanta em tua poética é esse aspecto visceral que torna a tua experiência de vida – de que fazem parte aspectos como sonhos, visões, devaneios, frustrações – presente no poema como um determinante que é a sua própria razão de ser. O poema como reflexo do que és, fusão de planos como o abstrato e o concreto. Mitologias, contos de fadas, sim, leituras postas em um caldeirão cujo ingrediente mais apimentado era o teu percurso diário pelo Viaduto do Chá. Mas as referências poéticas, quais?
VSP | Eu não diria que o Viaduto do Chá é um ingrediente em minha poética, procuro tratar de temas diversos, impressões ou reflexões sobre os acontecimentos do dia-a-dia, algum sentimento, imagem, ou é simplesmente a atração por uma determinada palavra. Leio muito, desde os clássicos aos vanguardistas (as mitologias e os clássicos são essenciais), e as minhas referências são muitas. Não faz sentido listá-las aqui.
FM | Vou aqui te contar uma história que está muito ligada à nossa afinidade poética. Quando morei em São Paulo, no princípio dos anos 1980 do século que chamamos de passado, mas que é presente no sentido de que ali estão as nossas referências, eu tive uma experiência muito próxima à tua, pois diariamente cruzava os bastidores de outro viaduto, o que me levava da Av. 9 de Julho à Praça Roosevelt, onde eu trabalhava. Ali o mesmo intrigante cenário miserável. Foram cinco anos fazendo o mesmo percurso, intimidade com a mudança de clima e suas arestas, eu vi ali o mundo sob diversos enfoques, cheguei a dançar entre eles uma noite gélida, o fogo em um latão. E voltava para casa indagando a mim mesmo qual o motivo da felicidade da miséria. Nunca pus em dúvida a alegria de viver deles, mas sim a minha. Certamente aquela cena repetida por 5 anos, em circunstância alguma nunca a mesma, me fez abandonar São Paulo. Sabemos que a vida precede o poema. Também sabemos que um poeta está mesclado de ambientes que envolvem as outras formas de expressão artística. Seguimos com as referências?
VSP | Não abandonei São Paulo, mesmo que eu quisesse não conseguiria. Cresci em São Paulo, minha visão de mundo parte de São Paulo e sofre interferência com a visão adquirida na Alemanha. Quais interferências? Ainda é muito cedo para defini-las, para isso eu tenho que escrever mais. A alegria de viver deles? Não é alegria. Por mais que riem, não são pessoas felizes. Mães impossibilitadas de dar proteção a seus filhos, que vivem na rua, sem ensino, sem teto, sem higiene, sem alimentação… pode existir momentos em que sorriem, mas não são felizes. Essas pessoas não estão bem e não vivem bem. Mas o que faz alguém ser poeta? O que o leva a escrever de forma lírica? Que necessidade é essa? O poeta possui uma grande perspicácia associada à estética. Ele nasce com uma vocação artística, como um dançarino, um músico. Pode-se dizer que é alguém que vive à flor da pele, em carne viva. Eu já me descrevi como uma escultura de Gunther von Hagen. A existência me arde na pele. O poeta possui a sensibilidade para captar um ângulo, um sentimento, um momento, que passa despercebido pelas pessoas submersas na realidade. Minhas referências são a Natureza, as questões existenciais que afligem o meu cotidiano, os sentimentos que abalam as nossas certezas, as pequenas atitudes que modificam nossa vida inteira, e a própria arte, sobretudo as artes plásticas e o teatro me atraem. Berlim possui ótimos teatros. Eu pintava na adolescência, queria ser artista plástica, mas não tinha dinheiro para comprar as tintas importadas da Alemanha nem para pagar a faculdade de Belas Artes em São Paulo. Escrever era mais econômico, só era preciso lápis e papel.
FM | Recordo aqui passagem de um livro autobiográfico de Lêdo Ivo: “Na literatura brasileira, ninguém caça, ninguém pesca, ninguém ama, ninguém vive. É uma literatura livresca, que só sabe respirar o ar abafado dos livros.” Temos aqui o tema do excesso beletrista de nossas letras. Na lírica, o desastre é completo. Desde o Parnasianismo que jamais saímos do… Parnasianismo. As exceções seguem com o péssimo hábito de apenas confirmar a regra. Tu és parte da exceção. A regra é remediável?
VSP | É natural que nos tempos atuais se faça tudo quanto é tipo de poesia. Faz parte da criação experimentar caminhos inusitados e tentativas frustradas. Hoje em dia há muitos poetas e poesia. Não acho ruim, se há leitores neste meio, por que não? Por outro lado, cabe aos acadêmicos e aos críticos reconhecer os poetas promissores e selecionar aqueles que realmente têm uma obra representativa dos amadores. Acredito que existe um foco muito grande para um determinado tipo de literatura e estilo e se ignora outros que são originais e de boa qualidade. A literatura é arte e como arte precisa ultrapassar fronteiras e desafiar as regras. Não obrigatoriamente, mas esta é uma característica inerente à arte. A literatura não é feita só de palavras, é preciso sangue e pulsação. O leitor quer, de alguma forma, identificar-se com aquilo que ele lê. A escrita precisa tocá-lo. Isto não quer dizer que James Joyce, por ser um autor “difícil” criou uma literatura só de palavras. Joyce criou algo autêntico, escreveu o que ele via e sentia que, por consequência de sua complexa personalidade, tornou-se uma leitura elitista. O que não é negativo. A arte sempre teve o seu lado elitista e o popular. Existe na literatura, mais do que em qualquer outra manifestação artística, o aspecto elitista. Acredito que no Brasil há muitos escritores originais e ousados, mas continuam inéditos. As editoras brasileiras são demasiadamente mercantilistas. Tratam a literatura como um produto de mercado e não como um bem cultural, que precisa ser incentivado, apoiado, desenvolvido e conservado.
FM | Eu gosto de teu coração aberto. Palavras, sangue, pulsação – eis aí uma boa receita, que naturalmente pode ser quebrada por uma empresa a frio que se apresente como boa e aguda o suficiente para instigar e alimentar uma época. Se estivéssemos fazendo sociologia poética, aqui poderíamos tratar de ambientes os mais tresloucados decorrentes do dadaísmo, do surrealismo etc. Por vezes me parece que te preocupa a recepção de tua obra, pela forma como destacas o leitor. Qual o interlocutor sonhado da poesia de Viviane de Santana Paulo?
VSP | Logicamente o leitor é importante. Sou, antes de qualquer coisa, uma assídua leitora, leio mais do que escrevo. Adoro ler! E o escritor escreve para ser lido. Quero sim ter leitores como eu, abertos a uma visão diferenciada da realidade e que goste de refletir. Respeito os leitores porque sou uma, por isso sei que são diversificados e buscam também novas formas de literatura, e, neste mar de livros de entretenimento, autoajuda, ficção científica, literatura estrangeira, brasileira, e assim por diante, necessitam de um leme, este leme é a crítica literária para cada estilo. Um bom livro de entretenimento também possui as suas qualidades, assim como um bom crime ou ficção científica, diferente de um Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, por exemplo, leituras que exigem grande introspecção. Na Alemanha todo tipo de literatura é valorizado, dentro de sua categoria, e há leitores para todos eles. Agora, quanto à recepção da minha obra, é um mistério. Não faço a mínima ideia porque ainda não há recepção. Enfrento dificuldades de publicação, não sou jornalista e não trabalho como tradutora para nenhuma editora, e como já mencionei, as editoras brasileiras só querem saber deles. Assim é realmente difícil escritores inéditos desenvolverem algo diferente, a literatura brasileira fica viciada em uma determinada visão de mundo e mantém a pouca variação na temática.
FM | Tudo o que estamos falando até aqui se relaciona à criação poética. Porém tens uma experiência na narrativa. Quais as equivalências possíveis?
VSP | Pode-se escrever um romance completamente lírico, como fez Guimarães Rosa em Grandes Sertões: Veredas. Pode-se escrever um poema narrativo. A diferença é no prolongamento do enredo, no desenvolvimento do cenário e dos personagens que em um romance são imprescindíveis. Escrever um poema é mais rápido, não que seja mais fácil. Há poemas que ficam meses, anos engasgados, e só se completam muito tempo depois. Gottfried Benn escreveu um poema iniciado em uma época e terminado trinta anos depois. Mas com certeza ele não passou trinta anos só pensando neste poema. O poema ficou ali na gaveta e, de tempo em tempo ele pegava, lia, relia, reescrevia e guardava. Até que leu, releu, alterou uma palavra, inseriu outra nova, e pronto, finalmente sentiu que o poema estava terminado. Para escrever um romance é preciso pensar no enredo intensa e ininterruptamente, durante muitos meses, às vezes anos. A narrativa é mais extensa e os recursos de linguagem são outros. Os diferentes gêneros são um desafio para mim. E é interessante chamar a atenção para as muitas classificações e gente que adora rotular os livros. Na Alemanha fala-se em romance somente depois de 150 páginas. No Brasil um livro com noventa páginas já é um romance. Um romance na Alemanha não é a mesma coisa que uma novela. No Brasil não existe mais este gênero literário, foi extinto pelas novelas televisivas. Uma novela na Alemanha é um livro de 150 a 200 páginas, com uma narrativa de menor extensão, alguns personagens e um enredo em torno de um único evento o qual alcança um ponto de transição (o Wendepunkt) e depois segue para um desfecho lógico e surpreendente. Um romance possui narrativa e enredo densos e longos, faz uso de mais recursos narrativos e maior quantidade de páginas escritas. Considero meio problemáticas estas classificações, corre-se o risco de chamar de conto um romance experimental. Mas entendo que são necessárias, sobretudo para se mesclar umas com as outras ou criar outro gênero e deixar os acadêmicos discutindo para classificá-lo.
FM | Tua condição de brasileira residente na Alemanha há praticamente 20 anos, estudos de literatura comparada e filologia germânica, tudo isto cria uma espécie curiosa de duplo exílio, até mesmo no sentido mais pragmático de Interação cultural entre dois mundos: como apresentar a tua visão de cultura alemã ao Brasil e a brasileira à Alemanha.
VSP | Escrevo alguns artigos sobre autores alemães em revistas brasileiras de literatura e sobre autores brasileiros em revistas alemãs, e tento abrir um diálogo entre as literaturas sempre que possível, através de sugestões de leitura, tradução de poemas alemães (recentemente de Jan Wagner, que recebeu boas críticas), faço entrevistas com autores alemães, e assim por diante. O mundo está cada vez menor, a Internet abriu novos caminhos e possibilitou uma grande rede de comunicação entre as pessoas do mundo inteiro. Temos aqui um novo aspecto, uma nova forma de lidar com a realidade e consequentemente com a literatura. Desta forma ficou mais fácil criar um intercâmbio intenso entre as culturas.
FM | Eu queria muito saber das pontes invisíveis entre as duas culturas, não entre elas, mas sim no que ambas te modificam, despertando a atenção para coisas novas. Evidente que a Internet não significa nada: é um lápis, um spray, um pincel, nada mais. Por detrás de tudo, sempre o leit motiv, a razão de ser, a alegria de viver. Há um momento em que a insistência em Brasil e Alemanha pode ser indigesta, não é isso, queres outra coisa.
VSP | A inquietação vem de dentro de mim. Na Alemanha ou no Brasil ou em outro país, a inquietação continuaria. É essa inquietação que me faz escrever. Naturalmente há momentos que penso em voltar para o Brasil, sinto falta da descontração, da espontaneidade, da alegria dos brasileiros. Mas toda moeda tem os dois lados. Receio não conseguir me readaptar à bagunça brasileira e ao nepotismo em tudo quanto é área, à falta de seriedade/maturidade na política das instituições culturais. Os alemães são complicados, apegados à rotina, e pessimistas, reparam muito no lado negativo das coisas. Nós brasileiros não fazemos comentário nenhum quando a pessoa não está com boa aparência, é mal educado, e quando ela está bem, aí sim, fazemos os comentários positivos. O alemão é o contrário, para o negativo ele sempre tem um comentário preparado, seja estacionar o carro em local proibido, estar cansado, ter feito alguma coisa errada sem querer… lá vem alguém reclamar, alguém que não tem nada a ver com a coisa. Os alemães costumam apontar muito para os erros dos outros e são difíceis de aceitar críticas. Entretanto, gosto da Alemanha, de Berlim que é uma cidade especial, diferente de outras cidades alemãs, com uma história singular e onde vivem muitos estrangeiros. É uma cidade pequena, comparada a São Paulo, pode-se fazer tudo de bicicleta aqui, a cidade possui muitas praças e parques arborizados e muitos museus, bibliotecas, universidades, três casas de óperas, galerias, e casas de literaturas. Muitos escritores alemães vivem em Berlim, e os autores internacionais visitam a cidade. A Herta Muller já a encontrei na feira, perto de casa, ela mora aqui na redondeza. Com o Imre Kertész troquei algumas palavras, em uma leitura dele, no Literarisches Colloquium, antes de ele ganhar o Nobel. Meu filho frequentava a mesma escola da filha da escritora Julia Frank. Acho fantásticos estes encontros casuais, com personalidades imortais e escritores e artistas renomados, coisa difícil de acontecer em outra cidade.
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3. NÓS em NÓS
FM | Eu faço as minhas melhores associações quando tomo uma cerveja e ponho música e me ausento do mundo. Na verdade, não tem a ver com a cerveja ou a música, e sim com a ausência do mundo. Música e cerveja entram como um estalo, um auxílio luxuoso que me permite fazer boas conexões entre os chamados ambientes dissociados. Melhor dizer ambientes cujos enlaces intrínsecos resultam imperceptíveis. A música cuida de uma orientação de tempo e espaço, me conduz a um cenário de aceleração dos sentidos. A cerveja me dá uma cadência letárgica mais vibrante que o vinho ou a maconha, e sem o desenfreio que se possa alcançar com o whisky ou a cocaína. Rimbaud queria desordenar os sentidos. Eu busco sua equalização. Ativar uma corrente em isolado nunca me pareceu fascinante. Uma overdose erótica, política, mística. Nada disto interessa à criação em separado. A minha memória é um caos. Tenho uma facilidade quase suicida de esquecer coisas. Ao mesmo tempo esses golpes de esquecimento são enriquecidos por uma sinfonia aparentemente sem sentido de verbetes do acaso objetivo, eloquências empíricas, suspeitas de um plano ideal ou seu revés etc. Recordo um poeta sem nome na minha adolescência que sofria muito ao parir cada poema. Eu não creio que uma mulher recorde o parto como um momento sofrido de sua vida. Aquela explosão de êxtase – sou naturalmente suspeito, por não haver parido em sentido literal – é um capítulo da alegria e não do sofrimento. Não me dói criar. Porém a cerveja e a música, com o tempo, foram me estimulando a buscar um insight distante delas. As sombras são um indicativo tanto de nossa aflição diante do que somos como uma sugestão de avançar nesse labirinto existencial. Quando escrevo um poema o que faço é por ali na mesa uma peça até então inexistente. Se eu me ponho a repetir o mesmo a cada minuto, logo a mesa não suportará a frequência do inexistente. Um dia chegaremos ao status do perfeitamente razoável, pela frequência de emissão e a satisfação da recepção. Nada pior pode acontecer na vida da criação artística. Os meus argumentos em defesa do indefensável que é a (minha) criação, me levam a começar este nosso diálogo expondo a alma bem abertinha, janela plena, para que sejamos o que verdadeiramente somos: seres criativos.
VSP | Existe a brincadeira de criança: ”eu vejo o que você não vê”, e a criança descreve a coisa e a outra precisa adivinhar sobre o que ela está falando. A poesia possui esta característica de revelar, àqueles que não possuem a capacidade de ver, um aspecto diferente da realidade, ou ela revela um mundo permeado de fantasia. E o leitor adivinha, isto é, interpreta o poema. A poesia define alguns estados de espírito ou simplesmente atribui imagem à realidade, ao pensamento, e mediante a imaginação e reflexão o poeta deforma a linguagem, a realidade, ou chama a atenção para uma visão singular da vida, subjacente ou não em nosso cotidiano e intelecto. O poeta possui o talento de ver o que muitos não veem. Mas qual o processo de criação para isso? No meu caso, possuo um cotidiano atarefado, quase não tenho tempo para escrever. Entretanto, as associações borbulham constantemente na minha mente. Carrego sempre papel e caneta, escrevo no que estiver ao alcance: guardanapo ou lenço de papel, em uma conta de telefone que está casualmente em minha bolsa, convite de concerto… Escrevo dentro do vagão do metrô, na lanchonete na hora do almoço, na cozinha esperando o arroz ficar pronto, à noite antes de dormir, nos cafés espalhados por Berlim (do que mais gosto, de simplesmente sentar em um café e ficar escrevendo)… As ideias advêm das reflexões sobre determinados temas ou lances cotidianos, e das intensas leituras. Em uma reportagem na televisão sobre agrotóxicos, por exemplo, surgiu uma rápida imagem daquilo que parecia ser um espantalho, e logo veio à mente o início de um poema sobre espantalhos.
FM | Escrever em cafés é mesmo fascinante e já o fiz em cidades como São Paulo, Porto, Caracas, Tenerife e a capital panamenha. A existência de cafés silenciosos tornava possível este prazer. Recordo que Eric Satie compôs muitas de suas peças em cafés em Paris. Já escrevi em quartos de hotel, bares de aeroporto, até mesmo em um cinema – em plena projeção de um filme –, porém sempre essa escrita resultava na integridade do poema. Muito raramente em minha vida fiz anotações de versos. A memória tece sua fiação mágica, a rede elétrica de imagens, os truques da linguagem etc., até o ponto de explosão. Mesmo nos poemas extensos, algo comum em dado momento de minha poesia, as anotações inexistiam. O poema, por sua extensão em tais casos, exigia ser fracionado em diversas sessões, que se sucediam até a sua finalização, porém sem anotações intermediárias. É como tenho feito em nossa parceria. Quando te envio um trecho que acrescento ao nosso poema eu o esqueço por completo. Até que me retornas e então eu o deixo abrir sua casa secreta de relâmpagos. Ali o retomo e logo segue de volta a teus braços. O que mais me encanta no que estamos fazendo é que damos passagem à ideia de uma criação coletiva. Sempre me fascinaram os cadáveres deliciosos do Surrealismo e recordo momentos em que os pratiquei com poetas em Portugal ou Panamá. A Internet mais recentemente propiciou um encontro meu com um poeta mexicano, com a curiosidade agregada de que estávamos um nos Estados Unidos e o outro na Austrália, e ali, naquela mesa virtual on-line, escrevemos uma série de poemas que resultou em um livro. O nosso caso tem sua distinção porque há uma variação de tempo, cada fragmento de poema vai se desdobrando com base no ritmo de vida de cada um, o que inclui o teu cotidiano atarefado. Porém uma coisa me alegra, acima de todas as demais, que é o fato de haver alcançado essa intimidade criativa com um poeta brasileiro. O Brasil me parece um dos países mais contraditórios do mundo. Os danos causados à nossa cultura pela matriz católica apostólica romana são imensos. Ao mesmo tempo, os cultos negros e índios, mesmo considerados periféricos, enriqueceram o ideário popular muito mais do que os preconceitos impostos pela religião oficial. Aníbal Machado abre seu impagável ABC das catástrofes dizendo que “as grandes catástrofes são, em geral, filhas da explosão, ou fruto da instantânea ruptura de equilíbrio das massas”. Teus anos de residência na Alemanha permitem avaliar bem o comportamento de uma sociedade que entende de catástrofes. A ausência delas na cultura brasileira foi moldando uma tipologia de circunstâncias, o que não deixa de ser aterrador, embora não passe de um desastre local.
VSP | Há a cultura dos cafés na Europa. Como os jovens, e também alguns adultos moram sozinhos e não com a família, procuram um local longe do ambiente doméstico para espairecer ou trabalhar, ler, escrever. Os cafés são quase uma extensão da sala de estar. Há os jornais para ler, há quem traz um livro e permanece lendo enquanto toma um cappuccino e come um pedaço de bolo. Os cafés são muito aconchegantes. No Brasil possuímos uma natureza belíssima, exuberante, que poderia ser acoplada ao nosso cotidiano, mas infelizmente não é. Sou paulistana e em São Paulo existe uma correria desumana, as pessoas não conseguem parar para pensar, vivem no centro de uma voragem mecânica infalível. Sinto muita falta da natureza em São Paulo, de lugares aconchegantes, sem chiqueria, onde você possa sentar em um sofazinho, tomar um café e ler um livro observando os transeuntes na rua. Certamente, o Brasil é um país muito contraditório. Em alguns casos isto é criativo e em outros cansativo. Trata-se de um país que sempre teve um grande potencial, mas precisa desenvolver uma consciência política e cívica. Quais são os meus direitos e deveres na sociedade? Como posso contribuir para o progresso da sociedade? Questões que deveriam ser discutidas e integradas no cotidiano dos brasileiros. A Alemanha só se ergueu de duas guerras porque o pensamento é coletivo: “vamos organizar o país e se for necessário abrir mão de alguns privilégios em prol dos meus compatriotas, em prol da nação, eu abro mão”. A elite alemã, assim como os políticos se sentem responsáveis pelo progresso da nação e procuram ajudar a administrar o país de forma que todas as classes sejam incluídas. A pobreza é um sinônimo de má administração e, a longo prazo, possui efeitos maléficos para toda a sociedade, por esta razão é combatida antes que se alastre incontrolavelmente. Retornando ao processo de criação, também sou muito esquecida (talvez seja uma característica típica dos poetas: viver no mundo da lua), não consigo memorizar nenhum poema meu nem de ninguém. Acredito que isso também se deva ao fato de eu não ter aprendido na escola a arte de recitar. Para escrever os nossos poemas não é possível eu fazer anotações porque não sei quais serão os próximos versos. Tento me colocar no seu lugar e imaginar o que você por ventura poderia estar imaginando ou simplesmente dar outro rumo e a partir disso desenvolver os próximos versos. Quando sou eu que inicio um poema, procuro imaginar um tema ou uma imagem que possa ser interpretada através de metáforas. Mas cada poema foi um desafio porque escrever poesia é algo muito íntimo e não acreditava que poderia ser escrito por duas pessoas distintas, ainda mais duas pessoas que não se conhecem pessoalmente e vivem em dois continentes diferentes. E algumas vezes eu não sabia como continuar. Mas a criação significa dar continuação às coisas ou reconstruí-las através da invenção. Procurei enveredar os versos nas alamedas da realidade contemporânea, distorcendo-a, a fim de não me limitar somente ao enleio do surrealismo onírico.
FM | Foram fundamentais à construção dessa voz comum que atingimos com nossos poemas o sentido de entrega e a afirmação de uma poética distinta da minha, segura de si e igualmente apaixonada pelo risco. Quando eu te convidei o que mais me atraía em tua poesia era exatamente o que faltava na minha. Eu vinha de uma metáfora mais abstrata, com uma sensualidade transbordante, enquanto que a tua intensidade – não menor do que a minha – vinha dessa mineração da vertigem do cotidiano, atenção aos vitrais e à ferrugem da paisagem urbana. Graças a essa busca de um equilíbrio a linguagem poética foi costurando uma voz muito especial e com um grau de intimidade tão fascinante que não há quebra na passagem dos versos de um para outro em nenhum poema. Eu considero este nosso encontro uma imensa felicidade que atesta nossa liberdade de criação, a maturidade da aventura de busca do outro, uma entrada naquele plano que Jung chamou de imaginação ativa onde o ego não representa conflito ou obstáculo. E note que no caso de Abismanto acrescentamos mais uma ousadia, pelo ambiente erótico, tomado de ardis que por um descuido mínimo nos levaria à reiteração ou a uma cafonice amatória. Creio que nos saímos bem, tanto que agora mesmo já avançamos para um outro capítulo.
VSP | A criatividade ultrapassa fronteiras e os indivíduos criativos aceitam, até mesmo procuram os desafios que entremeiam o universo da invenção, estão sempre atentos às novas possibilidades, para tanto é preciso não ter medo do fracasso e aprender com ele, e se entregar à aventura. Para escrever poemas a quatro mãos não pode faltar o respeito mútuo e a admiração recíproca pelo trabalho um do outro, a ponto de se aceitar as críticas e sugestões de ambos. Não há aqui espaço para a vaidade. Entretanto, não é algo que se atinge facilmente. Às vezes, pode-se haver respeito e admiração mútuos e mesmo assim não se alcança a devida afinidade para escrever poemas a quatro mãos. Realmente, trata-se de um trabalho complexo que envolve a psicologia de cada um. Coincidimos em muitos casos com a mesma visão e julgamento de mundo, e possuímos formas diferentes de interpretá-los, o que levou um a incluir elementos distintos no poema do outro, alternativamente. Graças a você, Floriano, pude lidar com este tipo de experiência que contribui para aumentar os mecanismos da criação.
[Fortaleza, Berlim, agosto de 2012]
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>> POEMAS <<
BERLIN, U2
dentro do vagão entra um mendigo vendendo o jornal de rua
possui os olhos vermelhos e pesados murmura algo ininteligível
uma estranha oração? na próxima estação entram dois ciganos
um tocando acordeão o outro corneta e um menino com o copo
de plástico colhendo metal alguém não consegue mais falar ao celular
nas janelas transparentes riscadas passam os sladys da cidade
um atrás do outro e os braços longos de aço dos gigantescos guindastes
o mendigo saiu sem ganhar nada a música barulhenta e desafinada acaba
abrupta quando as portas de novo se abrem
uma moeda cai no chão e vai rolar no vão entre o trem e a plataforma
como um réptil fugindo de algum risco
não tão rápido mas com a certeza do caminho
os músicos partem e o menino atrás
tentando recuperar o perdido apenas com o olhar
também assim é o adeus
MEDUSA
não há nada que não seja um labirinto
desde o reencontro com um amigo de infância
após muitos anos
a ficar preso no elevador de um edifício
desde o ínvio olhar de quem mais confio
a ouvir o meu nome dito por quem tanto amo
seja asfalto ou montanha
seja mar ou rio
seja céu ou ponte
seja tempo ou jornal
seja ontem ou gestos
espelho ou brincadeira
sejam as construções modernas
ou um punhado de terra
não há nada que não seja um labirinto
fora ou dentro de mim
e perseus eu matei
com a minha indiferença
com a minha resignação e abandono
com a minha própria coragem
de me olhar no espelho
FALHANDRAS
um a um os objetos foram desaprendendo suas formas
compondo um esqueleto invisível em que novas sombras se traduzem
o vento intimida a ideia que fazemos do tempo
tudo dentro da casa se esgueira como se tateasse outro mapa de enredos
nada mais se reconhece como a composição do lugar
eu mesmo sou estrangeiro buscando entender esta nova cartografia
e fugir deste interior limítrofe procurando minhas fronteiras
minha falange no meio do dia das pessoas do trabalho
da família descobrir as falhas que me acertam
que me dirimem que me denegam que me refazem
as falhas que carrego e as que colho no equívoco do jogo
das cenas das quais faço parte e das outras que me apresentam
em palcos improvisados na fímbria das tragédias íntimas
as sobras do lar a memória desfolhada o baile de fantasmas
louças esvoaçantes que atuam como bailarinas loucas
o armário desabando em conflitos
o instinto desfiando antigas visões por cômodos que se multiplicam
trama de portas que sussurram ao ritmo convulsivo das luzes
parentes mortos solidão destroçada por mais solidão
meu corpo tropeçando na falta que sente de tudo
este corpo estrangeiro que não reconhece o vazio de sua nova morada
e desespera ao encontrar janelas fora de lugar com paisagens que nunca estiveram aqui
(Poema escrito a quatro mãos com Floriano Martins, parte integrante do livro Em silêncio (2013) )
[Arquivo Agulha Revista de Cultura]