António Cândido Franco (Lisboa, 1956). Poeta, ensaísta e editor. Iniciou-se na poesia com o título Murmúrios do mar de Peniche (1977), seguido de Na renúncia do coração (1984), Matéria prima (1986), Corpos celestes (1990) e Estrela subterrânea (1993). Atualmente dirige a revista A Ideia, dedicada sobretudo a estudos sobre Surrealismo e Anarquismo.
Ilustrações: pinturas de Cruzeiro Seixas.
As possibilidades do surrealismo são infinitas e não se confundem com as da arte. Enquanto a arte é uma matéria que envelhece, e renasce para de novo perecer, até se esgotar, como parece estar a suceder com a industrialização em massa de tudo que se nomeia como cultura dita artística ou literária, o surrealismo é a própria alma da criação, sempre viva, nas suas infinitas metamorfoses e imagens.
Parecem por isso errar aqueles que pretendem prender o surrealismo a uma época, a uma escola, a uma missão, a um grupo, a uma tarefa, a uma circunstância, a uma estética, a um código ou a qualquer outra matéria inscrita no espaço e no tempo. Não se desmente que o surrealismo tenha encontrado no seu movimento fixações corpóreas, coagulações visíveis, que fazem dele um fragmento estético ou até um tique de escola, mas o próprio do surrealismo, ou ao menos daquilo que parece ser a sua essência, a surrealidade, é ser de sempre e de nunca, numa volatilidade que se torna no segredo mesmo da sua permanência.
Quando falamos de surrealismo, ou de surrealidade, estamos a falar da realidade mesma do espírito, quer dizer, daquilo que, por presença inefável e visível ausência, está e não está, nada menos do que esse esplendor que cega e essa cegueira que ilumina, essa luz negra que tudo suporta e nada tolera.
Quanto mais se abre a porta do corpo, quanto mais se penetra no território desterritorializado do imaterial psíquico, quanto menos se escapa à orgânica da psique, mais se deixam para trás os limites e os grilhões que prendem homem e natureza às determinações das formas e da realidade fisicamente perceptível. Aquilo que vemos, aquilo que percebemos, aquilo que os nossos sentidos tomam por real, não passa afinal duma sombra encarcerada num lugar fechado.
Antes de Freud, já Platão percebera o continente formidável de onde tudo provém, inclusive a tão rigorosa medida das pirâmides. E se Freud é um reflexo moderno, no quadro da ciência positiva, dum saber muito mais antigo e largo, que passou antes dele por Paracelso e pelos cabalistas hispânicos, também o fundador dos jardins da Academia nada mais é do que uma delida imagem, um refractado raio duma sabedoria arcaica, pré-helénica, não racional, que ele soube, num tempo já despótico e mercantil, salvar do esquecimento e transportar pelo registo escrito para dentro duma História cada vez mais linear e positiva.
O surrealismo não depende de Freud, e muito menos da compartimentação da alma humana nos três estratos clássicos da psicanálise; ele depende apenas dos dois olhos da alma humana, que se chamam imaginação criadora e memória anamnésica. Mesmo sem a conceptualização freudiana do inconsciente, o surrealismo, depois de Novalis, de Jean-Paul, de Nerval ou de Lautréamont, tinha as condições necessárias para se pôr em movimento, cristalizando formas sólidas e atingindo patamares de consciência histórica.
O surrealismo parece assim tão antigo e tão duradouro como a alma humana. E se quisermos ser fiéis à ambição gnósica e amorosa que nele sopra seremos mesmo tentados a dizer que o surrealismo é tão perene como a alma do mundo. Nem ao que de mais permanente existe no homem o surrealismo se prende, porque quando dele falamos é o infinito do universal, o inconcebível, o inimaginável, a alma da criação, que se apresenta.
Quando se fala de surrealismo em Portugal é de imediato em António Maria Lisboa e em Mário Cesariny que pensamos. Bem andou, porém, Natália Correia na sua antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), quando iniciou esta sua colectânea com os primitivos galaico-portugueses, os poetas dos cancioneiros orais trovadorescos, que viveram entre o século XII e o XIV, mais de cinco séculos antes da fixação histórica da escola.
Muito antes pois da cristalização consciente dum surrealismo histórico, no qual temos de imediato tendência a pensar, já outro, eterno e subterrâneo, existia. Bastou a língua ganhar as suas primeiras formas ainda incertas e balbuciantes e já a expressão desse outro real, mais autêntico e mais próximo da fonte maravilhosa do espírito, se fazia sentir.
Nunca será de mais afirmar este alcance indelével do surrealismo, que é aquele que mais provoca e ofende aqueles que nunca simpatizaram no nosso tempo com ele, ou porque estão demasiado presos ao real sensível, e se recusam por isso aceitar ou sequer conceber o real absoluto que ele propõe, ou por mera desatenção ao que está nele, surrealismo, em jogo.
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Os materiais de segundo nível, que permitem a metamorfose do real sensível, e a percepção desse outro real, a que o surrealismo chamou o supra-real, sem o qual não faz sentido, são de dupla natureza, ou sonora ou visual, quer dizer, ou se manifestam por meio da audição ou por meio da visão.
No primeiro caso temos as alucinações auditivas, que distorcem a camada mais superficial, mas também mais decisiva, da linguagem verbal, o fonema. O fonema é cada uma das parcelas mínimas da linguagem verbal articulada. É encarado em geral como um material arbitrário, posto ao serviço duma codificação de sentido. É porém possível usar esse material de modo distinto, desvinculando-o da relação de arbitrariedade com o real sensível, de primeiro nível, e procurando no som verbal a manifestação do invisível ou do inefável.
Foi esse o trabalho de Mário Cesariny no livro Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor, escrito em 1948, publicado dez anos depois, e que António Maria Lisboa teve ainda ocasião de apreciar, a ele se referindo na conferência manifesto de 1950, Erro Próprio, editada em 1952, como sendo um jogo de cabala fonética, destinado a progressiva assimilação do irracional, um sinónimo daquilo que linhas acima apontámos como invisível ou inefável.
Nesse livro, o poeta, desarticulando as palavras, ou sequências delas, através dum jogo fonético, em geral assente nas similitudes dos fonemas, criou uma linguagem própria, feita de neologismos, que se pode tomar por um idiolecto verbal, de segundo nível, adequado a comunicar com a realidade ideal que o surrealismo procura e que António Maria Lisboa identificou com o irracional.
Podemos pensar que aquilo que os poetas verdadeiros desde sempre fizeram foi aquilo que de forma radical se encontra no livro de Cesariny. Não se trata tanto dum tópico de escola, por muito que ele atravesse transversalmente parte daquilo a que chamamos o surrealismo histórico, mas do núcleo resistente da própria acção poética. Desmembrar as palavras ou as frases de primeiro nível, relativas ao real sensível, para se obter uma linguagem mais autêntica, menos dependente do real visível e da sua reprodução no plano verbal, como faz Cesariny nesse livro dado à luz em 1958, parece ser um processo “intemporal”, que começou no momento em que o homem trocou o estado natural pela civilização, onde os constrangimentos edipianos impuseram uma nova realidade à espécie.
Para se perceber isso a que chamo “processo intemporal”, e que tem todavia um começo colectivo, basta pensar na acção multissecular que alguns poetas da língua portuguesa, que vão do cancioneiro dionisino a Eugénio de Castro e da Fénix Renascida a Ângelo de Lima, exerceram sobre a língua, numa operatividade em tudo concorde com aquilo que se encontra no livro de Mário Cesariny.
As manifestações de segundo nível, que interrompem e transformam nas formas de representação o contínuo da realidade sensível, não se apresentam porém apenas ao nível fonético. Há materiais de tipo visual não fonético que se mostram de grande importância para revelar a alteridade do real. Neste caso também as alucinações de tipo visual, distorcendo a percepção óptica que temos da realidade, podem contribuir para articular a linguagem com uma realidade de segundo nível. A base da linguagem verbal é o fonema, quer dizer, o som, mas o seu resultado mais vulgar é a imagem. A criação de sentido que se pretende obter com a junção dos fonemas, a reprodução do real sensível a que se aspira em qualquer língua arbitrária, não poética, faz-se através da imagem, não do som.
Dou um exemplo. Quando digo a palavra porta, tenho por um lado as unidades mínimas sonoras, três consoantes e duas vogais, e por outro uma imagem, uma noção unívoca, que me permite referenciar, a partir duma realidade sensível, um sentido. Por esse motivo um poeta como António Maria Lisboa pôde deixar de lado por um momento a essência sonora da linguagem verbal e dedicar-se no seu principal livro de poemas, Ossóptico (1952), ao trabalho óptico ou visual com as palavras, obtendo na assimilação do irracional, ou na transposição do real, resultados equiparáveis àqueles que Mário Cesariny conseguiu com a incisiva acção sobre o som.
É no domínio porém do desenho, da escultura, da pintura ou da criação de objectos que podemos falar de materiais visuais puros. Nenhum som audível; apenas imagens visíveis. É possível trabalhar também com tais materiais na procura de manifestações de segundo nível. Quer as palavras, quer as imagens, quer ainda as coisas, escondem por detrás da sua realidade quotidiana mais mesquinha, outros diriam mais abjecta, um continente secreto, muito mais maravilhoso, que não é outro senão o real supra-sensível a que Lisboa chamou o irracional.
Um dos que trabalhou ou sublimou estes materiais visuais, na tentativa de com eles obter resultados inesperados na assimilação do real de segundo nível foi e é Artur Manuel do Cruzeiro Seixas. A sua acção entre nós é paralela, no domínio puramente visual da sua criação pictórica e objectual, daqueloutra que se encontra na poética verbal de Mário Cesariny e de António Maria Lisboa, que como vimos tem, apesar dessa unidade de base, direcções diferentes.
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Artur Manuel do Cruzeiro Seixas é um alquimista das formas, um poeta das imagens, um arquitecto do espírito. Os seus desenhos, que melhor se designam por sismografias da psique, caligrafias psíquicas ou registos pulsionais, mesmo quando enquadrados por um traço que nos parece tão rigoroso quanto talentoso, são a linguagem da alma humana; movem-se na tela ou no papel onde o seu autor os lança em momento de cegueira ou de possessão como os sonhos, os mais maravilhosos e os mais terríveis, se incrustam no céu imaterial do pensamento.
Não há por isso limites para os sinais que se inscrevem nos desenhos de Cruzeiro Seixas; eles palpitam em combustão ardente, pedras vulcânicas em permanente explosão de metamorfose. Se o Universo é um caos organizado, uma anarquia espontânea, onde os astros fazem a vez duma ordem desconhecida e superior, os desenhos de Cruzeiro Seixas são a escrita automática do espírito, um alfabeto psíquico capaz de registar as pequenas e as grandes convulsões da alma, onde as imagens, sempre escaldantes, sempre borbulhantes, tomam o lugar de mediadores entre a matéria densa do mundo e a liberdade gratuita do espírito.
Na tapeçaria dramática de Cruzeiro Seixas uma mão nunca é uma mão, um rosto nunca é um rosto, um cavalo nunca é um cavalo. Não nos iludamos, a não ser por via da participação consciente neste teatro lúdico de acasos, que é disso que aqui se trata. Todas as realidades que saem das mãos de Cruzeiro Seixas são apenas imagens de outras realidades, metáforas vivas e desveladas, num processo contínuo e revelado de metamorfoses, que opera por sucessivas e imperceptíveis trasladações de sentido. Na rotação das imagens, na velocidade alucinante das figurações, na permanente desconstrução das identidades, temos o carnaval intenso da criação, a festa do mundo tal como ela pôde ser superiormente vivida em colectivo nas culturas magnas do paleolítico e do mesolítico, tudo antes que a história, com a folha relativa à produção e acumulação, com a eugenia própria da proibição do incesto, que impôs constrangimentos gigantescos nas operações mentais humanas, sufocasse a vida mágica da cultura natural.
Convenço-me que o homem arcaico, o homem ante-histórico, o homem natural, o homem criança, o homem mulher, via o mundo – animais, plantas, pedras, rios, astros – desenrolar-se diante dos seus olhos como nós vemos a metamorfose num desenho de Cruzeiro Seixas. Daí a ideia de tapeçaria dramática, de montagem psíquica, mas também de percepção em estado puro, a propósito da actividade das suas mãos.
Cruzeiro Seixas sempre negou a arte. Fê-lo pelo lado do testemunho – o desejo mais alto do meu trabalho, é justamente que ele seja um testemunho, diz ele algures – e fê-lo ainda pelo trilho que Marcel Duchamp abriu com o readymade de 1914. O readymade colocou a arte ao alcance de todos, deixando de lado o que nela havia de habilidade e talento, e que muito, ou tudo, era. Com o readymade a arte passou a estar ao nível do desejo de qualquer um. Bastava para tanto isolar a peça e atribuir-lhe um valor de emblema.
A invenção de Duchamp não coincidiu, ao menos no imediato, com os propósitos do surrealismo. Ao invés, guardando apenas o seu efeito de surpresa anti-burguesa ou de provocação vanguardista, o readymade estava destinado a transformar-se depois, na segunda metade do século XX, no pior pesadelo da actividade artística de sempre, o gadget, o dispositivo, a bagatela, o pechisbeque ao alcance de todos, votado ao consumo industrial em larga escala, contaminando ainda muito daquilo que se convencionou chamar arte moderna ou contemporânea. Nesse sentido o surrealismo parece actual mas não contemporâneo, e menos ainda moderno, se por modernidade entendermos o mundo que saiu da razão instrumental cartesiana.
O que a prática do readymade, de que a instalação é uma extensão em ponto grande, mostrou é que o mercado da arte, nas versões mais canibalescas que se conhecem, para nada precisava das convenções burguesas do talento e da habilidade. Percebe-se com bons motivos que o mercado da arte, para se expandir sem limites e sem entraves, necessitava de se livrar dos códigos estéticos burgueses, demasiado elitistas e restritivos. Sem eles, sem os círculos apertados em que se fechava, a arte ficava nua e sem escudo; estava à mercê de qualquer invasão e livre para se tornar em definitivo uma mercadoria de massas, uma indústria sem entraves, pronta a forçar o consumo como qualquer tomate enlatado. O valor de emblema que o objecto ganhou com o readymade de Duchamp estava apto, e com que facilidade, a tornar-se também um valor de mercado.
O destino da invenção de Duchamp não foi porém apenas o gadget artístico. Pouco depois da sua invenção, o grupo de André Breton, posicionando-se no campo não da arte, ou da anti-arte, ou até da não-arte, mas no do experimentalismo da alma humana, viu no trabalho de Duchamp uma possibilidade nova. Também o surrealismo desposou assim a anti-arte, sem que o seu interesse fosse outro do que perceber na sua superfície nua a significação psíquica, a realidade de segundo nível. De emblema sociológico, o objecto passava a dinâmica de funcionamento simbólico.
Para o surrealismo, o readymade não era um novo objecto artístico, nascido dum olhar descomprometido com as regras artísticas burguesas, mas um objecto psíquico, uma peça da alma, uma manifestação maravilhosa, um sinal da realidade de segundo nível. Nasceu assim o objecto surrealista.
Convenço-me que o drama decisivo da arte actual se joga na dupla acepção que o trabalho duchampiano tomou ao longo dos últimos cem anos. Por um lado temos a arte ao alcance de todos, através da industrialização desaforada da anti-arte, de que todas essas banais instalações pagas pelos poderes públicos nas rotundas dos subúrbios são o testemunho triste, e por outro temos a arte ao alcance de todos, sem necessidade de poderes, sem necessidade de sponsors, através do objecto surrealista que cada um de nós deve procurar como se dum verdadeiro milagre se tratasse. A herança de Duchamp joga-se toda neste braço-de-ferro, que é também o desafio que hoje se trava entre as duas pulsões vitais, por muito heteróclita que cada um delas seja.
Cruzeiro Seixas, colocando-se do lado da alma, foi um verdadeiro criador de objectos surrealistas. A sua imagem de marca é a chávena intervencionada, de 1954, a que chamou Quotidiano. Essa chávena tem a asa para dentro, expondo o absurdo da sua inutilidade, como um homem com a alma para fora, sem consciência e sem extensão, sem fonte de imagens para brotar, é o escravo da realidade sensível e o encarcerado da razão prática. Será que já se percebeu que a asa cruzeirina é a tradução metafórica da alma e até a sua continuidade fónica, numa espécie de cabala temúrica onde o imperativo do verbo amar, ama, serve de ponte e de elo? Asa, ama, alma – compósitos sonoros do irracional ou novo mito posto a circular pelo criador.
E quem fala do funcionamento simbólico da chávena intervencionada, pode falar do poder psíquico de objectos como l’opresseur, resultante do encontro fortuito duma bola de ferro, duma torneira velha e duma pluma preta, ou da carga mágica e festiva, largamente (ir)religiosa, de objectos como o Cristo pendurado num cabide, que apresenta tanta pressão destrutiva como força regenerativa. A carga dum tal objecto só me parece comparável ao trabalho extraordinário que Guerra Junqueiro fez sobre o imaginário religioso em Velhice do Padre Eterno. E não querendo, ou não sabendo, falar de Junqueiro, fale-se então de Nietzsche e da abertura do seu Zaratustra: castigo o meu Deus para o purificar.
Cruzeiro Seixas, em sentido pleno, não é pois um artista; é um xamã, um mago, um vidente, um bandeirante da irrealidade do espírito, um homem dos portos, um corsário sempre em viagem para o além, um nauta dos astros ou do éter. O seu trabalho exerce-se mais na transformação da vida quotidiana, em primeiro lugar da sua e da do seu círculo próximo, que na mercantilização galopante e massiva dos artefactos que a sua imaginação dá ao mundo.
Numa direcção que é plena de verdade funda podemos dizer que Cruzeiro Seixas não teve atelier, não marcou o ponto, não se funcionalizou como artista ou como pintor. Ao invés, não se cansando de gritar a morte da pintura e o fim da arte, bem como o horror das academias e das escolas, fugiu para a selva, vadiou pelos trilhos poeirentos dos elefantes, perdeu-se no continente obscuro dos hipopótamos. A sua oficina, se a teve, foi na alma que a encontrou. Por isso lhe bastou, como ele insistiu, um canto de mesa para atirar ao papel com as imagens. Eu acrescentaria até que nem sequer de aparo e de tinta ele necessitou; para desenhar o mundo da alma bastou-lhe o sangue como tinta e o dedo como lápis. Estava tudo dentro dele, intacto e vivo. Não foi, não é, um artista, mas um condutor de imagens psíquicas. Não expôs talento; antes deu a alma, naquilo que esta tem de supra-natural e de genial.
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O drama decisivo da arte moderna, já o disse, joga-se no duplo sentido que o trabalho de Duchamp tomou nos últimos cem anos; por um lado o gadget artístico para o consumo das massas, como as estampas de Warhol liofilizadas numa linha de tee-shirts, e por outro o objecto surrealista de funcionamento simbólico, que qualquer um de nós na infância teve o saber pessoal, o génio assistido para construir ou criar a partir do elementar. E quem não recorda esses momentos absolutamente geniais em que num recanto de jardim ou numa sala solitária construiu com duas pedras ou dois pedaços de madeira velha um palácio encantado?
Acrescente-se agora que para o mundo se salvar, para o homem reassumir a plenitude dos seus dons e da sua graça, para a natureza reconquistar a harmonia perdida e a grandeza desfeita, a arte da anti-arte tem de morrer, porque a arte hoje, tal como a moda, perdidas para sempre as convenções elitistas burguesas, é sinónimo despudorado de consumo forçado, tão forçado que todos nós temos em casa um Picasso de plástico, equivalente de delapidação maciça de recursos, que não são recursos mas seres vivos.
O que aqui está em causa é o entendimento e a aceitação passiva daquilo que Walter Benjamin chamou a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica e a obra de poesia, a acção enérgica, a saudação solene de cada um de nós ao mundo, na era do desastre ecológico. O caminho não é o da metrópole, deslúcida e envenenada, mas o trilho aldeão; em vez de Fernando Pessoa, urbano, colarinhos brancos impecáveis, bilhete de avião no bolso do paletó para Londres, o Velho da Montanha, Teixeira de Pascoaes, em fralda velha, descalço, cabelos em fogo e olhos relampagueantes, no meio dos robles do Marão.
A acção de Cruzeiro Seixas, naquilo que tem de essencial, quer dizer, na fabricação dos seus compostos, situa-se fora do âmbito da indústria cultural e o mais longe possível da mercantilização industrial dos artefactos artísticos da anti-arte. Cada quadro seu é uma obra monumental e única, uma obra digna do espírito de qualquer criança, que é o melhor elogio que se pode fazer a uma criação. Estamos diante de objectos de funcionamento simbólico e não de aparelhos sociais, votados à reprodução sem fim.
A construção de tais objectos funciona pela junção, pelo encontro fortuito dos materiais. O que os singulariza é antes de mais a natureza das suas matérias. Os primeiros objectos que Cruzeiro Seixas criou, por volta de 1946, sem nome, e que se perderam, resultavam do encontro de meias de seda com barbas de espartilho. Nas notas autobiográficas que em 1975 escreveu diz o seguinte sobre estes trabalhos (“Uma ferida que dança”, Cruzeiro Seixas, Soctip Editora, 1989, p. 136): Em 1946 reinventei o “objecto surrealista”, pois era nenhum o meu conhecimento da sua existência. Fiz alguns, com meias de seda vestindo esqueletos de barbas de espartilho, de que só restam algumas más fotografias.
Em 1951 cria o objecto “L’Opresseur”, já referido. Uma bola de ferro, uma torneira velha e uma pluma preta, recuperadas do lixo, dão lugar a um dos mais poderosos emblemas sociológicos da situação portuguesa da época e a um enigma de decifração simbólica, com vasto impacto fálico.
O que mais toca num primeiro momento nesse objecto é porém a recuperação dos desperdícios que a sociedade rejeita: uma bola inútil de ferro, uma torneira velha, uma pluma gasta. Como se esta acção gritasse que é possível salvar do esquecimento o que perdeu utilidade prática. É o momento de compaixão em que a esfera do objecto se refaz através da reciclagem. Mário Cesariny fez algo de semelhante com uma velha e roída bota de cano alto, no qual inscreveu a inscrição em tinta branca, lucky boot that came ashore on the sands of sesimbra in the first june 1973.
Num segundo momento estes objectos reciclados e recicláveis transformam-se porém em objectos de alma. As composições ganham brilho, rotação, vida, aquela vida que uma criança consegue instilar, maravilhando-se, a uma construção de areia. Foi assim que se fizeram as estrelas e foi assim que se ergueram as palafitas. E é assim que o lixo ganha sentido, fazendo-se corrente de oiro. À luz desse relâmpago vemos então o objecto reciclado trasladar-se em objecto simbólico, quer dizer, em preciosidade do espírito. O movimento de translação tem tradução poética, mas não no ocidente; é preciso pensar no uivo dum índio para lhe topar com o equivalente pleno.
A suma civilizacional superior, o vero tesouro que se foi condensando ao longo dos milénios, quase sempre de forma subterrânea, tem agora por base os desperdícios do modo de vida industrial. Nada na nossa civilização está tão perto da sabedoria ancestral como o desperdício. É preciso criar uma arte vadia, do lixo, própria de sem abrigos, que cruze as imagens intemporais da alma com a gestualidade catártica. São as fezes que valem ouro, o lixo que tem a essência do luxo.
As exposições de arte moderna ou pós-moderna já deixaram de contar. O que conta é a herança surrealista de Duchamp, não a herança industrial, da arte pop ou outra – parece dizer a acção poética criadora de Artur Manuel do Cruzeiro Seixas.