João Garção, uma breve discussão sobre o impróprio

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Organização e apresentação por Floriano Martins

João Garcão (Portugal, 1968). Poeta, pintor, ensaísta e professor. Natural de Portalegre (1968) onde fez os primeiros estudos. Foi futebolista profissional (guarda-redes) na primo-divisionária Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal (Coimbra), foi depois presidente da Direcção e é professor do Instituto Superior de Ciências Educativas de Felgueiras. Poemas e textos seus integram diversas antologias poéticas e plásticas. É colaborador de importantes órgãos artísticos nacionais e internacionais e tem participado em exposições de pintura em Portugal e no estrangeiro.  Organizou a exposição internacional de mail art “O Futebol” (Coimbra). Especialista em teoria artística e arte aplicada, proferiu conferências e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade. Texto escrito originalmente como prefácio do livro Pequenos ensaios, de João Garção (Lisboa: Apenas Livros, 2018).

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Um homem reflete sobre aquilo que lhe inquieta a alma. Não um tema em isolado, mas antes a forma como o mundo se apresenta diante dele como um teorema a ser resolvido. Na medida em que tocamos a natureza do que nos apraz e nos deixamos por ela tocar, a vida ganha um sentido cuja medida é a do instante em que percebemos sua grandeza irrepetível. Compreender o quanto um homem é possesso ou inspirado, desentranhar os inúmeros ninhos abissais de caminhos que nos levam de uma parte a outra de nós mesmos, este é assunto que nos revigora a alma na medida em que reconhecemos nossa habilidade para tocá-lo.

Há, no entanto, uma teia demasiado comum e sagaz que envolve o conhecimento e degenera sua habilidade em mero truque de repetição. O passado assim deixa de fazer parte de nossa vida como amalgamado ao que somos, em um processo contínuo, desloca-se de nossa essência, como um ardil tangencial, e se torna… História. No sentido linear de uma fabulação cronológica. Essa forma degenerativa do conhecimento nos privou de uma relação com a essência do ser, posto que aquilo que somos tem por raiz insofismável a profusão de tempos compartilhados simultaneamente.

Um homem que reflita sobre a inquietude de seu espírito reconhece que é tanto a memória de seus planos quanto o sonho de suas realizações. Sabe o quanto é preciso corrigir o passado graças ao argumento do que ainda não viveu. Sobretudo compreende que não há outro modo de sentir-se no presente senão pondo em dúvida a estabilidade de seus conceitos. Se o presente deveria atuar como uma espécie rara de dignificação da realidade, então o esquartejamos ao modo de uma disciplina de prioridade de estímulos que não mais atendam à unidade, mas antes à fragmentação estratégica do ser, já aqui tornado uma farsa.

Jorge Luís Borges em certa ocasião recordou que “a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura porque sempre tendemos a ela na realidade”. Aí está a raiz do efeito fabular que nos levou a um mundo seletivo, de crença no poder discricionário. A esfera humana reduzida a seu encargo de interesses. Uma sociedade assim deliberada equivale à impossibilidade do pensar. A própria consciência atua como uma permanente fonte de advertências acerca do que é correto ou temerário no ato menos elaborado da reflexão.

João Garcão (Portugal, 1968) reúne aqui uma espécie de inconveniente alegoria acerca não propriamente de um ou outro tema, mas antes do modo de rejeição corriqueira ao ato de pensar. Seus ensaios averiguam as mais diversas situações da criação humana, porém sua síntese possível nos leva a uma ênfase radicada mais naquele princípio inicialmente aqui referido de ir além do tempo e do espaço em que se dá a nossa inquietação pelo conhecimento. Ele próprio, em uma de suas sagazes reflexões, menciona a instabilidade de nosso modo de reflexão, ao distinguirmos visão, compreensão e sentido, como se fossem métodos estanques de apropriação da realidade.

Ao escrever sobre Hieronymus Bosch ele o situa como um “visionário integral”, e o que me leva a citá-lo diz respeito ao fato que este é um princípio que não se aplica somente à leitura da obra do pintor holandês do século XV. O próprio João Garcão entende que deve ser um visionário integral ao meter-se com a criação de Bosch. Isto significa que não somos apenas parte daquilo que desejamos, imaginamos ou mesmo lamentamos. Um homem deve ser a totalidade de si mesmo e de tudo quanto isto implica.

Esta me parece a pedra de toque da compreensão de mundo do ensaísta João Garcão, quer se refira ao mergulho no inconsciente, às inúmeras táticas de destruição da liberdade, às farsas tecnocratas de uma política educacional, não importa. Seus argumentos, sempre precisos, contribuem à elaboração de um sistema de entendimento de como a realidade pode ser truncada ou evasiva, de como suas derivações podem nos levar a um mundo que seja o oposto daquele que desejamos ou ao qual nos sentimos aptos a formar parte.

Não é o tema em si, ou sua temporalidade, o que aqui se reúne na forma de instigantes ensaios, mas antes a capacidade reflexiva que, esta sim, a principal evocação deste livro, nos permitirá dar um salto para fora deste mundo de iniquidades e distrações perversas que nos toca viver. Ler João Garção é a configuração de uma fortuna do ser, ao menos a expectativa de que o homem reflita sobre a saturação de sua própria existência, nos moldes em que a acatou. A integridade é também uma forma expressiva da beleza.

>> Poemas <<

SENTIMENTO

A água está parada, muito quieta no meio da noite.
E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?
És água dum mar? És água dentro dum copo
sobre uma mesa muito antiga e sonhada?
És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?
Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?
Para uma mulher, para um gato, para um lobo?

E a água talvez não te responda. Nunca te responda.
Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.

Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.
Mesmo que os minutos passem entre ti e a água
E devagar uma silhueta se desloque
e depois se detenha no meio das árvores imóveis.


ABECEDÁRIO

Vá, não entres aí
Isso é um advérbio de modo
E embora te pareça um particípio passado
é um adjectivo e às vezes um presente.

Fica parado à saída: está a chover
Dentro dessa frase quem anda ao sol molha-se muito
É um discurso ediomático e por isso
onde está o prenome é o substantivo.

Junta-te ao ponto e vírgula: custa menos
do que escrever com pontinhos nos is
quando as reticencias nos confundem
com exclamações ou verbos no futuro.

Os conjuntivos na oração nunca se entendem:
e por isso, dizem, é que os agás são mudos.


SÁBADO

Sinto-te respirar
enquanto a noite vai andando pelo mundo
e detrás das portas há mais silencio
como se as palavras tivessem partido

Armários e cadeiras são como presenças
são presenças entre as paredes
e tudo vai vivendo de novo
sem perguntas em nós e sem mágoas.

Nas antigas memórias
onde tudo se acolhe
as vozes esperam o tempo
de renascer.

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